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Canto Chão – “Ventos Do Sul” + Grupo Coral E Etnográfico Os Camponeses De Pias – “O Cante Na Margem Esquerda” + Grupo Coral E Etnográfico As Camponesas De Castro Verde – “Vozes Das Terras Brancas”

Pop Rock

3 de Julho de 1996
world

Entre o céu e o chão

CANTO CHÃO
Ventos do Sul (4)

CD Top
GRUPO CORAL E ETNOGRÁFICO OS CAMPONESES DE PIAS
O Cante na Margem Esquerda (8)



GRUPO CORAL E ETNOGRÁFICO AS CAMPONESAS DE CASTRO VERDE
Vozes das Terras Brancas (8)

Emi-Terra, distri. EMI-VC

Dois Alentejos. Duas maneiras diferentes de cantar o sol, a planície, a água das estrelas e a ansiedade da espera. Os dois grupos etnográficos em boa hora recuperados pela Emi-Terra simbolizam o Alentejo profundo e o cante na sua expressão mais pura e genuína.
Os Canto Chão oferecem a música de fusão, com a particularidade de serem, tanto quanto sabemos, o primeiro projecto deste tipo a tomar como base a música do Alentejo. De Pias e Castro Verde soergue-se o orgulho de um povo em permanente trabalho de parto com a natureza e em luta contra o centralismo cego e ignorante da uma pandilha governante, para quem o principal dos protocolos é lamber a mão aos donos da Europa. As mulheres de Pias venceram esse preconceito e essa ignorância. Durante anos, o regime fascista, através do seu porta-voz e ministro da Propaganda, António Ferro, quis fazer acreditar que o cante comunitário era vedado às mulheres. Não cantariam nas tabernas, sem dúvida lugar de cativeiro ou de abrigo do masculino tinto de pulmões e de pujança. Nem nos malfadados ranchos com que se quis domesticar o genuíno folclore do país, crime esse perpetrado do norte ao sul do território.
Mas a verdade – de resto já defendida por Giacometti – é que o canto e a voz da terra e dos rituais que ligam a gente a essa mesma terra sempre passaram no Alentejo pelo feminino. Nos baptizados, nos casamentos, nos bailes, nas festas, nos trabalhos do campo, onde quer que a música brotasse das gargantas e das almas a celebrar a vida, as mulheres cantavam ao lado dos homens.
O presente registo, efectuado há dois anos no Cine-Teatro de Castro Verde, com direcção artística de José Francisco Colaço Guerreiro e produção de Vitorino Salomé, é histórico, na medida em que é o primeiro a ficar gravado em disco. O Grupo de Castro verde mantém vivas as modas e o cante alentejanos. Com a mesma força e legitimidade dos homens. Numa outra relação, mais vibrátil, com os sons que atravessam e crucificam as terras brancas de uma alma com a extensão da planície.
Os homens de Pias não lhes ficam atrás. Gravado em 1993 no salão da igreja paroquial da vila, “O Cante na Margem Esquerda”, igualmente com produção de Vitorino, é o manifesto vivo deste agrupamento renascido do antigo Grupo Coral da Casa do Povo de Pias, que se dissolveu em meados dos anos 60, para ressurgir em 1967 já com a nova designação, graças ao empenho e trabalho do padre Gaudêncio, pároco de Pias, já falecido, e de Barão Espada Cachola, que permaneceu até hoje como director artístico e ensaiador do grupo.
Entre 1971, data de lançamento do primeiro álbum dos Camponeses de Pias, até 1993, mudaram o Alentejo (não muito…) e a atitude dos homens para com o cante. Como antes já outras mudanças, radicais, tinham acontecido. Do comunitarismo sem brechas e do canto ao improviso, até à entrada em cena da rádio, primeiro, e da televisão, no final da década de 50, a jornada foi longa. A pequena caixa demoníaca trouxe da estranja as músicas de rapazes ingleses de cabelos compridos e guitarras eléctricas para dentro das tabernas e dos salões de bailes. Os novos afastaram-se e duvidaram. O cante emigrou para perto da capital, onde sobreviveu a cantar com o aço cravado nas entranhas. O Grupo Coral e Etnográfico Os Camponeses de Pias souberam resguardar a alegria e a verdade da sua música contra as investidas da “modernidade”. Uma modernidade que afinal recebeu de braços abertos a voz antiga, a voz que este grupo soube manter acesa e actuante.
Depois de se escutar estes dois grupos, a audição dos Canto Chão arrefece os ânimos. Atrás deles vem a óbvia invasão da música árabe, com todos os lugares-comuns que a ela se associam. O tema de abertura é pimba, sem dúvida para causar impacte nas feiras de cassete. Do resto, aproveita-se pouca coisa. A influência de Vitorino e Janita Salomé (“Extravagante”) nas vocalizações de Arlindo Costa é notória e a heresia de um teclado a imitar uma gaita-de-foles, em “Senhora Maria”, não afasta a sensação geral de facilidade (até porque os Canto Chão não são propriamente os Gaiteiros de Lisboa…) e, por vezes, de um certo maus gosto, na forma como o grupo (não) resolveu o problema dos arranjos. Há um cheirinho a Romanças, a Azucar Moreno e a Shegundo Galarza neste “etno easy listening” de trazer por casa. Escutam-se com mais respeito “Extravagante” e “Rouxinol repenica o cante”, temas onde a fusão não retira dignidade às verdadeiras músicas do Sul. Algo, porém, que os irmãos Salomé já tinham feito antes e infinitamente melhor.
“Ventos do Sul” possui algumas ideias curiosas mas não resiste ao desequilíbrio de querer conciliar a ânsia de agradar a todo o custo com o desejo de uma pesquisa em maior profundidade.