Arquivo de etiquetas: Chieftains

Altan, Boys of the Lough, Bothy Band, Buttons & Bows, Chieftains, De Danann, Dervish, Triona Ní Dhomnaill, Dubliners, Dolores Keane, Mick Moloney, Christy Moore, Patrick Street, Planxty, Skylark, Trian – “Trevos de Quatro Folhas” (dossier, música tradicional irlandesa)

pop rock >> quarta-feira >> 01.06.1994
DOSSIER

TREVOS DE QUATRO FOLHAS



O texto que se segue faz uma resenha dos grupos e intérpretes que, de algum modo, revolucionaram e divulgaram em maior escala a música tradicional irlandesa. Uns fizeram escola, outros são por natureza excêntricos e “desrespeitadores”. Alguns pretendem acrescentar-lhes elementos de modernidade, fundindo certas especificidades da folk com outras linguagens, explorando pontos em comum, proximidades ou distâncias que surpreendentemente se anulam.
Desta súmula que propomos ao conhecimento e audição dos leitores, ficaram de fora alguns nomes sem dúvida importantes – Michael Coleman, Leo Rowsome, Willie Clancy, Séamus Ennis, Paddy Tunney, etc. -, patriarcas das gerações posteriores e alicerces do “boom” que iria abalar a ilha na madrugada dos anos 70. Isto seguindo um critério que privilegia uma certa universalidade e acessibilidade da música, ficando deste modo igualmente excluídos à partida os artistas cuja obra se construiu sobre especificidades, sejam elas um determinado instrumento (Mary Bergin, no “tin whistle”, ou Derek Bell, na harpa, por ex.) ou música com carácter marcadamente regional ou sectário (por exemplo, a música religiosa de Noirín Ní Riain). Porém, todo este mundo imenso encontra-se à disposição de quantos já penetraram o suficiente nos meandros desta música para poderem apreciar em pleno as maravilhas que podem encerrar um “bodhran”, um “tin whistle” ou umas “uillean pipes”.

ALTAN




Fizeram a transição da geração de ouro dos anos 70 para o novo “boom” dos anos 90. Uma carreira solidamente construída sobre a humildade a correcta assimilação dos ensinamentos dos antepassados granjearam-lhes a reputação de melhor banda irlandesa da actualidade. A voz de Mairéad Ní Mhaonaigh, a experiência do “intruso” escocês, ex-Silly Wizard, John Cunningham e a capacidade de autorregeneração e inovação de que dão mostras fazem o resto.
Um disco recomendado: “Harvest Storm”

BOYS OF THE LOUGH
Celebraram recentemente 25 anos de carreira. Quinze álbuns gravados e uma postura discreta, um pouco na sombra dos Chieftains, não obstam a que sejam um dos grupos de maior importância – sem dúvida dos que sempre se mantiveram fiéis a um estilo, sem concessões. Com uma formação relativamente estável ao longo dos anos, destaque para Aly Bain, “virtuose” do violino ao estilo de Shetland, Christy O’Leary, nas “uillean pipes”, e Cath McConnell, um dos maiores tocadores de “tin whistle” vivos da Irlanda.
Um disco recomendado: “Farewell and Remember Me”

BOTHY BAND
Geniais. Revolucionaram por completo a música e o conceito da música tradicional irlandesa. Uma energia espantosa, patente logo no álbum homónimo com que se estrearam em 1975, aliada a uma extraordinária capacidade técnica dos seus elementos e a uma intuição rara nos arranjos, fazem deste colectivo uma das principais referências da música na Irlanda, “tout court”. Se os Chieftains representam o classicismo, os Planxty a força do colectivo e os De Danann a experimentação, os Bothy Band representaram a revolução e a irreverência. Na altura houve quem comparasse, pela importância, este grupo – primeiro a fazer ajoelhar as audiências de rock à “irish tradition” – aos Beatles e a Elvis Presley. A personalidade forte dos músicos motivou o fim prematuro desta banda, cujos membros viriam a criar outros projectos e grupos importantes. Pelos Bothy Band e pelo grupo que lhes deu origem, os Seachtar, passaram nomes como Paddy Glackin e Tommy Peoples, antes da formação clássica com Matt Molloy, Paddy Keenan, Kevin Burke, Triona Ní Dhomhnaill, Michéal Ó Domhnaill e Donnal Lunny.
Um disco recomendado: “Old Hag You Have Killed Me”

BUTTONS & BOWS
Pouco conhecidos, fazem a ponte da tradição irlandesa com a Escócia, as ilhas Shetland, a música da Luisiana e a herança francesa do Quebeque. “Reels”, valsas e “hornpipes” são a especialidade deste trio de magníficos: Jackie Daly, no acordeão e concertina, secundado pelos violinos de Séamus McGuire e Manus McGuire.
Um disco recomendado: “The First Month of Summer”

CHIEFTAINS
(ver caixa)

DE DANANN
Juntamente com os Chieftains, os Dubliners e os Boys of the Lugh, os De Danann são uma das bandas de maior longevidade da Irlanda. O primeiro álbum deste grupo, cuja designação se inspirou nos míticos heróis Tanatha De Danann, data de 1975, o mesmo ano de estreia dos Bothy Band e apresenta a fusão dos estilos de Galway e Kerry, nele despontando uma então jovem cantora chamada Dolores Keane. Desde essa data e até ao presente, os De Danann nunca mais pararam de experimentar novos rumos e parentescos da música irlandesa com outras estéticas musicais. Com uma formação flutuante, alternaram obras-primas com discos menos conseguidos, caso do mais recente “1/2 Set in Harlem”, demasiado rendido aos primos americanos. A partir de certa altura, os De Danann passaram a incluir em cada álbum um tema dos Beatles. A música americana-irlandesa de baile dos anos 20, diálogos com cantores tradicionais desdentados da velha geração ou os folclores judeu e da América Latina fazem parte do leque de experiências levadas a cabo pelos DE Danann, também conhecidos pelo naipe de cantoras que passou pelo grupo: Dolores Keane, Maura O’Connell, Caroline Lavelle, Mary Black, Eleanor Shanley…
Alec Finn e Frank Gavin são os sobreviventes da formação original desta banda, pela qual passaram – ao longo das duas décadas que já levam de existência – ilustres como Jack Daly, Mairtin O’Connor e Mary Bergin.
Um disco recomendado: “The Star Spangled Molly”

DERVISH
Apareceram o ano passado e logo mostraram possuir a segurança e o saber dos veteranos. O que, aliado à garra e ao necessário virtuosismo, lhes assegurou desde logo o reconhecimento. Representantes da nova vaga, da qual fazem parte também os Déanta ou os Cran, estão na linha das grandes bandas folk irlandesas da década de 70.
Um disco recomendado: “Harmony Hill”

TRIONA NÍ DHOMNAILL
Herdeira legítima de Sean O’Riada, enquanto cravista de nomeada, Triona é o que se pode chamar uma mulher de múltiplos talentos. A sua voz está ao nível das melhores cantoras da Irlanda. É exímia arranjador a e manuseia com o mesmo à vontade um piano, um clavinete ou um sintetizador. Na sua música convergem influências díspares como a música de câmara, a tradição vocal gaélica e a veia improvisadora jazzística. Terminada a aventura, primeiro com os Skara Brae (com Daithi Sproule, a irmã Maighread e o irmão Michéal), depois com os Bothy Band, Triona formou dois dos mais importantes grupos irlandeses dos anos 80: Touchstone (sediado nos “States”) e Relativity, este com o seu irmão Michéal (com quem colabora também no grupo “new age” Nightnoise) e os dois manos escoceses John e Phil Cunningham. Ou seja, uma espécie de síntese dos Bothy Band com os Silly Wizard.
Um disco recomendado: “Gathering Pace” (Relativity)

DUBLINERS
Reis do “pub folk”, sinonimo de Dublin, os Z. Z. Top (não há na Irlanda barbas mais longas que as dos Dubliners) da folk irlandesa, verdadeiros heróis do “Whiskey in the jar”, aos quais foram beber os Pogues, Oyster Band, Levellers e todas as bandas portuguesas que gostam de parecer irlandesas. Existem há mais de 30 anos, gravaram recentemente um compacto duplo de aniversário e prometeu continuar. “Here’s to the Company!” À deles!!
Um disco recomendado:: “Whiskey on a Sunday”

DOLORES KEANE
A voz das vozes femininas. Aprendeu a cantar com as tias Rita e Sarah, passou pelos De Danann e rapidamente tornou-se a maior cantora tradicional da Irlanda. O timbre aveludado, a altura grave, a naturalidade e um excepcional controlo de volume da sua voz estabelecem a diferença. Com os Reel Union, é possível escutá-la na faceta mais “hard”, “a capella” e sem arranjos sofisticados, mas é só nos discos com o marido e multi-instrumentista John Faulkner que a música de Dolores Keane (ou Catháín, em gaélico) se eleva mais alto.
Um disco recomendado: “Broken Hearted I’ll Wander”

MICK MOLONEY
Nasceu em Limerick, mas vive nos Estados Unidos. Mick Moloney é certamente um dos mais dignos representantes da colónia irlandesa na América. Reputado executante nos instrumentos de corda dedilhada (guitarra, “bouzouki”, bandolim, banjo), colabora há dez anos com o cantor Robert O’Connell e o acordeonista Jimmy Keane e obras brilhantes centradas na temática da emigração.
Um disco recomendado: “Kilkelly”

CHRISTY MOORE




Equivalente de Dolores Keane no masculino. Ganhou fama nos Planxty, mas a obra posterior a solo mostra-o como um músico prolixo e de grandes recursos, enquanto cantor e compositor, em álbuns que abrangem desde a interpretação fiel de temas tradicionais à canção satírica de intervenção. É hoje uma espécie de patriarca, aglutinador de novas tendências e talentos.
Um disco recomendado: “Ordinary Man”

PATRICK STREET




A superbanda dos anos … que recentemente ressuscitou para os 90. Perfeitos na execução e nos arranjos, o quarteto de luxo formado por Andy Irvine, Jackie Daly, Kevin Burke e Arty McGlynn incarna tudo o que de melhor tinham os Planxty, Bothy Band e De Danann juntos. Descarrilaram na aproximação à pop efectuada em “Irish Times”, pa5ra regressarem em força com “All in Good Time”
Um disco recomendado: Patrick Street”

PLANXTY
Na nossa opinião, a maior banda irlandesa de todos os tempos. Os Planxty conseguiram na sua música o equilíbrio perfeito entre a ancestralidade do reportório tradicional e uma estética completamente contemporânea. Foram, para além de instrumentistas de alto nível, contadores de histórias que misturavam o encanto das lendas com a sátira e a crítica. A aproximação a outras músicas e culturas, sobretudo dos Balcãs (resultante do interesse de Andy Irvine), ou, como no derradeiro “Words & Music”, uma composição de Dylan, integravam-se com toda a naturalidade no estilo do grupo. É difícil definir aquilo que fazia dos Planxty uma banda inimitável. A personalidade e vontade fortes de todos os seus elementos garantiram-lhes uma coesão interna que nunca existiu, por exemplo, nos Bothy Band, nem nos De Danann. Também ao contrário destas duas bandas, os Planxty não deixaram escola, fruto de uma alquimia e de uma conjugação de sensibilidades especiais. As capacidades técnicas dos seus elementos (de todos apenas Liam O’Flynn e Matt Molloy se podem considerar verdadeiros “virtuoses”, havendo sem dúvida outros executantes com maior valia técnica que Andy Irvine, Christy Moore, Johnny Moynihan e Donal Lunny) não se impunham pelo exibicionismo, antes eram postas ao serviço da música. Quem quiser saber por que razão a música tradicional da Irlanda é a mais bela do mundo deve começar por ouvir os Planxty.
Um disco recomendado: “Cold Blow and the Rainy Night”

SKYLARK
Quatro grandes músicos: Len Graham, percussões e uma voz extraordinária, Garry Ó Briain, guitarra e teclados, e Mairtin O’Connor, o mágico do acordeão. Deles se podem dizer que gravaram dois álbuns de música tradicional irlandesa de primeira água. “Vintage Traditional music”. Isto é – da melhor.
Um disco recomendado: “Light and Shade”

TRIAN
Gravaram até à data apenas um álbum, mas tal bastou para os colocar na primeira fila dos grupos irlandeses instalados na América. Liz Carroll é simplesmente uma das maiores violinistas da actualidade. Acompanham-na o omnipresente Daithi Sproule (na guitarra e voz) e Billy McComiskey (ao lado de Aidan Coffey, dos De Danann, um dos jovens lobos do acordeão). Os Trian provam que a distância, mais que cindir, une a alma dos irlandeses. Haverá um nome cor de esmeralda para “saudade”?
Um disco recomendado: “Trian”

(caixa)
O MELHOR DE QUÊ?


THE CHIEFTAINS
The Best of the Chieftains
Columbia Legacy, distri. Sony Music





Chamar “best of” a um disco que abarca apenas um período de três anos – correspondente aos álbuns “The Chieftains 7”, de 1977, “The Chieftains 8”, de 1978, e “The Chieftains 9: Boil the Breakfast Early”, de 1979, por coincidência aqueles que tiveram edição americana na Columbia – de uma banda que já leva 24 álbuns gravados e 31 anos de existência é abusivo. Chamassem-lhe outra coisa qualquer, até porque de fora ficaram obviamente os melhores trabalhos do grupo: “The Chieftains 5”, “The Chieftains 6: Bonaparte’s Retreat” (o tal com Dolores Keane), “The Chieftains 10”, “Celebration” (com Van Morrison e os Milladoiro) e “Celtic Wedding” (dedicado na totalidade à música da Bretanha e ao qual se refere a foto da capa).
Formados em 1963 a partir dos Ceoltoiri Cualann, um projecto saído da imaginação do compositor e cravista Sean O’Riada, os Chieftains foram os primeiros a romper os tabus que algemavam as velhas Ceili Bands. Os tempos soltaram-se e passaram a alternar-se no interior de cada composição (dando origem às célebres transições de ritmo de um “reel” para um “jig” e deste para uma polka ou um “Planxty” que fazem as delícias dos apreciadores deste estilo de música), a instrumentação diversificou-se.
Rapidamente a banda alcançou um estatuto internacional, recebendo convites para fazer bandas sonoras de filmes (“Barry Lyndon” popularizou o nome dos Chieftains em toda a parte), documentários como “Ballad of the Irish Horse” e séries de televisão, como “The Year of the French”, e atraindo a atenção de músicos rock e pop que achavam prestigiante gravar ao lado dos Chieftains. Marianne Faithfull, Rickie Lee Jones, Elvis Costello, Eric Clapton, Kate & Anna McGarrigle, Jackson Browne, Art Garfunkel e Mike Oldfield são alguns dos artistas que gravaram ou tocaram ao vivo com esta banda hoje tornado instituição.
Os Chieftains experimentaram com orquestras e foram à China tocar música chinesa com músicos chineses. Gravaram música da Galiza e da Bretanha. Fizeram “country music” à irlandesa, em conjunto com os “monstros” Willie Nelson, Emmylou Harris, Chet Atkins, Nitty Gritty Dirt Band, Ricky Scaggs, Colin James e Don Williams. Recuperaram o legado de Turlough O’Carolan, dedicaram um disco à harpa céltica e outro à cidade de Dublin. Conseguiram, em suma, transformar a música tradicional da Irlanda numa das músicas mais populares e apreciadas do planeta.
Por tudo isto torna-se quase irrelevante a presente selecção. Claro que a música é óptima e que Paddy Moloney, Matt Molloy, Sean Keane, Martin Fay, Michael Tubridy, Derek Bell e Kevin Coneff garantem prestações de alto nível. Mas poderiam ser estas 12 faixas como poderiam ser outras quaisquer, que a música continuaria a ser óptima na mesma. E, para os neófitos, qual o interesse em começarem por aqui e não, o que seria mais lógico, pelo volume um da discografia do grupo, que, por sinal, se encontra disponível na sua totalidade em Portugal? É que assim até parece que o título é um engano… (7)

Chieftains (The) – “The Celtic Harp” + Boys Of The Lough – “The Fair Hills Of Ireland”

pop rock >> quarta-feira >> 12.05.1993
WORLD


A HARPA NO ALTO DO MONTE

THE CHIEFTAINS
The Celtic Harp (8)
CD RCA Victor, import. Bimotor e VGM
BOYS OF THE LOUGH
The Fair Hills Of Ireland (7)
CD Lough, import. Etnia



Na Irlanda é altura de aniversários. Chieftains e Boys of the Lough, dois dos mais prestigiados grupos de música tradicional deste país, abrem garrafas de champanhe – melhor dizendo, de um Jameson velhinho – e brindam à saúde. “Here’s to the company!”
A banda de Paddy Moloney, que há pouco mais de um mês deu “show” no Festival Intercéltico do Porto, faz a festa por interposta pessoa, na homenagem a Edward Bunting, que, em 1972, convocou durante um festival organizado pela Berlfast Harpers Society, os dez melhores harpistas da Irlanda e compilou posteriormente sucessivos manuscritos com partituras de harpa.
A 12 de Maio do ano passado, faz hoje precisamente um ano, os Chieftains tocaram num espectáculo de gala realizado no Ulster Hall, na companhia da Belfast Harper Orchestra e, mais tarde, no Barbican Hall, em Londres.
Desses dois concertos, foram gravados quatro temas ao vivo para inclusão neste 2The Celtic Harp”, com as restantes faixas registadas no lendário Threadmill Lane Studio, em Dublin, e nos estúdios de Frank Zappa (amigo dos Chieftains), em Los Angeles.
Quanto aos Boys of the Lough limitaram-se (!) a festejar 25 anos de carreira, com a modéstica dos grandes, através de “mais uma colecção de música tradicional”, como eles próprios dizem.
Dos Chieftains já tudo ou quase tudo se disse. Actualmente, passeiam a sua classe pelo mundo, contactando com as suas diversas culturas, que trazem para o convívio da Irlanda. Desta feita, contudo, aproveitaram a homenagem a Bunting para põr em destaque a harpa, o antigo instrumento tocado pelos bardos guerreiros da Irlanda antiga. Álbum sereno, de respiração ampla, navegando nas tonalidades aquáticas da harpa, guardou espaço para os traços mais nostálgicos da tradição irlandesa. Quatro temas constituem outros tantos solos de Matt Molloy, em flauta, Derek Bell, na harpa, Paddt Moloney, nas “uillean pipes”, e Kevin Conneff, numa vocalização “a capella”.
Quanto aos “rapazes do lago”, cumprem com merecimento a modéstia da sua proposta, em “The Fair Hills of Ireland”, enésima revisitação dos “reels”, “jigs”, “airs”, polcas e outros modos tradicionais que já entraram na rotina dos nossos hábitos de audição. Com inevitável competência e alguns momentos de maior brilhantismo – aqui a belíssima balada “Ban chnoic Erin O”, num diálogo de excepção entre a voz, o violino (Aly Bain é o elemento dos Boys com maior índice de virtuosismo) e o piano -, ou de exotismo, como é o caso da tradução ao vivo, em “The hunt”, de uma caçada à raposa, na qual o violino de Aly Bain perde completamente as estribeiras. Registe-se ainda a voz “a capella” de Cathal McConnell (excelente flautista, exemplar a sua execução em “The midsummer’s night”), em “The wind that shakes the barley”, modalidade pouco habitual na música deste grupo. E chega de Irlanda, durante uns tempos. Um último brinde, vindo da Escandináveia: chegou finalmente aos escaparates o álbum “Kaksi!” dos Hedningarna.
Hip, hip, hurra!

Vários (Barzaz, Battlefield Band, Uxia, Sétima Legião, Barabàn, Chieftains) – “Peregrinos / O Despertar Dos Mágicos” (festival | antevisão)

pop rock >> quarta-feira, 31.03.1993


PEREGRINOS

O Festival Intercéltico do Porto, chegado à quarta edição, tornou-se uma instituição. Mais do que uma série de espectáculos musicais de música tradicional, o Intercéltico é um local de peregrinação onde, no princípio da Primavera, arribam os apreciadores e amantes destas música com raiz na eternidade. São três dias de festa no verdadeiro sentido da palavra: de celebração, de “diálogo e convívio entre as diferentes músicas e tradições de povos com um passado comum”, como afirma a organização. Os concertos podem ser melhores ou piores, mas o ambiente é único. Come-se bem, bebe-se melhor, ouve-se música, mergulha-se no âmago de uma cultura que também é a nossa. “Celta”, ou “céltico”, o termo está hoje na moda. Mas por detrás do folclore e das imagens que vão formando o “puzzle” de uma Europa genuína, está o amor a uma causa e muito trabalho. Porque nem só de música vive um festival, a organização (desde a primeira hora da responsabilidade da equipa da MC-Mundo da Canção) compreendeu a necessidade de um enquadramento à altura. É assim que, uma vez mais, o Intercéltico apresenta uma lista de actividades paralelas que neste ano incluem conferências, exposições, videorama, artesanato, banca de discos e revistas e a iniciação ao vidicuestla, o antigo jogo de xadrez celta.
Para completar o círculo (ou a espiral…), refira-se ainda a publicação, à semelhança do que aconteceu nos anos transactos, de um livro-programa de 160 páginas sobre o festival, com informação detalhada sobre a programação, incluindo textos e discografias dos artistas presentes, uma “bibliografia céltica”, uma compilação das leis (delirantes) dos Brehons, ou seja, as leis antigas da Irlanda, e até esquemas pormenorizados de algumas jogadas de vidicuestla…
Um elogio especial para Mário Correis, da organização, pelo notável trabalho de investigação e divulgação levado a cabo. Agora é tempo de fazer as malas, rumar ao Porto e viver um fim-de-semana diferente. Num tempo e num local que parecem ter sido tocados pela magia de Merlin. Na companhia das fadas, duendes e elfos que existem, porque a imaginação os materializa. O Festival Intercéltico é essa teia cruzada do mito com a actualidade, do ancestral com o moderno. Ritual de comunhão com a nossa identidade mais profunda.

O DESPERTAR DOS MÁGICOS



Barzaz e Battlefield Band preenchem o cartaz musical do primeiro dia do festival. Vibrantes os primeiros, transportam consigo a força dos rochedos e das ondas do mar que esculpe as costas da Bretanha. Mais serenos os segundos, abrigados de momento na calma enseada de um lago escocês.
Inseridos no movimento de renovação da tradição musical bretã encetada nos anos 70 por Alan Stivell, os Barzaz resultam da confluência de projectos anteriores dos seus membros, investidos da missão de levar a música da Bretanha aos círculos exteriores do mundo celta. Assim, na árvore genealógica do grupo descobrem-se os ramos Skolvan, Galorn, Kornog e La Mirlintantouille. Os Barraz fazem da beleza, por vezes rude, da música bretã uma arma contra aqueles a quem a história da Bretanha, “secreta e controversa”, incomoda, os mesmos que “ocupam os lugares do poder” e que interpretam essa História “de forma a melhor poderem dispor das suas gentes e do seu tempo”.
Os Battlefield Band são a instituição folk por excelência da Escócia. “Forward with Scotland’s Past” é o seu lema. Existem há décadas e passaram incólumes pelas tempestades. Da formação original resta o vocalista e teclista Alan Reid. O espírito, esse, manteve-se. Traçaram ao longo de uma vasta discografia os contornos da tradição escocesa sem nunca voltarem costas aos problemas sociais do presente. Juntam o canto da tragédia à dança e aos ritos da terra. O novo álbum, “Quiet Days”, é mais intimista que os anteriores. Uma pausa e um segredo entre o clamor da batalha.

A Voz E O Fogo

Sexta-feira é dia ibérico. Actuam Uxia e os Sétima Legião. Para a cantora galega Uxia significa o regresso ao Intercéltico, depois da sua aclamada participação, no ano passado, no projecto “Bailia das Flores” de Tentúgal. Uma voz, belíssima, com frequência desaproveitada. Esteve ligada ao grupo Na Lua onde a sua luz depressa começou a ofuscar os restantes músicos. Disse uma vez numa entrevista: “o importante nun cantor ou cantora é que prevaleza a voz; caquera instrumento que a oculte dificulta a sua comprénsion.” Não por acaso, o melhor trabalho dos Na Lua, “Estrela de Maio”, é aquele em que as vocalizações de Uxia surgem com maior proeminência. Abandonou entretanto o grupo para gravar um álbum algo incaracterístico, “Entre Cidades”, onde é sensível a falta de uma direcção definida. Porque não reatar as maravilhas do seu primeiro trabalho a solo, “Foliada de Marzo”?
Quanto aos Sétima Legião, cujo último álbum, “O Fogo”, foi mal recebido por alguma crítica, vão apresentar no Intercéltico um espectáculo especialmente concebido para o efeito que privilegiará as conotações célticas da sua música. Ao vivo, costumam criar um ambiente festivo, bastante diferente da melancolia que caracteriza os trabalhos discográficos da banda. Veremos se é desta que acendem o fogo.

Celebração

Absolutamente a não perder, o terceiro e último dia do Intercéltico. Com dosi grupos de passdo diferente mas ambos de qualidade musical fora de série: Barabàn, de Itália, e Chieftains, os reis magos da folk irlandesa.
Formados em Milão em 1982, os Barabàn dedicam-se ao estudo e interpretação da música do Norte de Itália, em particular da Lombardia e do Piemonte. Em disco, assemelham-se em sonoridade aos La Ciapa Rusa, seus vizinhos piemonteses. Baladas, canções de embalar, cantos satíricos e militares ou de protesto, cantigas de jograis e outros modos característicos da tradição (jigas, valsas, alessandrinas, monferrinas, curentas, sestrinas, “carmagnolas”, tuninas, “saltarelos”, …), recolhidos, na maioria, por Aurelio Citelli e Giuliano Graso, compõem o reportório básico dos Barabàn, servido pela utilização de instrumentos típicos da região: o “organetto” diatónico, flautas, ocarinas, sanfona e, claro, o “piffero” e a “musa” (incluindo a variante solista, a “piva”), a gaita-de-foles do Piemonte. Vão ser decerto, a par dos Barzaz, uma das revelações do festival.
Finalmente, os Chieftains encerram em glória o festival. Já não há palavras que cheguem para traduzir a importância desta banda lendária. Hoje, os Chieftains, como se tivessem uma varinha mágica, transformam em ouro tudo em que tocam. Depois de anos e anos a levarem ao mundo a música da Irlanda, passaram a trazer a música do mundo para a Irlanda. E a transformá-la por dentro. Levaram os caminhos da Irlanda ao encontro da China (“The Chieftains in China”), da Bretanha (“Celtic Wedding”) e dos Estados Unidos (“Another Country”). Cumpriram o ciclo nesse ritual apolíneo de convergência dos povos celtas que é “Celebration”.
Autêntica universidade da tradição onde leccionam alguns dos melhores instrumentistas da Irlanda, os Chieftains iluminaram diversos aspectos da cultura e da História desta nação onde ainda habitam as divindades antigas. O rock presta-lhes actualmente vassalagem. Eles retribuem e convidam músicos dessa área para participar nos seus álbuns, mantendo intacta a originalidade e a magia. Mas acabam sempre por regressar ao altar verde da única religião que professam – a música da ilha que lhes é exterior e interior, a Irlanda. O novo álbum, “The Celtic Harp”, tem a participação da Belfast Harp Orchestra. Nesta segunda vinda dos Chieftains a Portugal, ouçam-nos com os sentidos alerta, mas também com o coração.

Todos os espectáculos no Teatro Rivoli, com início às 21h30.

ACTIVIDADES PARALELAS

CONFERÊNCIAS: “L’Art des Celtes”, 1 de Abril, no Institut Français do Porto, e “L’Europe des celtes, V ème-Ier siècle a, C.”, dia 2, na Faculdade de Letras do Porto, ambas por Venceslas Kruta.

EXPOSIÇÕES: “Instrumentos Populares Portugueses”, 26 de Março a 18 de Abril, na Rua da Reboleira, Ribeira.
“Suonatori e Strumanti Popolari de’llApenninni”, 30 de Março a 3 de Abril, no Teatro Rivoli.

ARTESANATO: “Pablo Leal – um artesão galego”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

VIDEORAMA: “Imagens Musicais Intercélticas”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

DISCOS / REVISTAS: “A música celta e a folk europeia”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

TEMPO LIVRE: “Vidicuestla – o jogo de xadrez celta”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.