Arquivo da Categoria: Críticas 2004

Altan, Boys of the Lough, Bothy Band, Buttons & Bows, Chieftains, De Danann, Dervish, Triona Ní Dhomnaill, Dubliners, Dolores Keane, Mick Moloney, Christy Moore, Patrick Street, Planxty, Skylark, Trian – “Trevos de Quatro Folhas” (dossier, música tradicional irlandesa)

pop rock >> quarta-feira >> 01.06.1994
DOSSIER

TREVOS DE QUATRO FOLHAS



O texto que se segue faz uma resenha dos grupos e intérpretes que, de algum modo, revolucionaram e divulgaram em maior escala a música tradicional irlandesa. Uns fizeram escola, outros são por natureza excêntricos e “desrespeitadores”. Alguns pretendem acrescentar-lhes elementos de modernidade, fundindo certas especificidades da folk com outras linguagens, explorando pontos em comum, proximidades ou distâncias que surpreendentemente se anulam.
Desta súmula que propomos ao conhecimento e audição dos leitores, ficaram de fora alguns nomes sem dúvida importantes – Michael Coleman, Leo Rowsome, Willie Clancy, Séamus Ennis, Paddy Tunney, etc. -, patriarcas das gerações posteriores e alicerces do “boom” que iria abalar a ilha na madrugada dos anos 70. Isto seguindo um critério que privilegia uma certa universalidade e acessibilidade da música, ficando deste modo igualmente excluídos à partida os artistas cuja obra se construiu sobre especificidades, sejam elas um determinado instrumento (Mary Bergin, no “tin whistle”, ou Derek Bell, na harpa, por ex.) ou música com carácter marcadamente regional ou sectário (por exemplo, a música religiosa de Noirín Ní Riain). Porém, todo este mundo imenso encontra-se à disposição de quantos já penetraram o suficiente nos meandros desta música para poderem apreciar em pleno as maravilhas que podem encerrar um “bodhran”, um “tin whistle” ou umas “uillean pipes”.

ALTAN




Fizeram a transição da geração de ouro dos anos 70 para o novo “boom” dos anos 90. Uma carreira solidamente construída sobre a humildade a correcta assimilação dos ensinamentos dos antepassados granjearam-lhes a reputação de melhor banda irlandesa da actualidade. A voz de Mairéad Ní Mhaonaigh, a experiência do “intruso” escocês, ex-Silly Wizard, John Cunningham e a capacidade de autorregeneração e inovação de que dão mostras fazem o resto.
Um disco recomendado: “Harvest Storm”

BOYS OF THE LOUGH
Celebraram recentemente 25 anos de carreira. Quinze álbuns gravados e uma postura discreta, um pouco na sombra dos Chieftains, não obstam a que sejam um dos grupos de maior importância – sem dúvida dos que sempre se mantiveram fiéis a um estilo, sem concessões. Com uma formação relativamente estável ao longo dos anos, destaque para Aly Bain, “virtuose” do violino ao estilo de Shetland, Christy O’Leary, nas “uillean pipes”, e Cath McConnell, um dos maiores tocadores de “tin whistle” vivos da Irlanda.
Um disco recomendado: “Farewell and Remember Me”

BOTHY BAND
Geniais. Revolucionaram por completo a música e o conceito da música tradicional irlandesa. Uma energia espantosa, patente logo no álbum homónimo com que se estrearam em 1975, aliada a uma extraordinária capacidade técnica dos seus elementos e a uma intuição rara nos arranjos, fazem deste colectivo uma das principais referências da música na Irlanda, “tout court”. Se os Chieftains representam o classicismo, os Planxty a força do colectivo e os De Danann a experimentação, os Bothy Band representaram a revolução e a irreverência. Na altura houve quem comparasse, pela importância, este grupo – primeiro a fazer ajoelhar as audiências de rock à “irish tradition” – aos Beatles e a Elvis Presley. A personalidade forte dos músicos motivou o fim prematuro desta banda, cujos membros viriam a criar outros projectos e grupos importantes. Pelos Bothy Band e pelo grupo que lhes deu origem, os Seachtar, passaram nomes como Paddy Glackin e Tommy Peoples, antes da formação clássica com Matt Molloy, Paddy Keenan, Kevin Burke, Triona Ní Dhomhnaill, Michéal Ó Domhnaill e Donnal Lunny.
Um disco recomendado: “Old Hag You Have Killed Me”

BUTTONS & BOWS
Pouco conhecidos, fazem a ponte da tradição irlandesa com a Escócia, as ilhas Shetland, a música da Luisiana e a herança francesa do Quebeque. “Reels”, valsas e “hornpipes” são a especialidade deste trio de magníficos: Jackie Daly, no acordeão e concertina, secundado pelos violinos de Séamus McGuire e Manus McGuire.
Um disco recomendado: “The First Month of Summer”

CHIEFTAINS
(ver caixa)

DE DANANN
Juntamente com os Chieftains, os Dubliners e os Boys of the Lugh, os De Danann são uma das bandas de maior longevidade da Irlanda. O primeiro álbum deste grupo, cuja designação se inspirou nos míticos heróis Tanatha De Danann, data de 1975, o mesmo ano de estreia dos Bothy Band e apresenta a fusão dos estilos de Galway e Kerry, nele despontando uma então jovem cantora chamada Dolores Keane. Desde essa data e até ao presente, os De Danann nunca mais pararam de experimentar novos rumos e parentescos da música irlandesa com outras estéticas musicais. Com uma formação flutuante, alternaram obras-primas com discos menos conseguidos, caso do mais recente “1/2 Set in Harlem”, demasiado rendido aos primos americanos. A partir de certa altura, os De Danann passaram a incluir em cada álbum um tema dos Beatles. A música americana-irlandesa de baile dos anos 20, diálogos com cantores tradicionais desdentados da velha geração ou os folclores judeu e da América Latina fazem parte do leque de experiências levadas a cabo pelos DE Danann, também conhecidos pelo naipe de cantoras que passou pelo grupo: Dolores Keane, Maura O’Connell, Caroline Lavelle, Mary Black, Eleanor Shanley…
Alec Finn e Frank Gavin são os sobreviventes da formação original desta banda, pela qual passaram – ao longo das duas décadas que já levam de existência – ilustres como Jack Daly, Mairtin O’Connor e Mary Bergin.
Um disco recomendado: “The Star Spangled Molly”

DERVISH
Apareceram o ano passado e logo mostraram possuir a segurança e o saber dos veteranos. O que, aliado à garra e ao necessário virtuosismo, lhes assegurou desde logo o reconhecimento. Representantes da nova vaga, da qual fazem parte também os Déanta ou os Cran, estão na linha das grandes bandas folk irlandesas da década de 70.
Um disco recomendado: “Harmony Hill”

TRIONA NÍ DHOMNAILL
Herdeira legítima de Sean O’Riada, enquanto cravista de nomeada, Triona é o que se pode chamar uma mulher de múltiplos talentos. A sua voz está ao nível das melhores cantoras da Irlanda. É exímia arranjador a e manuseia com o mesmo à vontade um piano, um clavinete ou um sintetizador. Na sua música convergem influências díspares como a música de câmara, a tradição vocal gaélica e a veia improvisadora jazzística. Terminada a aventura, primeiro com os Skara Brae (com Daithi Sproule, a irmã Maighread e o irmão Michéal), depois com os Bothy Band, Triona formou dois dos mais importantes grupos irlandeses dos anos 80: Touchstone (sediado nos “States”) e Relativity, este com o seu irmão Michéal (com quem colabora também no grupo “new age” Nightnoise) e os dois manos escoceses John e Phil Cunningham. Ou seja, uma espécie de síntese dos Bothy Band com os Silly Wizard.
Um disco recomendado: “Gathering Pace” (Relativity)

DUBLINERS
Reis do “pub folk”, sinonimo de Dublin, os Z. Z. Top (não há na Irlanda barbas mais longas que as dos Dubliners) da folk irlandesa, verdadeiros heróis do “Whiskey in the jar”, aos quais foram beber os Pogues, Oyster Band, Levellers e todas as bandas portuguesas que gostam de parecer irlandesas. Existem há mais de 30 anos, gravaram recentemente um compacto duplo de aniversário e prometeu continuar. “Here’s to the Company!” À deles!!
Um disco recomendado:: “Whiskey on a Sunday”

DOLORES KEANE
A voz das vozes femininas. Aprendeu a cantar com as tias Rita e Sarah, passou pelos De Danann e rapidamente tornou-se a maior cantora tradicional da Irlanda. O timbre aveludado, a altura grave, a naturalidade e um excepcional controlo de volume da sua voz estabelecem a diferença. Com os Reel Union, é possível escutá-la na faceta mais “hard”, “a capella” e sem arranjos sofisticados, mas é só nos discos com o marido e multi-instrumentista John Faulkner que a música de Dolores Keane (ou Catháín, em gaélico) se eleva mais alto.
Um disco recomendado: “Broken Hearted I’ll Wander”

MICK MOLONEY
Nasceu em Limerick, mas vive nos Estados Unidos. Mick Moloney é certamente um dos mais dignos representantes da colónia irlandesa na América. Reputado executante nos instrumentos de corda dedilhada (guitarra, “bouzouki”, bandolim, banjo), colabora há dez anos com o cantor Robert O’Connell e o acordeonista Jimmy Keane e obras brilhantes centradas na temática da emigração.
Um disco recomendado: “Kilkelly”

CHRISTY MOORE




Equivalente de Dolores Keane no masculino. Ganhou fama nos Planxty, mas a obra posterior a solo mostra-o como um músico prolixo e de grandes recursos, enquanto cantor e compositor, em álbuns que abrangem desde a interpretação fiel de temas tradicionais à canção satírica de intervenção. É hoje uma espécie de patriarca, aglutinador de novas tendências e talentos.
Um disco recomendado: “Ordinary Man”

PATRICK STREET




A superbanda dos anos … que recentemente ressuscitou para os 90. Perfeitos na execução e nos arranjos, o quarteto de luxo formado por Andy Irvine, Jackie Daly, Kevin Burke e Arty McGlynn incarna tudo o que de melhor tinham os Planxty, Bothy Band e De Danann juntos. Descarrilaram na aproximação à pop efectuada em “Irish Times”, pa5ra regressarem em força com “All in Good Time”
Um disco recomendado: Patrick Street”

PLANXTY
Na nossa opinião, a maior banda irlandesa de todos os tempos. Os Planxty conseguiram na sua música o equilíbrio perfeito entre a ancestralidade do reportório tradicional e uma estética completamente contemporânea. Foram, para além de instrumentistas de alto nível, contadores de histórias que misturavam o encanto das lendas com a sátira e a crítica. A aproximação a outras músicas e culturas, sobretudo dos Balcãs (resultante do interesse de Andy Irvine), ou, como no derradeiro “Words & Music”, uma composição de Dylan, integravam-se com toda a naturalidade no estilo do grupo. É difícil definir aquilo que fazia dos Planxty uma banda inimitável. A personalidade e vontade fortes de todos os seus elementos garantiram-lhes uma coesão interna que nunca existiu, por exemplo, nos Bothy Band, nem nos De Danann. Também ao contrário destas duas bandas, os Planxty não deixaram escola, fruto de uma alquimia e de uma conjugação de sensibilidades especiais. As capacidades técnicas dos seus elementos (de todos apenas Liam O’Flynn e Matt Molloy se podem considerar verdadeiros “virtuoses”, havendo sem dúvida outros executantes com maior valia técnica que Andy Irvine, Christy Moore, Johnny Moynihan e Donal Lunny) não se impunham pelo exibicionismo, antes eram postas ao serviço da música. Quem quiser saber por que razão a música tradicional da Irlanda é a mais bela do mundo deve começar por ouvir os Planxty.
Um disco recomendado: “Cold Blow and the Rainy Night”

SKYLARK
Quatro grandes músicos: Len Graham, percussões e uma voz extraordinária, Garry Ó Briain, guitarra e teclados, e Mairtin O’Connor, o mágico do acordeão. Deles se podem dizer que gravaram dois álbuns de música tradicional irlandesa de primeira água. “Vintage Traditional music”. Isto é – da melhor.
Um disco recomendado: “Light and Shade”

TRIAN
Gravaram até à data apenas um álbum, mas tal bastou para os colocar na primeira fila dos grupos irlandeses instalados na América. Liz Carroll é simplesmente uma das maiores violinistas da actualidade. Acompanham-na o omnipresente Daithi Sproule (na guitarra e voz) e Billy McComiskey (ao lado de Aidan Coffey, dos De Danann, um dos jovens lobos do acordeão). Os Trian provam que a distância, mais que cindir, une a alma dos irlandeses. Haverá um nome cor de esmeralda para “saudade”?
Um disco recomendado: “Trian”

(caixa)
O MELHOR DE QUÊ?


THE CHIEFTAINS
The Best of the Chieftains
Columbia Legacy, distri. Sony Music





Chamar “best of” a um disco que abarca apenas um período de três anos – correspondente aos álbuns “The Chieftains 7”, de 1977, “The Chieftains 8”, de 1978, e “The Chieftains 9: Boil the Breakfast Early”, de 1979, por coincidência aqueles que tiveram edição americana na Columbia – de uma banda que já leva 24 álbuns gravados e 31 anos de existência é abusivo. Chamassem-lhe outra coisa qualquer, até porque de fora ficaram obviamente os melhores trabalhos do grupo: “The Chieftains 5”, “The Chieftains 6: Bonaparte’s Retreat” (o tal com Dolores Keane), “The Chieftains 10”, “Celebration” (com Van Morrison e os Milladoiro) e “Celtic Wedding” (dedicado na totalidade à música da Bretanha e ao qual se refere a foto da capa).
Formados em 1963 a partir dos Ceoltoiri Cualann, um projecto saído da imaginação do compositor e cravista Sean O’Riada, os Chieftains foram os primeiros a romper os tabus que algemavam as velhas Ceili Bands. Os tempos soltaram-se e passaram a alternar-se no interior de cada composição (dando origem às célebres transições de ritmo de um “reel” para um “jig” e deste para uma polka ou um “Planxty” que fazem as delícias dos apreciadores deste estilo de música), a instrumentação diversificou-se.
Rapidamente a banda alcançou um estatuto internacional, recebendo convites para fazer bandas sonoras de filmes (“Barry Lyndon” popularizou o nome dos Chieftains em toda a parte), documentários como “Ballad of the Irish Horse” e séries de televisão, como “The Year of the French”, e atraindo a atenção de músicos rock e pop que achavam prestigiante gravar ao lado dos Chieftains. Marianne Faithfull, Rickie Lee Jones, Elvis Costello, Eric Clapton, Kate & Anna McGarrigle, Jackson Browne, Art Garfunkel e Mike Oldfield são alguns dos artistas que gravaram ou tocaram ao vivo com esta banda hoje tornado instituição.
Os Chieftains experimentaram com orquestras e foram à China tocar música chinesa com músicos chineses. Gravaram música da Galiza e da Bretanha. Fizeram “country music” à irlandesa, em conjunto com os “monstros” Willie Nelson, Emmylou Harris, Chet Atkins, Nitty Gritty Dirt Band, Ricky Scaggs, Colin James e Don Williams. Recuperaram o legado de Turlough O’Carolan, dedicaram um disco à harpa céltica e outro à cidade de Dublin. Conseguiram, em suma, transformar a música tradicional da Irlanda numa das músicas mais populares e apreciadas do planeta.
Por tudo isto torna-se quase irrelevante a presente selecção. Claro que a música é óptima e que Paddy Moloney, Matt Molloy, Sean Keane, Martin Fay, Michael Tubridy, Derek Bell e Kevin Coneff garantem prestações de alto nível. Mas poderiam ser estas 12 faixas como poderiam ser outras quaisquer, que a música continuaria a ser óptima na mesma. E, para os neófitos, qual o interesse em começarem por aqui e não, o que seria mais lógico, pelo volume um da discografia do grupo, que, por sinal, se encontra disponível na sua totalidade em Portugal? É que assim até parece que o título é um engano… (7)

Os Outros Nirvana

30.01.2004

Os Outros Nirvana

A história de um equívoco que serviu para dar a conhecer uma das mais requintadas e ignoradas bandas da pop dos 60’s. Os primeiros álbuns estão aí. O mito começa a nascer.

É um dos equívocos mais divertidos da pop – a confusão que se instala sempre que um fã declara a grande banda que foram os Nirvana e outro, mais velho, concorda, com um sorriso largo no rosto, acrescentando que sim, que foram uma deliciosa banda psicadélica, responsável por magníficas canções açucaradas por cubos de LSD.
“Estás a gozar comigo!?”, urra o primeiro, considerando a tirada ofensiva para a memória do seu ídolo, Kurt Cobain. “De modo nenhum!”, insiste o segundo, alargando ainda mais o sorriso. Tal discussão termina com o segundo a explicar ao primeiro, num gesto magnânimo, a causa de tamanha discrepância, aplacando deste modo a estupefacção e, nalguns casos, a fúria do acérrimo defensor dos heróis do “grunge”.
Pois bem, caros leitores, as enciclopédias registam de facto duas bandas com o nome Nirvana, cada uma delas em acção num período distinto. Os Nirvana de “Nevermind” e do rock escavado como uma ferida não cicatrizada estão bem documentados. Não é deles, porém, mas dos outros que se começa a falar, um pouco por todo o lado (discotecas lá fora, por exemplo, passam a sua música nas colunas e enchem com elas os escaparates e muitas revistas da especialidade incluem recensões aos discos nas respectivas páginas de reedições).
A perplexidade causada pela existência de dois Nirvana estendeu-se à própria banda de Seattle, ao tomar conhecimento dos seus homónimos de três décadas antes, e da consequente proibição legal em utilizar o nome. O “litígio” foi resolvido amigavelmente, com os Nirvana ingleses a abdicarem do uso exclusivo do nome. Melhor ainda: num gesto que aumentou ainda mais a confusão, os Nirvana originais gravaram uma versão do “single” “Lithium”, dos Nirvana modernos, arrumando-a, ao lado de inéditos de arquivo, na antologia de 1996, “Orange and Blue”.
O resultado não se fez esperar. Alguns comentários afixados no site da Amazon, de compradores “enganados”, são hilariantes. Um exemplo: “o meu primo ofereceu-me este disco no meu aniversário, sem se dar conta de que não são os mesmos Nirvana, os que fazem boa música!”. Outro: “Isto é mau! Realmente mau! Se gostam dos Nirvana de Seattle, não comprem este disco”. Menos preconceituoso, DJ Shadow samplou o tema “Love Suite” (de “To Markos III”) em “Stem”, incluído no seu álbum de estreia na Mo Wax, “Entroducing”.
Os Outros
Mas quem são estes “outros” que desencadeiam tanto o ódio como a admiração? Eram uma banda de pop psicadélica britânica que nos anos 60 gravou pérolas pop de sonho, como “Tiny goddess”, “Pentecost Hotel” e “Rainbow Chaser”, e três álbuns cuja música tem o poder de transformar os admiradores dos Nirvana dos 90’s em psicóticos enraivecidos: “The Story of Simon Simopath” (67), “All of us” (68) e “To Markos III” (70). Todos disponíveis nas lojas portuguesas, em novas versões remasterizadas e acrescidas de “bonus tracks”, substituindo as mais antigas da Edel dos dois primeiros, editados à época pela Island.
Patrick Campbell-Lyons e Alex Spyropoulos, um irlandês e um grego, formavam a dupla criativa dos Nirvana e desta aparente incompatibilidade de culturas terá resultado a originalidade da música – uma pop ornamentada por arranjos barrocos para melodias evanescentes. Não é um som típico, nem da pop nem do psicadelismo, mas um híbrido dos dois.
“The Story of Simon Simopath” é um dos mais antigos “concept albums” da pop britânica, a par de “S.F. Sorrow”, dos Pretty Things, e “Ogden’s Nut Gone Flake”, dos Small Faces. A história, inspirada na literatura de Ficção Científica, descreve as aventuras do dito Simon e a sua aprendizagem no espaço sideral (a história conta que no hospital psiquiátrico não lhe encontraram qualquer anomalia), o que, atendendo à contribuição do LSD na manufactura do álbum, terá sido fácil de conseguir.
As canções são fábulas às cores, pintadas com violoncelos, glockenspiel e “french horn”, e títulos como “Wings of love”, “Satellite jockey”, “In the courtyard of the stars” e “Pentecost hotel”, este último uma das melodias memoráveis que fazem de “The Story of Simon Simopath” um disco indispensável para quem gosta da pop psicadélica inlesa, na sua vertente mais angelical, cultivada por grupos como os Zombies, The Association e Kaleidoscope/Fairfield Parlour, ou da sua correspondente americana personificada pelos Millenium e Sagittarius. A nova reedição apresenta o mesmo alinhamento nas versões stereo e mono, mais quatro inéditos, incluindo um bizarro “Requiem to John Coltrane” em registo de “free pop”.
“All of us” é um manjar de melodias requintadas. “Rainbow chaser”, enfeitado com cravo e luxuriantes arranjos orquestrais, é um clássico do “acid rock” bucólica, ao nível do melhor que se fez em Inglaterra nos anos 60. “Tiny goddess”, outro exemplo da veia melódica da dupla Lyons/Spyropoulos, evoca tanto os Beatles, como os Beach Boys de “Pet Sounds” e os Bee Gees (não fujam já aos gritos) do período psicadélico dos quatro primeiros álbuns (“First”, “Horizontal”, “Idea” e “Odessa”). Bem, é verdade que o refrão de “Melanie blue” imita os Bee Gees naquilo que estes tinham de mais pindérico. Mas “Trapeze” – ao mais puro estilo dos Fairfield Parlour de “From Home to Home” – consegue falar de Camelot e de trapézios voadores sem cair no ridículo e a flauta de bisel e o violoncelo conferem a “The snow must go on” um ambiente de pop de câmara semelhante ao dos Fuchsia (outra banda obscura da folk-gótica-psicadélica inglesa). “Girl in the park” fulge como um cristal cuja melodia os Kinks não desdenhariam, “You can try” poderia trazer a assinatura de Brian Wilson e “St John’s wood affair” é Paul Mccartney a rodar num caleidoscópio, canção-camaleão onde cabe uma mão cheia de viagens de LSD. “The touchables”, por sua vez, é a canção-tema do filme com o mesmo nome realizado por Robert Freeman. E assim sucessivamente, cada canção com a capacidade de prender o ouvido através de um arranjo ou de uma volta especiais, quais mini-sinfonias cuidadosamente esculpidas mas que a cada momento ameaçam levantar voo e desaparecer.
Em comparação com “The Story of Simon Simopath” e “All of Us”, “To Markos III”, gravado quando o desentendimento entre Lyons e Spyropoulos já se fazia sentir muda para um tom que raia o patético em temas como “Aline cherie” e “Love suite”. O equilíbrio das vozes desfaz-se no exagero, caindo no “music hall” e em sugestões de “glam”, sobrando do delicado psicadelismo dos primeiros álbuns apenas “It happened two Sundays ago” e “Christopher Lucifer”.
Consumada a saída do grupo de Spyropoulos, Campbell-Lyosn faria sozinho a transição dos Nirvana para o rock progressivo, em “Local Anaesthetic”, álbum de 1971 composto por apenas dois longos temas (“Modus operandi” e “Home”) para a Vertigo, editora lendária do Progressivo da qual Lyons se tornou um dos principais produtores. Apesar de altamente coleccionável na edição original em vinilo (o CD saiu pela Repertoire) a música alterna boas “jams” progressivas com o horrível. A magia, essa desaparecera nas asas de Simão Simopath.

Nirvana
The Story of Simon Simopath
8/10

All of Us
9/10

To Markos III
6/10

Island, distri. Universal

Jimi Hendrix – “The Singles Collection” (self conj.)

30.01.2004

Jimi Hendrix

The Singles Collection
10xCD single, Experience Hendrix, distri. Universal
8/10

LINK

The Last Experience
Charly, distri. Musicáctiva
7/10

Hey Jimi!

Uma caixa de 10 singles, outra com um concerto em Londres exaustivamente documentado, mais um DVD de um espectáculo em Berkeley – os coleccionadores esfregam as mãos.

Astérix, Obélix, Abraracourcix, Hendrix. Irredutíveis guerreiros. O último, Hendrix, impressionou particularmente, graças aos seus feitos como músico. Jimi Hendrix, rocker e guitarrista de Seattle, morto aos 28 anos, foi um guerreiro da luz. Ao desaparecer, levou consigo as estrelas e as explosões flamejantes da sua Fender Stratocaster. Preparava aquele que seria o seu quarto álbum de estúdio, “First Ray of the New Rising Sun”. Mas a nova aurora nunca chegou a nascer.
A partir dessa data, 18 de Setembro de 1970, nunca mais parou a especulação em torno do seu nome. Como já acontecera, aliás, em vida. Sucederam-se as histórias, inventaram-se pormenores, fizeram-se prognósticos sobre o futuro hipotético, sobre o estilo musical que iria marcar as etapas seguintes. Segundo uns, Hendrix preparava-se para ser um músico de jazz (faz sentido). Dispusera-se a aprofundar as suas raízes “blues” 8faz sentido), garantiam outros.
Manteria a mesma direcção (faz sentido) dos três anteriores álbuns (“Are You Experienced?”, “Axis: Bold as Love”, “Electric Ladyland”), afiançava outra facção.
Provavelmente Hendrix faria como sempre fez, fecharia os olhos e seguiria para onde a guitarra lhe mandasse. E, também provavelmente, foi isso mesmo que aconteceu e foi a guitarra que lhe ordenou a morte. Ela já estava presente na música, enquanto celebração impossível de uma transcendência que ao simples mortal é vedada, pela via que Hendrix escolheu – a via da mão esquerda (ele que era esquerdino) e do poder.
Em conformidade, correu-se a esgravatar na vida e nos arquivos de estúdio, onde o guitarrista deixara quilómetros de fita gravada, bem como nos registos ao vivo de concertos. Editaram-se dezenas de álbuns póstumos – dos quais o mais importante será “The Cry of Love” -, antologias e “bootlegs”, sem qualquer espécie de controle ou, no mínimo, de respeito pela sua memória. Até ao dia (em 1995) em que a família, através do pai, Al Hendrix, e da meia-irmã, Janie, comprou os direitos legais da obra e meteu mãos à obra de pôr ordem na casa e um ponto final à especulação e ao caos editorial.
Para tal, criaram o selo Experience Hendrix, chamaram os engenheiros de som John McDermott e Eddie Kramer (responsável pelas gravações originais do guitarrista) para tomar conta das remasterizações dos três álbuns gravados em vida por Hendrix, lançados no mercado em 1997, e até uma quantidade razoável de gravações de interesse apenas para os coleccionadores, organizadas e comercializadas através de outro selo criado pela família, a Dagger Records, com autorização legal para editar “bootlegs” do artista.

Experiências
No entanto, o fluxo editorial está longe de poder ser considerado estancado. Três novos “objectos” com a marca Hendrix surgem agora quase em simultâneo no mercado português: “The Singles Collection”, “The Last Experience” e “Jimi Plays Berkeley”.
“The Singles Collection” é uma caixa com 10 singles remasterizados e embalados em capas de cartão a imitar os originais. “The Last Experience” junta em três CDs o concerto da Jimi Hendrix Experience no Royal Albert Hall, de Londres, a 24 de Fevereiro de 1969, editado pela primeira vez na sua totalidade, uma vez que a anterior reedição apenas apresentava a versão usada originalemnte como banda sonora do filme “Experience”. Por fim, “Jimi Hendrix Plays Berkeley”, é um DVD do duplo concerto no Berkeley Community Theatre, realizado a 30 de Maio de 1970.
A caixa de “singles” vale pelo objecto em si, uma vez que não se compreende a específica selecção de “singles”. Não estão todos. Mas os que estão oferecem, além da curiosidade da embalagem, um som excepcional, resultado da remasterização de Eddie Kramer (os mais puristas torcerão o nariz, em nome da autenticidade, mas…). São eles: “Hey Joe”/”Stone Free”, “Purple Haze”/”51st anniversary”, “Thewin cries Mary”/”Highway chile”, “Burning of the midnight lamo”/”The stars that play with laughing Sam´s dice”, “Fox lady”/”Manic depression”, “Crosstown traffic”/”Gypsy eyes”, “voodoo chile”/”Hey Joe”/”Watchower”, “Stepping stone”/”Isabella”, “Dolly Dagger”/”Night bird flying” e o disco de Natal com o “medley”, “Little drummer boy – Silent night – Auld lang syne”/”Three little bears”. Todos temas que já constavam de anteriores edições. Podem ser ouvidos agora em separado Como brinquedos eventualmente perigosos…
Imagens de agitação estudantil na cidade justapostas à música de Hendrix fazem parte do material que preenche o DVD “Jimi Plays Berkeley” dos concertos de Berkeley, originalmente editados num documentário vencedor do 1º prémio do Festival de Cinema de Amsterdão. As imagens originais foram transferidas digitalmente para o novo formato e a banda sonora remisturada em stereo 5.1 “audio surround” por Edie Kramer. As “special features” apresentam ainda, apenas em formato áudio, a totalidade do segundo concerto, também misturado em som “surround”. Temas como “Hey baby (new rising sun”, “Lover man”, “Stone free”, “Machine gun”, “Fox lady”, “Purple haze” e “Voodoo child (slight return)” são aqui executados pela Jimi Hendrix Experience, então formada pelo baterista Mitch Mitchell e o baixista Billy Cox que, entretanto, substituíra Noel Redding, do trio original.
Por fim, a “última experiência” respeita pela primeira vez, além da totalidade do concerto, também o alinhamento original do espectáculo no Royal Albert Hall, iniciado, logo após a afinação da guitarra (faixa 1), com “Lover Man”, uma versão de “Rock Me Baby”, de B.B. King. O primeiro CD inclui versões longas de “Stone Free”, “Red House”, bem como “Foxy lady” e “Sunshine of your love”, dos Cream. No segundo estão, entre outros, “Little wing”, “Voodoo Chile (slight return)”, “Room full of mirrors”, “Purple Haze” e “Star-spangled nammer”, o hino americano interpretado com as notas do Apocalipse no final do festival de Woodstock, em 1969, que ficou imortalizada nas imagens do documentário de 1970 de Michael Wadleigh. Os últimos sons, colados no final, de Hendrix a destruir o amplificador com a guitarra, figuram como título “Smashing of the amps”, como se fosse uma verdadeira canção. Pensando bem, poderia ser…
Há ainda duas versões editadas (“Bleeding heart” e “Room full of mirrors”) e uma sequência de “soundchecks” de interesse duvidoso que começam no segundo compacto e se estendem pela totalidade do terceiro. Os coleccionadores agradecem. Os simples melómanos ou admiradores de Hendrix, duvida-se que gastem o “laser” do leitor de CD a reproduzir os ensaios, experiências de som e outras operações técnicas ou de aquecimento para o concerto propriamente dito.
Há, acima de tudo, um Hendrix em combustão, em solos demolidores (“I don´t live today” diz tudo em poucos minutos). Nas suas mãos a Stratocaster era um vulcão, uma espada, um circuito electrónico complexo, um tanque de guerra, uma mulher, loucura. Mas também lágrimas e devoção ao “blues” (“Red house”). “Foxy lady” prova, por outro lado, que a sua guitarra era, mais do que um instrumento musical, uma nave espacial. Foi a bordo dela que Jimi Hendrix partiu para o espaço.