Arquivo mensal: Janeiro 2022

Andrew Cronshaw – “The Language Of Snakes”

pop rock >> quarta-feira, 15.12.1993
WORLD


Andrew Cronshaw
The Language Of Snakes
Topic, distri. MC – Mundo da Canção



Se os dois discos anteriores de Cronshaw, “Till the Beast’s Returning” e “The Great Dark Water”, eram espelhos em que reflectiam o lado ascético e ambiental da folk (suspiro) celta, este novo trabalho, aguardado com grande expectativa, é antes de mais um exercício de estilo que se espreguiça nas divagações da cítara, do “kantele” (saltério escandinavo), do “gu-cheng” (outra variante de saltério) e outros instrumentos com som de cristal. Como de costume Cronshaw pesca em águas alheias, neste caso a Galiza e a Escandinávia, mas a extrema diversidade de ambientes e instrumentos queda-se por uma beleza superficial que, nos piores momentos (por exemplo, aqueles em que Cronshaw toca “tin whistle”, instrumento que manifestamente não domina), não deixa de lembrar os recentes dislates de Alan Stivell. Entre os convidados (B. J. Cole, Ric Sanders…), destaca-se uma das vocalistas dos Hedningarna, Sanna Kurki – Suonio, a quem o multinstrumentista inglês parece ter obrigado a ingerir um frasco de “valiums” antes de cantar. (6)

Altan – “Island Angel” + Déanta – “Déanta”

pop rock >> quarta-feira, 15.12.1993
WORLD


PASSAGEM DE TESTEMUNHO

ALTAN
Island Angel (8)

DÉANTA
Déanta (7)
Green Linnet, distri. MC – Mundo da Canção



Há quem já não aguente ouvir música irlandesa e há quem já não possa viver sem ela. Os primeiros estão saturados e dizem que é sempre a mesma coisa. Por culpa, se calhar, dos muitos “irlandeses” que pululam um pouco por todo o lado, compenetrados a decalcar os tiques e em fazer música a metro. Esses não ouviram o suficiente ou suficientemente fundo. Os segundos, pelo contrário, descobrem mil pormenores e novidades onde, à superfície, estes parecem não existir. É o amor verdadeiro e duradoiro. Os Altan, numa primeira aproximação ao seu quinto álbum, parecem ter renunciado e experimentar novos arranjos, como acontecia no anterior “Harvest Storm”. Onde este se aventurava em arranjos inovadores, que iam até À utilização de um “didgeridoo”, “Island Angel” mostra-se mais clássico, no sentido em que dispensa o acessório e o polimento exterior, para se concentrar no estudo e desenvolvimento do que mais “tradicional” existe na música tradicional irlandesa. A disposição dos temas não poderia ser mais convencional, alternando as típicas sequências instrumentais de “jigs” e “reels” (aqui também um “strathspey” e uma mazurka – fabulosos os diálogos dos violinos de Ciaran Tourish e Mairéad Ní Mhaonaigh) com baladas vocais superiormente interpretadas por Mairéad que, de disco para disco, se vem afirmando como uma das grandes vozes femininas da nova geração. O que é espantoso e um atestado de vitalidade desta música é a sua continuidade, garantida pela transmissão, de geração para geração, de um legado que não cessa de ser reactualizado. Ao ponto de so Altan não poderem já ser considerados novatos. Da formação actual fazem parte, de resto, o veterano guitarrista Daithi Sproule (conhecido dos Buttons & Bows), já para não falar, entre os convidados, do omnipresente Donal Lunny e do mestre do “bodhran” Tommy Hayes. Conseguiram, para já (e, atenção, porque isto só está ao alcance dos melhores), alcandorar-se a sucessores dos monstros (Planxty, De Danann, Bothy Band), por mérito próprio, ultrapassando, pelo menos até agora, o perigo, geralmente fatal, que atinge o número restrito de bandas que saem do circuito restrito da folk para o mercado de massas. Problema, aliás, que o último número da “The Living Tradition” aborda no seu editorial. Ao contrário dos Capercaillie e dos Clannad (cuja leitura de “Dúlamann”, canção infantil e título-tema do seu melhor álbum de sempre, é curioso comparar com o vigor da nova versão dos Altan), a música dos Altan não se descaracterizou, antes revelando da parte dos membros da banda a maturidade de quem sabe o que quer. “Island Angel” está cheio de boa música. Procure-se – quem já aprendeu a distinguir dentro e fundo na música irlandesa – os pormenores de execução dos violinos e da flauta de Frankie Kennedy, o “drive” instrumental que faz parecer fácil o que é imensamente difícil, a serenidade do canto, longe da imediatez e do verniz com que alguns conseguem prender a atenção de quantos vêem nesta música apenas uma moda. A ouvir e a saborear aos poucos, como um bom vinho, tirando o melhor partido do manancial de prazeres postos à nossa disposição. “Vintage” Altan, em suma. Na peugada dos Altan seguem já os Déanta, quatro raparigas e um rapaz, trazendo consigo um outro tipo de proposta, mais acessível e próximo de um certo “approach” dos anos 70, no qual a harpa de Eóghan O’Brien e a voz dulcérrima de Mary Dilloon se apresentam como vectores principais de um som que procura ser cativante e, por enquanto, se apresenta sem elementos de choque. Uma sonoridade límpida que por norma anda associada a certas bandas escocesas, em particular as conotadas com o selo Iona, faz dos Déanta um reservatório de frescura e um dos valores a ter em conta entre os candidatos ao lugar hoje ocupado pelos Altan. Até outros, mais novos, virem por sua vez tomar o seu lugar…

Rui Veloso – “A Comissão Dos Descobrimentos Virou-nos As Costas” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira, 15.12.1993


“A COMISSÃO DOS DESCOBRIMENTOS VIROU-NOS AS COSTAS”

Com a publicação de “Fora de Moda” e “Guardador de Margens”, fica a partir de agora disponível em compacto a discografia completa de Rui Veloso. Entre lamentos, receios e acusações, o “pai do rock português” pretende para já esquecer o “Auto da Pimenta”.



Da nossa entrevista com Rui Veloso ressalta a ideia de que o músico portuense não conseguiu até agora a ssumir o controlo da sua obra e do seu próprio destino como artista. Insatisfeito por natureza, continua à procura do som e das condições ideais.
PÚBLICO – O que o levou a remisturar os temas “Fora de Moda” e “Guardador de Margens”?
RUI VELOSO – Estes discos tiveram uma gravação muito confusa. Havia pianos em mono, muito amadorismo, ninguém percebeu muito bem o que se estava a fazer. Sempre fui um bocado cobaia dos técnicos novos. E foi numa altura em que andava mal comigo mesmo. Uma balda.
P. – Nunca conseguiu ter um mínimo de controlo?
R. – Nem pensar. A única vez em que julguei que isso era possível foi quando fui misturar o “Maubere” a Miami, com o Nuno Bettencourt e os gajos dos Extreme.
P. – É uma crítica subtil aos profissionais de estúdio portugueses?
R. – Não é subtil, é directa.
P. – Onde é que eles falham?
R. – Na experiência, no conhecimento, na humildade, na vontade de querer saber mais. Normalmente, os técnicos de cá, os engenheiros, querem logo ser produtores, armados em vedetas…
P. – Não deixa de ser estranguém com o seu estatuto não consiga impor condições…
R. – Deixo-me convencer. Por exemplo: o som de “Mingos e os Samurais” e do “Auto da Pimenta” é demasiado “soft”. Não queria que fosse assim. Preferia um som mais duro, emq eu a bateria soasse de facto como uma bateria e não como uma coisinha qualquer que estivesse para ali. O “Mingos e os Samurais” foi gravado em condições inenarráveis, um dos canais da mesa (ou os dois) só funcionava à murraça [risos]. Caía pó lá para dentro – uma vez o pessoal enrolou umas “joanas” e no fim os gajos da limpeza, ao verem as sementes de erva, diziam que aquilo até alpista tinha lá dentro.
P. – Em que ponto se encontra o seu diferendo com o Carlos Tê?
R. – Ele é capaz de ter tido alguma razão em coisas como as minhas ligações, entre aspas, políticas, que foram muito empoladas, os espectáculos que fiz patra o PSD. Muita gente fez disso cavalo-de-batalha. O Carlos também não concordou.
Depois, a minha vida era um bocado nocturna e boémia de mais e ele já não era um tipo mais certinho do que eu. Eu gostava era de beber uns copos… É a vida, um gajo anda sozinho e… é a borga! Entretanto, casei e deixei-me de boémias.
P. – Gravou de seguida dois álbuns duplos, “Mingos e os Samurais” e “Auto da Pimenta”…
R. – Dois duplos seguidos foi de loucura, uma coisa que não se deve fazer, anticomercial.
P. – Então porque razão aceitou fazer o “Auto da Pimenta”? Por dinheiro?
R. – Qual dinheiro? Fizemos esse disco porque eu e o Tê achámos a ideia interessante e porque nos prometeram que iríamos fazer espectáculos com ele nas capitais de distrito e outro em Sevilha, com uma encenação engraçada…
P. – O que não chegou a acontecer…
R. – Claro que não, porque a Comissão dos Descobrimentos virou-nos completamente as costas. Até uma certa altura, diziam que o disco era o máximo e de repente deixaram-nos cair. Uma coisa indecente, até porque tencionávamos tocar na mesma o “Auto da Pimenta”, mas aproveitando o esteio do “Mingos e os Samurais”, que na altura estava mais do que vivo, com espectáculos para oito, dez, 15 mil pessoas. Fui obrigado a interromper esses concertos, para os quais, na época, havia já qualquer coisa como cem pedidos.
Economicamente, foi um desastre. Ganhámos 1500 contos com a porcaria do “Auto da Pimenta”. O pessoal julga que ganhámos um balúrdio. Mentira!
P. – Porque razão a Comissão dos Descobrimentos “deixou cair” o álbum?
R. – Não faço a mínima ideia. Disseram que gostaram e que iam comprar e oferecer não sei quantos discos, mas foi tudo ao contrário. A editora parece que também se desinteressou um bocado do disco. Não sei. Houve um episódio que mostra bem como pensam algumas pessoas da Comissão. Na ocasião de uma entrega oficial de um prémio qualquer a um artista africano, com a presença de ministros, tudo muito solene, o Vasco Graça Moura veio ter comigo para me perguntar se eu não me importava de ficar de pé – porque era capaz de ter piada -, num dos lados do corredor a tocar guitarra, quando a comitiva passasse! Fiquei hirto, não queria acreditar. Só faltava a caixa das esmolas…
P. – Ainda está a recuperar do choque?
R. – Ainda estou mais do que a recuperar, porque paguei do meu bolso os ensaios de sete músicos e depois acabou por não se fazer o espectáculo. O único que fiz foi o de Sevilha no qual a Comissão dos Descobrimentos andou a dizer com uma grande lata que eu ia apresentar exclusivamente o “Auto da Pimenta”. Toquei o que me apeteceu, até um “blues”. Cheguei à conclusão que era impossível levar o “Auto da Pimenta” para a estrada. Não tinha dinheiro para o fazer.
P. – Tudo isso deveria ter sido negociado antes?
R. – Não ficou nada escrito. A Comissão chegou a ter ideias megalómanas para o espectáculo de Sevilha, coisas malucas, e eu preferia uma coisa mais simples. E agora tenho um problema entre mãos: é que os estrangeiros gostam do “Auto da Pimenta”, os belgas, suiços, holandeses, dinamarqueses, até os islandeses…
P. – Como é que o disco chegou lá?
R. – Foi editado em França, saiu também na Suiça. Na Suiça, mostraram aos holandeses… Neste momento é um problema, porque há uma crise inegável e isso reflecte-se na falta de trabalho.
P. – Isso significa que tão cedo não se vai livrar do “Auto da Pimenta”?
R. – Mais frustrado fiquei porque uma das minhas ideias era fazer o “Auto da Pimenta” ao vivo, mas como deve ser, e não o consegui. Neste momento não sei… acho que vou apenas tirar algumas músicas. Não gostaria que a Comissão dos Descobrimentos viesse agora a beneficiar de uma coisa pelual não fez nada, a não ser pura e simplesmente gastar dinheiro, não sei bem em quê.
P. – Em relação às vendas do disco no estrangeiro, não se interessa em saber pormenores? Não pode perguntar à editora?
R. – Interessa-me, preocupo-me, e até estou um bocado assustado, mas esqueço-me de perguntar…
P. Está arrependido de ter gravado o “Auto da Pimenta”?
R. – Se soubesse então o que sei hoje, nunca o teria gravado naquela altura [1991]. A Comissão indicou-me um prazo para tocar em Sevilha e para acabar o disco, para o promover e tal. Tudo mentira. Na volta, agora é que devia estar a fazer o “Auto da Pimenta”, se calhar até com o Davy Spillane. Sempre tive a mania das “uillean pipes”, mas ele pediu 1500 contos só para tocar numa música…
P. – Em definitivo, não quer ser uma estrela do “rock and rol”?
R. – É uma questão insuportável. Prefiro contactar com as pessoas individualmente, beber uns copos com elas. Tenho aversão aos estádios, é uma coisa impessoal, não se vê ninguém. Já recebi convites para o fazer e não aceitei. E dava-me um balúrdio de dinheiro.
P. – Se pudesse viver doutra maneira, deixava a música?
R. – Gostava – se conseguisse assumir outra postura – de ser arquitecto, uma coisa que tivesse a ver com expressar algo que vai cá dentro, as confusões que vão na cabeça.
P. – A música não dá para fazer isso?
R. –Dá, às vezes. Mas noutras ando três ou quatro meses sem conseguir fazer nada. É uma grande chatice. Tenho a sensação que se apagou a luz. Depois consigo. É aquilo do “yin” e do “yang”, o negativo e o positivo.
P. – Em que fase se encontra neste momento?
R. – Em baixo. Ando um bocado angustiado. Não trabalho em continuidade há muito tempo, não tenho feito músicas. Também ando assim por ver aquelas imagens na televisão, a miséria dos outros, pela qual é preciso fazer qualquer coisa. Às vezes angustio-me por nada.
P. – De todas as suas canções, qual é a sua preferida?
R. – “Não há estrelas no céu”.