Nuno Rebelo – “M2”

POP ROCK

9 de Outubro de 1996

NUNO REBELO
M2
(8)
Ed. e Distri. Ananana


nr

Se estivéssemos noutro país qualquer que não Portugal, “M2”, mesmo endereçado a uma minoria educada nos chamados experimentalismos, venderia um número confortável de exemplares, permitindo ao seu autor a prossecução de uma via musical autónoma, independentemente de esta se revelar mais ou menos “difícil” aos ouvidos profanos. Mas vivemos nesta santa terrinha e, por cá, as coisas não se passam assim. Chris Cutler já ouviu “M2” e teceu sobre ele os maiores elogios. Até que ponto, porém, é que o mercado nacional está pronto para receber objectos deste género? Porque “M2” merece ir tão longe quanto o soubermos aceitar.
Dividido em duas partes distintas, a primeira, “Sábado 2”, executada em tempo real, é a resposta musical a uma coreografia de Paulo Ribeiro, em que a acção se reparte entre as desconstruções da guitarra de Rebelo, na melhor tradição dos “Guitar Solos” de Fred Frith, e as deambulações do saxofone de Paulo Curado. Cruzamentos “Recommended”, falsas partidas e chegadas, a descoberta constante do improviso estruturado, “Sábado 2” faz o elogio da liberdade e do gozo de tocar. Referência obrigatória: Paulo Curado, pelas coordenadas estéticas em que o seu discurso se insere e pela naturalidade com que as põe em prática, ocupa hoje um lugar ao lado dos maiores no panorama das novas músicas da Europa.
“Minimal Show”, por outro lado, desenvolve algumas das vias iniciadas em “Sagração do Mês de Maio”, explorando em profundidade os processos composicionais em computador. Sem pôr de lado a vertente lúdica que caracteriza a sua aproximação ao acto musical no seu todo, é aqui que Nuno Rebelo encontra os seus brinquedos preferidos. Há balizas e pontes de contacto. Em “Um, dois” e “Três”, a sobreposição das vozes que repetem números em várias línguas diferentes constitui referência óbvia a “Numbers”, dos Kraftwerk, do álbum “Computer World”. Noutras ocasiões, os circuitos de Rebelo ocupam momentaneamente os mesmos lugares sonoros de um Elliott Sharp (de “Virtual Stance”) ou de Holger Hiller (na sobreposição barroca das samplagens). Mas “M2” é algo mais do que a simples soma das partes, escapando à frigidez esquemática e aos automatismos da “system music”, jogando Nuno Rebelo, dentro da sua lógica pessoal, na recriação dos timbres e na montagem de pormenores (sereias, cucos, mecanismos de relojoaria, “trompe l’oeil” vários) que se encaixam uns nos outros como uma construção de Lego. A descobrir e decifrar muitas vezes.



Boris Ex Machina – “Tango Infernal”

POP ROCK

2 de Outubro de 1996

portugueses

Boris Ex Machina
Tango Infernal
ED. E DISTRI. SYMBIOSE


bem

O universo dos Boris Ex Machina tem tanto de literário como de musical. “Tango Infernal” vive de um conceito e de um leque de aproximações que se situam à margem do rock, alimentando-se de nostalgias várias e delas sugando uma essência de láudano mas deixando entender uma via apontada à experimentação e, até, ao confronto. Convergem nesta estreia discográfica do grupo a valsa-musette, obviamente o tango, o cabaré e os circuitos integrados, e um romantismo, por vezes trágico, que deixa a anos-luz de distância os vagidos funeral-nacionalistas dos Sétima Legião. Fumos de ópio e brumas pegajosas sobre o porto de Amsterdão – Brel a pairar como um espectro húmido. O acordeão do “outsider” Rini Luyks, a utilização de “samples” e da electrónica por vezes industrial e o sentimentalismo afectado da voz sugerem tanto a “chanson” francófona como a feira hermética dos Tuxedomoon ou o circo piegas de António Calvário. Os Boris Ex Machina sonham com um tempo mais antigo e aventuras e sentimentos suspeitos. De bares com má fama e vielas mal iluminadas onde, a cada esquina, espreita uma alucinação. Um arco obriga a chorar o contrabaixo, a máquina tanto levita num “sample” de vibrafone como estremece no “delirium tremens” de um saxofone alcoolizado. A valsa retorna, obsessiva, enquanto as palavras – do polivalente Armando Teixeira mas também, no tema final, de Mário de Sá-Carneiro – se perdem nos seus próprios meandros, tornando-se por vezes ininteligíveis e deixando espaços perigosos à imaginação. Pós-rock, ambiental não conformista, corsário na pilhagem das épocas e na manipulação das memórias colectivas, reais ou empilhadas dos livros e dos filmes, “Tango Infernal” traz para a superfície algo de brumoso e informe, materializando terrores vagos, pondo os monstros a cantar canções de variedades. (7)



Canto Chão – “Ventos Do Sul” + Grupo Coral E Etnográfico Os Camponeses De Pias – “O Cante Na Margem Esquerda” + Grupo Coral E Etnográfico As Camponesas De Castro Verde – “Vozes Das Terras Brancas”

Pop Rock

3 de Julho de 1996
world

Entre o céu e o chão

CANTO CHÃO
Ventos do Sul (4)

CD Top
GRUPO CORAL E ETNOGRÁFICO OS CAMPONESES DE PIAS
O Cante na Margem Esquerda (8)



GRUPO CORAL E ETNOGRÁFICO AS CAMPONESAS DE CASTRO VERDE
Vozes das Terras Brancas (8)

Emi-Terra, distri. EMI-VC

Dois Alentejos. Duas maneiras diferentes de cantar o sol, a planície, a água das estrelas e a ansiedade da espera. Os dois grupos etnográficos em boa hora recuperados pela Emi-Terra simbolizam o Alentejo profundo e o cante na sua expressão mais pura e genuína.
Os Canto Chão oferecem a música de fusão, com a particularidade de serem, tanto quanto sabemos, o primeiro projecto deste tipo a tomar como base a música do Alentejo. De Pias e Castro Verde soergue-se o orgulho de um povo em permanente trabalho de parto com a natureza e em luta contra o centralismo cego e ignorante da uma pandilha governante, para quem o principal dos protocolos é lamber a mão aos donos da Europa. As mulheres de Pias venceram esse preconceito e essa ignorância. Durante anos, o regime fascista, através do seu porta-voz e ministro da Propaganda, António Ferro, quis fazer acreditar que o cante comunitário era vedado às mulheres. Não cantariam nas tabernas, sem dúvida lugar de cativeiro ou de abrigo do masculino tinto de pulmões e de pujança. Nem nos malfadados ranchos com que se quis domesticar o genuíno folclore do país, crime esse perpetrado do norte ao sul do território.
Mas a verdade – de resto já defendida por Giacometti – é que o canto e a voz da terra e dos rituais que ligam a gente a essa mesma terra sempre passaram no Alentejo pelo feminino. Nos baptizados, nos casamentos, nos bailes, nas festas, nos trabalhos do campo, onde quer que a música brotasse das gargantas e das almas a celebrar a vida, as mulheres cantavam ao lado dos homens.
O presente registo, efectuado há dois anos no Cine-Teatro de Castro Verde, com direcção artística de José Francisco Colaço Guerreiro e produção de Vitorino Salomé, é histórico, na medida em que é o primeiro a ficar gravado em disco. O Grupo de Castro verde mantém vivas as modas e o cante alentejanos. Com a mesma força e legitimidade dos homens. Numa outra relação, mais vibrátil, com os sons que atravessam e crucificam as terras brancas de uma alma com a extensão da planície.
Os homens de Pias não lhes ficam atrás. Gravado em 1993 no salão da igreja paroquial da vila, “O Cante na Margem Esquerda”, igualmente com produção de Vitorino, é o manifesto vivo deste agrupamento renascido do antigo Grupo Coral da Casa do Povo de Pias, que se dissolveu em meados dos anos 60, para ressurgir em 1967 já com a nova designação, graças ao empenho e trabalho do padre Gaudêncio, pároco de Pias, já falecido, e de Barão Espada Cachola, que permaneceu até hoje como director artístico e ensaiador do grupo.
Entre 1971, data de lançamento do primeiro álbum dos Camponeses de Pias, até 1993, mudaram o Alentejo (não muito…) e a atitude dos homens para com o cante. Como antes já outras mudanças, radicais, tinham acontecido. Do comunitarismo sem brechas e do canto ao improviso, até à entrada em cena da rádio, primeiro, e da televisão, no final da década de 50, a jornada foi longa. A pequena caixa demoníaca trouxe da estranja as músicas de rapazes ingleses de cabelos compridos e guitarras eléctricas para dentro das tabernas e dos salões de bailes. Os novos afastaram-se e duvidaram. O cante emigrou para perto da capital, onde sobreviveu a cantar com o aço cravado nas entranhas. O Grupo Coral e Etnográfico Os Camponeses de Pias souberam resguardar a alegria e a verdade da sua música contra as investidas da “modernidade”. Uma modernidade que afinal recebeu de braços abertos a voz antiga, a voz que este grupo soube manter acesa e actuante.
Depois de se escutar estes dois grupos, a audição dos Canto Chão arrefece os ânimos. Atrás deles vem a óbvia invasão da música árabe, com todos os lugares-comuns que a ela se associam. O tema de abertura é pimba, sem dúvida para causar impacte nas feiras de cassete. Do resto, aproveita-se pouca coisa. A influência de Vitorino e Janita Salomé (“Extravagante”) nas vocalizações de Arlindo Costa é notória e a heresia de um teclado a imitar uma gaita-de-foles, em “Senhora Maria”, não afasta a sensação geral de facilidade (até porque os Canto Chão não são propriamente os Gaiteiros de Lisboa…) e, por vezes, de um certo maus gosto, na forma como o grupo (não) resolveu o problema dos arranjos. Há um cheirinho a Romanças, a Azucar Moreno e a Shegundo Galarza neste “etno easy listening” de trazer por casa. Escutam-se com mais respeito “Extravagante” e “Rouxinol repenica o cante”, temas onde a fusão não retira dignidade às verdadeiras músicas do Sul. Algo, porém, que os irmãos Salomé já tinham feito antes e infinitamente melhor.
“Ventos do Sul” possui algumas ideias curiosas mas não resiste ao desequilíbrio de querer conciliar a ânsia de agradar a todo o custo com o desejo de uma pesquisa em maior profundidade.