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Cliff Richard e Eros Ramazzotti – “Madurezas”

Pop-Rock Quarta-Feira, 04.12.1991


MADUREZAS

Cliff Richard e Eros Ramazzotti personificam, à sua maneira, os lados “bom” e “mau” do Natal discográfico deste ano, fornecendo estímulos opostos ao apelo contraditório que pulsa no coração e na líbido da meia-idade. Entre a depravação e a abstinência, que venha o Pai Natal do mau gosto e escolha.



A humanidade divide-se em duas partes, como diria o sociólogo Serafim Saudade: a parte A e a parte B (sem falar na parte C, que são as minorias). No Natal, só conta a parte B. “B” de bons e boas. “B” de beleza, “B” de boa vontade. No Natal, toda a música é boa e penetra melhor nos corações. Tendo em conta o que nos é proposto pelos discos que esta quadra pousaram de trenó nas chaminés (“Música para Fazer Amor”, por exemplo), ela é capaz até de dar “uma forcinha” e ajudar a penetrar noutros lugares, quiçá mais íntimos, mas que nem por isso deixam de fazer parte da natureza humana.
Às vezes, porém, exagera-se e vai-se longe de mais. É o caso do duplo-álbum “Eros in Concert” do italiano Eros Ramazzotti. Eros era considerado pelos gregos o deus (melhor dizendo um “daimon”, demónio, no sentido de génio) do amor. Adaptando as funções do “daimon” às necessidades do coiso, e contemplando o ser na sua totalidade, Eros acabou por dar para os dois lados, como se costuma dizer. O HIV ainda hibernava.

Eros Em Acção



“Eros in Concert” é um disco e uma metáfora sobre o amor, na sua vertente “último tango”, dirigida à meia-idade – aquela que pisca muito os olhos, quando traz do clube o vídeo “hard-core”, para ver a meias com o cônjuge, numa atitude de “grande abertura de espírito”, que serve de preliminar às aberturas consequentes.
Toda a gente sabe que ao vivo é que é bom. À distância, não tem muita graça. Em estúdio, também não costuma resultar, devido à falta de espaço. Eros Ramazzotti sabe isso muito bem e trata de friccionar as líbidos das multidões, sugerindo orgias monumentais, que acabam por retirar muito de significado àquela maravilhosa diálise entre dois seres que é o amor.
Basta observar a fotografia impressa na parte interior da capa, para ficarmos a perceber as verdadeiras intenções deste pornógrafo encapotado: uma multidão ululante de braços bem erguidos para o alto, em estado de tensão latente. É óbvio que os braços são metáforas, e é neste ponto que deveria haver um pouco mais de contenção (já não digo de puidor), na exibição descarada dessa ascese gestual. Na contracapa, as coisas pioram, já que na foto é o próprio Eros que ergue o braço, com o dedo indicador bem espetado para a frente.
Depois, os títulos das canções não enganam: “Intro” (versão “soft” de “Introdução”), “Fuggo dal nulla” (“Fogo nela”), “Taxi story” (“No banco de trás”), “Ciao pà” (“Não me apetece, pá”) e “Ancora vita” (“Ainda mais depressa”). Todo um estendal de obscenidades de fazer corar o mais liberal. Mas no calor e no aconchego do lar, o casal, não de pombinhos, mas de pombos, dá cambalhotas de contente (correndo mesmo o risco de, numa pirueta mais exuberante, deitar abaixo o pinheiro de Natal) e refastela-se na perversão. Que ninguém se iluda. A cada cambalhota, a cada pinote, é toda a civilização ocidental que vacila, minada nos seus alicerces.
Nesta perspectiva “Eros in Concert” é bem um disco do nosso tempo e um exemplo acabado da atitude pós moderna, que serve de antecâmara ao apocalipse. Homens e mulheres de Portugal é isto que quereis? Não, mil vezes naaããooo! Lancemos Eros à fogueira e cantemos todos juntos um hino de Natal.

Ágape Em Descontracção



Por exemplo, o álbum de Cliff Richard, “Together”, serve na perfeição para nos limparmos do pecado e juntarmos as mãos, num gesto fraterno de amor ao próximo. Desde sempre mouco aos apelos do Eros demoníaco, Cliff Richard continua a representar o papel de rapazinho virtuoso que só dá bons conselhos e aponta o caminho da salvação (diferente do dedo ostensivo de Ramazzotti). Olhar a expressão extasiada, sobre um fundo de estrelas, que ostenta na capa, é meio caminho andado até ao paraíso. O outro meio, nem se dá por ele. Entre um suspiro e um cântico de paz, eis-nos chegados ao céu, levados pelo beicinho, ao som da voz de menino de coro de Cliff Richard.
“Saviours’s day”, “Merry Christmas to you”, “We should be together” ou “Christmas alphabet” são outros tantos hinos de amor, agora sim, na sua plenitude de comunhão (platónica, atenção!) com o próximo, dando sentido ao “ágape” que simboliza o casamento. Dar as mãos, porque não? Olhar as estrelas, porque não? Um beijo na testa antes de adormecer, porque não? São gestos bonitos, que dignificam o ser humano, exemplos a seguir por todos os homens e mulheres de boa vontade, em vez de andarem pelos caminhos da perdição e da pouca vergonha.
“Let your heart be high”, “Someday soon we all be together”, “Sleep in heavenly oeace” são apenas alguns exemplos escolhidos ao acaso das letras de canções de Cliff Richard. Palavras sábias, que calam fundo nos corações de todos. Saibamos ser dignos delas. E para os casais entrados na meia-idade aqui fica o conselho, dado pelo cantor, em “This new year”: “Don’t you depend on love that’s here then gone / this new year we’ re gonna find true love and cherish it always”. A mensagem não podia ser mais clara: “Prò ano que vem trabalhem mais e façam isso menos”. Vamos entrar na CEE e há que poupar energias. Por que não já neste Natal?



EROS RAMAZZOTTI
Eros in Concert
2XLP / CD, DDD, distri. BMG

CLIFF RICHARD
Together
LP / CD, EMI, distro, EMI – Valentim de Carvalho

Yello – “Essential Yello” (vídeo)

pop rock >> quarta-feira, 13.01.1993
Vídeos

BARRACA BARROCA


YELLO
Essential Yello
62’52”, Polygram Vídeo, distri Polygram



Correspondente em imagem ao disco e CD do mesmo nome reunindo alguns dos maiores êxitos da banda suiça de electropop, tendência dadaísta. Boris Blank, bigode, ar de engatatão latino, e Dieter Meier, bigode, “dandy” quarentão alisado a brilhantina, privilegiam o humor em detrimento da seriedade. Gostam de dar barraca. Faixa a faixa, encenam pequenas peças de absurdo, iluminadas a cores primárias – amarelo, verde, azul e vermelho -, servindo-se sobretudo do jogo histriónico e da gestualização levada ao ridículo. Requebros de galinha, esgares mirabolantes, poses “macho” e de matador compõem uma comédia em que as personagens secundárias (invariavelmente, uma “partenaire” com ar de escriturária à moda antiga que faz de mulher fatal e é cortejada de todas as formas e feitios e uma miúda novinha no papel de anjinho “kitsch”, cheia de sedas e auréolas) acentuam ainda mais o lado cómico e descabelado da acção.
Há corridas de automóvel com a menina Henriqueta (chamemos assim à senhora de óculos que parece sempre ter acabado de despir a bata), que é mais rápida que os bólides, Boris a fazer olhinhos de carneiro mal morto à menina Henriqueta que se vestiu de adolescente e se enfiou num descapotável “sixties”, Dieter a morrer de amores (pela menina Henriqueta?) e solidão num parque de diversões, caçadas numa selva de plástico, serenatas a manequins como o de “In every dreamhome a heartache”, de Bryan Ferry, e máquinas de “flippers” animadas. Ou seja, é quase sempre a brincar e em ritmos fortes, visto que a maioria dos temas, os mesmos dos formatos áudio (com excepção de “Driver/driver”, que no vídeo foi substituído por “Who’s Gone?”), são os mais comerciais e os escolhidos para a edição em single. Tudo num registo barroco recortado a papelão com forro dourado.
Duas canções escapam à tónica dominante: “Bostich”, um exercício de estética industrial criado na época em que os Yello rivalizavam em estranheza com os Residents, na editora Ralph, e “The rhythm divine”, na qual os dois suiços se rendem à voz de Shirley Bassey, deixando a câmara ocupar-se com ela, pondo por uma vez de lado a folia.
O único senão de “Essential Yello” é a insistência numa única fórmula. A concepção estética dos diversos clips é idêntica. As caretas, à medida que se avança através dos 16 temas, vão perdendo a graça, a iluminação, de chocante, passa a embirrante. Por fim, até a batida “disco” e as vozes de fantoche típicas dos Yello acabam por tornar-se maçadoras. Sabe-se como as imagens podem ser redutoras da mensagem musical, banalizando-a e tornando explícito o que vivia da sugestão. “Essential Yello” sofre deste mal. Salvam-se as coreografias patuscas e as expressões de virgem louca da menina Henriqueta. (6)

Reis do Mambo, Diabólicos – “Reis Do Mambo Portugueses Dão Baile Nos Alunos De Apolo – Dançar De Memória”

Cultura >> Quinta-Feira, 16.04.1992


Reis Do Mambo Portugueses Dão Baile Nos Alunos De Apolo
Dançar De Memória


Os Reis do mambo em Portugal chamam-se Diabólicos. São o testemunho vivo de um passado em que não se tinha vergonha de dançar e sentir o calor do outro corpo. Mas, na noite de terça-feira, na Sociedade dos Alunos de Apolo, os corpos voltaram a abraçar-se. Ao som do mambo, das rumbas e boleros da nossa imaginação. Quem resiste à vertigem quando se tocam canções de amor?



Tudo começou nos anos 40, no salão de festas Palladium, na Broadway, Nova Iorque, para acabar terça-feira à noite na Sociedade Filarmónica Alunos de Apolo, em Campo de Ourique, a “catedral das danças de salão”, como lhe chamam. Na Broadway como nos Alunos de Apolo, o mambo foi o rei da festa e os seus intérpretes os “reis do amor”. Reinaram os Diabólicos Troupe Jazz, únicos sobreviventes de um tipo de agrupamentos que entre os anos 40 e 60 abrilhantaram os bailes da sociedade lisboeta e incendiaram os corações e não só dos jovens dessa época.
Nos Alunos de Apolo, há baile todos os fins de semana. Há o gosto pela dança. Ensina-se quem quer e elegem-se os melhores. O baile desta noite serviu para assinalar a edição simultânea do livro e do CD “Los Reyes del Mambo Tocan Canciones de Amor”, o primeiro da autoria de Oscar Hijuelos, o segundo uma colectânea que reúne os melhores intérpretes do género.

“Volare” Pelo Salão

Anunciavam-se bebidas tropicais, um cheiro a exotismo e muita sensualidade. As bebidas tropicais eram estranhas e ostentavam designações bizarras: “sumo de laranja”, “vinho branco” e “imperial”. Serviram às mil maravilhas para pôr toda a gente bem disposta. Os Diabólicos fizeram o resto e mostraram “como se tocava nesse tempo para os amantes da música de salão”. Começaram nas Caraíbas, com mabos, rumbas e boleros a preceito e acabaram nas “emoções” de Roberto Carlos: “Aqueles ojos negros”, “Volare”, com muita gente a cantar o refrão “nel blu dipinto di blu”, “Kanimambo”, “Pensylvannia Station”… Domenico Modugno, João Maria Tudela e Glenn Miller misturados na recordação de outros tempos em que não se tinha vergonha de dançar agarrado ao parceiro nem de rodopiar pelo meio da pista…
Sensualidade não houve muita, pelo menos que se comparasse à que antigamente acontecia em clubes como o “Mamboscope”, nos chamados “mambobacanais” onde as “muchachas lucian trajes sensuales y bailavan com movimentos provocativos cambiando de pareja al final de cada canción”.
Não faltaram demonstrações nem um concurso de dança de salão. Agora chamam-lhe “dança desportiva” – porque já “estamos integrados na Europa”, explicou o apresentador – e há pares campeões nacionais: José Carlos e Lena, Armando e Anabela e os campeoníssimos Marina e Alberto que positivamente voaram entre as colunas do salão embalados por uma valsa de Viena ou “desenvolvendo jazz”, segundo a explicação científica dada pelo apresentador da noite a um “swing” de Glenn Miller.

“Toda Uma Filosofia Sobre A Dança”

Entre os dançarinos havia-os ilustres. Teresa Guilherme, de mini-saia primaveril, regozijava-se por “se viver uma fase em que as pessoas perderam a vergonha de dizer que gostam de dançar”. A apresentadora do “Eterno Feminino” só parou para descansar. Mais calmo, o historiador José Mattoso também não se coibiu de ensaiar uns passos de dança. Veio “só para acompanhar os amigos” mas acabou por se render e concordar que “estes ritmos são muito envolventes e que em todas as épocas as pessoas gostam de dançar”. No final, ele e a ensaísta Teresa Rita Lopes foram um dos pares premiados pelo júri do Concurso.
Carlos do Carmo trocou por uma noite o fado pelas emoções fortes da rumba e do chá-chá-chá. O autor de “Um Homem na Cidade” apontou os jovens, abaixo dos 25 anos, que “não sabem dançar estas danças nem fazem a mínima ideia de como o fazer” e referiu-se aos dias de hoje, “vazios de memória”. Para ele uma noite como esta “não foi revivalismo mas um exercício de memória”, mesmo que a velha-guarda se tenha mostrado “um pouco destreinada”.
Zita Seabra, ex-dirigente da comissão política do PCP e editora, também “gosta muito de dançar” e choca-se com que “dança para se exibir e não para estar com a outra pessoa”. Correndo o risco de “parecer um arcaísmo”, a dissidente comunista acha que “a dança é uma coisa para se fazer a dois – não é possível dançar o tango sozinho no meio da pista”. “Eis toda uma filosofia sobre a dança” – disse, antes de desaparecer rodopiando entre as colunas do salão.

“Acabava Tudo À Batatada”

Sobre o palco, o sr. Alfredo Manuel, 64 anos de idade, 43 anos a tocar banjo nos Diabólicos, viu de novo desenrolar-se um filme e um baile sempre iguais – “apanhei três gerações, vou a caminho da quarta, de pessoas a dançar” – mas sempre diferentes: “Antes dançava-se até às 7h00 da manhã, havia concursos de “dance-hall”, tocava-se Fox a prémio e normalmente acabava tudo à batatada”. Hoje os Diabólicos Troupe Jazz, formados em 1947, em Campo de Ourique, ali ao pé do Jardim da Parada, são a única “troupe” do género existente em Portugal e teimam em manter viva uma época de ouro só perturbada à entrada dos anos 60 pelo aparecimento da “música yé-yé que começou a separar os pares uns dos outros”. Os Beatles vinham substituir as “troupes” que tocavam “temas das melhores orquestras americanas, do Glenn Miller, Harry James e tantos outros”.
O sr. Alfredo e os Diabólicos são um sonho de que ninguém quer acordar. Tocam todos os fins-de-semana, e até sempre, nos bailes dos Alunos de Apolo. Tocam canções de amor.

caixa

“Los Reyes del Mambo Tocan Canciones de Amor”
CD, EDiÇÕES MANZANA
Mambo! Só o nome tem a força de uma explosão. Se Rambo é o rei dos músculos, mambo é ginástica para os músculos do amor. O CD apresenta 22 versões originais dos anos 40 e 50, interpretadas pelos melhores intérpretes da música latino-americana: Tito Puente (considerado “el rey del timbal”) e a sua orquestra, Machito & his Afrocubans, Tito Rodriguez & Orquestra, Celia Cruz, Graciela, Neno Gonzales, José Fajardo & Orquestra, Alfredito Valdez, Rosendo Ruiz Jr. E a Orquestra Super Colosal. Trompetes, marimbas, “steel drums” não dão descanso aos pés nem ao coração. As vozes de Celia Cruz e de Graciela sussurram ou gritam desafios de sedução no calor da noite. O mambo nasceu nas Caraíbas, mas estendeu-se rapidamente ao continente americano, desejoso de suar em lutas corpo-a-corpo, dos abraços nos clubes aos enlaces no divã. Mambo é ritmo de exibicionistas, dos mil requebros inventados só para provocar. Canções de amor? Mais de paixão. Um disco abrasivo, de atear incêndios. Um disco que é fogo.