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Annette Peacock – “Annette Peacock Regressou A Portugal – Voz De Gata”

cultura >> domingo, 12.09.1993


Annette Peacock Regressou A Portugal
Voz De Gata


Na sua segunda apresentação em Portugal, Annette Peacock fez questão de afastar os preconceitos de uma cantora fria e distante do público. Partiu com os “blues”, viajou com a “funky” e disse o que tinha a dizer na sua forma pessoal de fazer “rap”. Uma voz de gata que seduz e fere quando e como quer.

Estavam lá todos, na noite de sexta-feira, os do costume, os apreciadores e “poseurs”, frequentadores com passe vitalício destas coisas da “alternativa”, das vanguardas, enfim das músicas que fazem a diferença. Annette Peacock, a cantora norte-americana de voz como um semifrio, capaz de provocar paixões para logo de seguida as apagar, gelo e degelo, serviu de pretexto. Já cá tinha estado há três anos. Agora voltou, mais descontraída, qual “cat woman” portadora de uma mensagem que por vezes se tornou difícil de entender.
O teatro S. Luiz, em Lisboa, local bem mais apropriado para intimismos musicais que a Aula Magna, onde a cantora se apresentou na anterior visita ao nosso país, não estva a abarrotar mas pouco faltou. Na primeir aparte actuaram os portugueses Sensaborões, perdão, Ficções. Tocaram bem, muito afinados, muito atinados, muito “jazz rock” betinho, temas com princípio meio e fim (por esta ordem), sem derrapagens, montes de melodia, com tudo no lugar, onde é que nós e eles íamos…? Intervalo.
Para a passagem de modelos da praxe. Pela “passerelle” do “foyer” passaram várias raparigas disfarçadas de Annette Peacock, com base nas fotografias ou nas imagens conservadas na memória, em traje austero, negro, claro, gorro ou chapéu (faltou o véu…), armando um “look” frio e distante a condizer. A senhora pavão, a verdadeira, trocou-lhes as voltas, surgindo em palco de “jeans” e camisa claros, luvas brancas e o ar de quem estava ali para se divertir. Foi de facto uma Annette Peacock diferente da cantora de pose hierática que assombrou a Aula Magna. Vê-se que está mais madura, mais solta. Meneou as ancas, na procura do “beat” exacto para cada canção, encenou com o corpo o gesto sensual, rodopiou sobre si própria, num dos temas avançou até à boca de cena, atrevendo-se a uma proximidade com o público que não lhe é habitual.
Acompanhada por Michael Mondesir, no baixo, Eric Appapoulay, na guitarra, e Keith Le Blanc, na bateria, a cantora nova-iorquina interpretou temas de álbuns como “X-Dreams”, “The Perfect Release”, “Skay Skating” e “Abstract Contact”, além de uma canção nova apresentada na ocasião em estreia mundial. Num registo que começou por se deixar habitar pelas labaredas dos “blues” para aos poucos se instalar no território da palavra, que Peacock maneja com a concisão e perícia de um médico legista, o concerto progrediu de forma descontínua, entre o gemido e o manifesto, o sussurro e o grito, nas baladas de amor (e o amor, em Peacock, é sempre algo complexo que passa pelo cérebro) ou nos “raps”, declamados como um repto à sociedade norte-americana, racionalizados ao extremo. “The succubus” e “Elect yourself”, que a cantora procurou recriar simulando a atmosfera de um “dark club in New York”.
Canções conhecidas como “Memory is”, “Happy with my hand” (na qual faz a apologia da masturbação), “Pride”, “My mama never taught me how to cook”, “We’re adnate” ou a derradeira “The real & defined androgens” (onde a voz, transformada pelo sintetizador, adquiriu tonalidades angelicais) apareceram transfiguradas por arranjos, quase sempre “funky”, que já haviam sido explorados em “The Perfect Release”, com os textos a funcionar como catalisador.
E aqui residiu o principal problema. Não sendo fácil o inglês cantado (falado) por Peacock, ficaram perdidas pelo ar as frases que magoam e perturbam, sobrando o vulcão e a circularidade de um som não muito versátil que a artista utilizou na definição de um universo talvez demasiado fechado sobre si próprio. Deixados de fora, fomos como crianças que faltaram à chamada. Na posse da chave, entrámos num mundo sensível ao toque virtual, infiltrado pelo medo e pela alienação (“the age of the individual is over”, escutou-se numa das canções). Um mundo de imagens em constante mutação que aos humanos mais nãoconcede, di-lo o título do álbum mais recente (“Abstract Contact”), senão um contacto abstracto.

Júlio Pereira – “Júlio Pereira Estreou Novo Espectáculo Em Lisboa – A Matemática Do ‘Swing'”

cultura >> segunda-feira >> 07.06.1993


Júlio Pereira Estreou Novo Espectáculo Em Lisboa
A Matemática Do “Swing”


Para Júlio Pereira, o concerto de sábado, no Teatro S. Kuiz, em Lisboa, representava a sua estreia a solo na capital. Ultrapassada uma fase inicial de algum nervosismo, o bandolim disparou para uma actuação brilhante, num recital de intuição e virtuosismo. Só a voz de Minela pecou por falta de discrição.



A responsabilidade era muita. A assistência não tanto, mas mesmo assim suficientemente numerosa para compor a sala e testemunhar o novo projecto ao vivo de um dos grandes instrumentistas de música popular portuguesa da actualidade. Acompanhado por Moz Carrapa, antigo elemento dos Salada de Frutas, na guitarra acústica, e por Minela, voz e sintetizador, o autor de “O Meu Bandolim” percorreu fases diversas do seu reportório, dos tempos de divulgação do cavaquinho até ao período recente de vassalagem ao bandolim, único instrumento que tocou ao longo da moite.
Excelente na técnica de “rasgar” e no dedilhar das cordas, Júlio Pereira soube precaver-se contra o perigo do mero exibicionismo técnico. Deixou-se levar pelos caminhos da intuição sem com isso perder a bússola. O “swing” nas equações da matemática. Moz Carrapa assumiu-se como suporte e contraponto ideal das malhas urdidas no bandolim. Seguro, sempre, dialogante quando lhe foram pedidas explicações e comentários. Acima de tudo foi protagonista atento e equilibrado, resistindo de igual modo à subserviência e ao autoritarismo.

O Grito De Minela

Teriam sido só harpas e rosas se a magia não quebrasse por onde à partida não seria suposto tal acontecer, pela prestação de Minela, uma voz que sabe e costuma ser de assombro mas que no S. Luiz não soube encontrar o registo adequado. A ela coube interpretar uma série de canções de José Afonso – “Teresa Torga”, repetida no segundo “encore”, “Maio maduro”, “Fura fura”, “Milho verde”, “Entrudo”… – que defendeu com garra mas onde se perdeu quando lhe era exigida maior contenção. Demasiada estridência (defeito que a mesa de som poderia ter corrigido mas não corrigiu), hesitações no tempo e, sobretudo, alguma ostentação, situaram a cantora na margem oposta à de Moz Carrapa. O equilíbrio das cordas da guitarra por oposição ao excesso das cordas vocais.
O despropósito atingiu o auge numa improvisação (?) sobre “Milho Verde” com pretensões a experimental, segundo aquela concepção de que o experimentalismo, quando da utilização da voz, é sinónimo de gritaria. Até poderá ser “de gritos” mas não da forma como Minela o fez, descontrolada, pulmão à rédea solta, qual Castafiore serialista. Visivelmente, a cantora açoriana não é uma Diamanda Galas nem uma Irene Papas. Depois também não se percebeu muito bem aquela passeata pelo palco, em dança, sem graça nem leveza, acompanhada de palmas fora do compasso, durante uma conversa arrebatada mantida entre Júlio Pereira e Moz Carrapa, na introdução de “Fura Fura”. Desviou as atenções e não acrescentou fosse o que fosse à música. Pelo contrário, o sintetizador esteve mais apagado do que seria desejável, marcando presença a um nível quase subliminar.
Fora tais despautérios foi uma delícia escutar as cordas em festa do bandolim, no duelo com a guitarra, em “Palaciana”, numa “Nortada” em que o bandolim serviu de instrumento de percussão, na pura vertigem de um “Miradouro” revisitada, nas encruzilhadas da música búlgara que antecederam a explosão do “Entrudo”.
Júlio Pereira, sem computadores a estorvá-lo, é um músico que não cessa de evoluir. O caminho está livre à sua frente. A música tradicional, não há espanto nisto, chama do futuro. Saber dar-lhe voz sem lhe cortar as raízes, eis a vereda, eis o segredo. Júlio Pereira tem as cordas do tempo na mão.

Paco Ibanez – “A Poesia É Uma Arma” (concerto)

cultura >> sábado >> 05.06.1993
CRÍTICA DE MÚSICA


A Poesia É Uma Arma



Paco Ibanez, mais do que simples cantor, é hoje um símbolo de luta e de integridade. Mesmo se a voz já lhe vai faltando, continua comm a mesma acutilância e a vontade de cantar “la poesia espanola de hoy y de sempre”. No Teatro S. Luiz, para ouvir Paco Ibanez, sala cheia como um ovo, quinta à noite. Cheia de recordações, cheia de olhares perdidos na contemplação de sonhos que o tempo aos poucos foi corroendo. Paco Ibanez, cantor espanhol de “intervenção”, no sentido mais lato que a palavra pode ter, simbolizou ao longo dos anos 60 e 70 a defesa de valores humanistas e a luta contra a opressão, na Espanha de Léon Filipe, Miguel Hernandez e Rafael Alberti.
Tudo certo e valoroso mas… e a múisica? Paco Ibanez, e a afirmação mexerá talvez com as convicções de muita gente, não é um grande músico. E não o é porque a sua arte jamais extravasa os limites do canto, sem dúvida empenhado, mas sem a verticalidade (no sentido de movimento para a transcendência) que, esta sim, está no cerne da verdadeira revolução. Afirmar, como alguns o fazem, que o canto deste artista espanhol retoma a tradição dos trovadores da Idade Média (e descontando o facto de ficarmos para sempre sem saber como canvam realmente os cantores da Idade Média…) é confundir o acto de ascese com a escalada do alpinista. É confundir o anjo com D. Quixote.
Ficou a imagem de um homem íntegro, tendo como únicas armas, no S. Luiz, uma guitarra acústica, um copo e palavras certeiras, na defesa de princípios por que sempre pugnou. Das dedicatórias a Luís Cília e a José Saramago, aos textos de S. João da Cruz, Pablo Neruda e Rafael Alberti, “la poesia es una arma”. Sucederam-se as canções, entoadas numa rouquidão surda, num gemer sentido que substitui os clamores de outrora: “El pastorcico”, “Como tu”, “Romance del conde nino”, “Dolor”, “Palabras para Julia”, “Juventud, divino tesoro”, “A galopar” (cantada em coro pela assistência) ou, em “encore” insistentemente pedido pelo público (houve quem gritasse por “Soldadito boliviano”) e fora do alinhamento previsto, “Don dinero”.
Dependendo do ponto de vista, da disposição e da imaginação de cada um, o espectáculo de Paco Ibanez tanto pode ser visto como o testemunho do artista íntegro que nunca desiste e há-de cantar até que a voz lhe falte (e, de quando em quando, já vai faltando…), como uma oportunidade de encontro de antigos companheiros de luta, incluindo os reciclados, ou ainda uma sessão transviada do concurso “Zip Zip”. Pela reacção de entusiasmo geral demonstrada pelo público, vamos mais por estas três hipóteses.