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Skylark – “Light And Shade” + Trian – “Trian”

pop rock >> quarta-feira, 03.03.1993
WORLD


Skylark
Light And Shade (9)
CD Claddagh, distri. VGM
Trian
Trian (9)
CD Flying Fish, distri. VGM



Por vezes dá a ideia de que a música tradicional da Irlanda sofre de excesso de abundância e oferta. Grupos e solistas, ainda por cima de alta qualidade, existem às dezenas, senão às centenas, pela ilha Esmeralda. Novos nomes surgem a um ritmo alucinante, enquanto a velha guarda se divide por múltiplos projectos, explorando novas ideias e trocando sensibilidades. Aos leigos, já o ouvi da boca de alguns, a música irlandesa soa sempre igual. Pura ilusão. Esquecem, ou não sabem, que o prazer, resultante do convívio sistemáticos com este tipo de música, reside em grande parte na descoberta de diferenças, na comparação de estilos, individuais e colectivos, no confronto de abordagens diversas a uma música que constantemente se renova e inventa novas vias. Tudo isto se aplica aos discos em questão. Os Skylark, em segunda etapa, a seguir a “All of it”, e os Trian, em estreia, partilham entre si semelhanças óbvias. O gozo está em avaliar as diferenças. E em saborear, caso se esteja nas tintas para o raciocínio analítico, a excelência da música, independentemente dos modos da sua criação.
A primeira semelhança é visível logo no formato instrumental. Skylark e Trian apresentam a configuração típica violino / acordeão / guitarra, no caso dos Skylark aumentado por um bodhran. Os instrumentistas são, em ambas as formações, virtuosistas do mais alto grau. Máirtin O’Connor, dos Skylark, considerado o expoente máximo do seu instrumento na Irlanda, rivaliza com Billy McComiskey, do lado dos Trian, no acordeão. A vantagem pende para o lado do primeiro, mas não por margem folgada. Contra a veterania do mestre, o novato apresenta já credenciais de grande executante.
O caso do violino é mais bicudo. Gerry O’Connor, pelos Skylark, contra Liz Carroll, pelos Trian. O som desta última (que já nos impressionara num anterior álbum a solo ou, na qualidade de convidada, num dos projectos de Mick Moloney com Eugene O’Donnell, “Uncommon Bonds”) é mais encorpado. Gerry O’Connor, aparentando maior agilidade, possui um estilo mais aéreo. Liz vence-o em dramaticidade. Gerry ganha-lhe em leveza. Finalmente os dois guitarristas, Dáithi Sproule (vale a pena escutá-lo com maior pormenor em “Carousel”, ao lado de Deamus e Manus McGuire), dos Trian, e Garry O’Briain, dos Skylark, são dignos um do outro e candidatos ao trono ocupado por Arty McGlynn, na justeza com que tecem as típicas malhas rítmicas em contratempo.
Len Graham é o tocador de Bodhran nos Skylark, cargo que desempenha com eficácia, embora seja nas vocalizações que revela dose superior de talento, através de uma profundidade e pureza de timbre que, uma vez mais, deixam ver as marcas deixadas na música irlandesa pelos Planxty. O mesmo acontece aliás, com Dáithi Sproule, também ele um vocalista de recursos, do lado dos Trian.
Os membros dos Trian residem em Chicago, onde vive uma das colónias de irlandeses mais activa e interveniente da América do Norte. A distância serve-lhes para reforçarem o cordão de prata que os une à ilha-mãe. Daí talvez a sensação de urgência que se desprende da sua música, quase um amplexo. Os Skylark, por seu lado, ostentam a naturalidade de quem tem as raízes bem seguras no chão. Muitos tocam, e bem, este estilo de música. Mas poucos conseguem fazê-lo com a convicção e empenhamento destes dois grupos. Explorem-se os seus detalhes e segredos. Para descobrir as razões que fazem da tradição da Irlanda uma das mais ricas e férteis do planeta.

Arcady – “Many Happy Returns” + Patrick Street – “Cornerboys” + Trian – “Trian II”

Pop Rock

17 de Abril de 1996
world

A tradição já é o que era

ARCADY
Many Happy Returns (8)
Shanachie

PATRICK STREET
Cornerboys (9)
Green Linnet

TRIAN
Trian II (9)
Green Linnet
Todos distri. MC – Mundo da Canção


arcady

ps

trian

Como é que se “agarra” num novo disco de música irlandesa quando já se tem em casa uma pilha de não sei quantas dezenas (centenas?) de outros da mesma proveniência? Como saborear ainda o prazer de escutar uma daquelas características mudanças que nos provocam um sobressalto na alma, de um “jig” para um “reel”? O apreciador circunstancial destas músicas provavelmente passará ao lado da novidade quando esta não vier rotulada com o carimbo do exotismo. Os “Irish traditional music additcs”, esses já estão de tal maneira mergulhados nos seus pormenores e nos seus segredos que encontrarão sempre nesta música motivos de felicidade. Tendo sempre o cuidado de separar o trigo do joio.
Arcady, Patrick Street e Trian são os três do mais puro cereal. Não é apenas o virtuosismo dos executantes (na Irlanda talvez seja mais difícil encontrar quem não o é do que o contrário…) a estabelecer a diferença entre os mestres e os aprendizes. Nem a escolha de reportório. Sinta-se em vez disso aquela qualidade mágica, apenas ao alcance dos mestres, à qual os britânicos chamam “moving”. De nos fazer mover por dentro, de nos transportar. Os Arcady e os Trian, ambos no seu segundo “opus”, depois das respectivas estreias, “After the Ball” e “Trian”, reincidem na ortodoxia, apurando o “drive” para melhor fazerem passar o calor das danças.
No caso dos Arcady, temperado pelo refrigério das vocalizações da nova recruta (embora veterana do circuito…) Niamh Parsons, que os portugueses tiveram oportunidade de escutar recentemente ao vivo no último Intercéltico. Arrepios garantidos, ao ouvi-la cantar “The rocks of Bawn”. Instrumentalmente, é um mimo, com o violino, o acordeão, a flauta e o “tin whistle” enriquecidos pela companhia do violoncelo, órgão Hammond, órgão de pedais e até um didjeridu, bem como pelos coros dos The Voice Squad, no clássico “The rambling Irishman”.
Os Trian, por seu lado, são um trio liderado pela violinista Liz Carroll, um nome cada vez com mais peso, até como compositora, oriundo da poderosa cena irlandesa com sede nos “states”. Ao lado de Daithi Sproule, nas guitarras e voz (excepcional em “I once knew a little gril”, na posse de todos os argumentos que nos levam a ficar irremediavelmente presos a esta música) e de Billy McComiskey, no acordeão. Ainda com os convidados Ciarán Curran, no “bouzouki” e guitarra, e de alguém que não tínhamos o gosto de ouvir já há algum tempo, Triona Ní Dhomhnaill, no piano, sintetizador e “bodhran”. Indispensável.
Finalmente, os Patrick Street, “superbanda” que periodicamente se reúne para gravar, regressando depois os seus membros aos respectivos grupos em “full time”. Moram na Rua de São Patrício, neste seu quinto trabalho discográfico, Kevin Burke (ex-Bothy Band, actual Open House), violino, Jackie Daly (ex-De Danann, actual Arcady), acordeão, Andy Irvine (ex-Sweeney’s Men e Planxty), voz (a voz!), “bouzouki”, harmónica e bandolim e o novo comparsa escocês Ged Foley, recém-chegado dos House Band, guitarra e gaita-de-foles de Northumbrian.
“Cornerboys” não tem qualquer ponto em comum com a escorregadela estratégica de “Irish Times”, sendo antes a continuação de um trabalho de renovação e sofisticação dos modelos tradicionais, iniciado nos dois primeiros álbuns e retornado no anterior, “All in Good Time”. Vive aqui o espírito dos Planxty, nas vocalizações personalizadas de Irvine (onde nos encontramos quando nos encontramos em “Moorlough shore”?), enquadrado já não nas coordenadas “progressivas” dos anos 70, mas antes com alicerces num estudo comparado das regras e das possibilidades de evolução de uma música que tem dois caminhos por onde escolher. O da mutação noutra coisa qualquer ou o do estabelecimento e aprofundamento do que já várias vezes designámos como “Nova Tradição”. Os Patrick Street vão adiantados no segundo.