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Fernando Meireles / Vários – “Terminou Ontem O Ciclo De Instrumentos De Corda, No Teatro Da Trindade, Em Lisboa Música Sanfónica” (festivais / concertos/ etno /portugueses)

Secção Cultura Segunda-Feira, 11.02.1991


Terminou Ontem O Ciclo De Instrumentos De Corda, No Teatro Da Trindade, Em Lisboa
Música Sanfónica
(Fernando Magalhães e Vasco Câmara)

A sanfona de Fernando Meireles e restantes Realejo encantaram, ontem, o escasso público presente na sala do Chiado. Na véspera, Carlos Paredes tocou e falou da guitarra portuguesa, e as marionetas de Santo Aleixo recriaram o mundo é escala dos sonhos.



Fernando Meireles fabrica instrumentos musicais de corda. A sanfona que tocou no Teatro da Trindade levou três meses a construir. Durante esse período não lhe sobrou tempo para mais nada, mas acha que valeu a pena. As paixões são assim. A sua nasceu há cinco anos, quando principiou a investigar a documentação existente sobre o instrumento, extinto no nosso país desde meados do século passado. Viajou um pouco por todo o lado, escutando os segredos ocultos no chorar da sanfona. Depois foi só basear-se numa figura de presépio do séc. XVII, de Machado de Castro, e confiar na intuição e nos seus próprios conhecimentos de mecânica acústica.
Ontem à tarde, perante uma assistência de pouco mais de trinta pessoas (16h00, domingo de Carnaval, não seria propriamente o horário ideal…) Fernando Meireles apresentou-se integrado no agrupamento Realejo, formado em Coimbra o ano passado. O grupo dedica-se à interpretação de música exclusivamente tradicional, “com arranjos instrumentais substituindo as partes cantadas e variações sobre as melodias originais”.
Para além do Fernando (também membro dos “Ars Musicae de Coimbra” especializados no reportório medieval e renascentista da Península Ibérica) que toca sanfona, violino, bandolim, cavaquinho e percussão, fazem ainda parte dos “Realejo”, Amadeu Magalhães (gaita de foles, flautas de bisel, cavaquinho e braguesa), Santos Simões (guitarra, bandolim e percussão) e Cesário D’Assunção (guitarra, braguesa e percussão).
Interpretaram temas do périplo celta da península: melodias e danças da Galiza, da Bretanha e do Norte do país (Bragança, Vinhais, Amarante), como não poderia deixar de ser. Para Fernando Meireles esta é a música que mais tem a ver consigo, aquela que o “toca de perto”. Nota-se – no brilho dos olhos, quando faz girar a manivela e os seus dedos deslizam sobre as teclas de madeira antiga da sanfona.
Se por vezes se tornam perceptíveis algumas limitações técnicas da parte dos músicos, nem por isso é menor o prazer extraído da audição dos sons e cadências ancestrais que fazem vibrar a memória de um povo, apelando para uma raiz colectiva que já quase esquecemos, perdida na voragem do século.
Situados à margem do “Folklore com K”, para turista ver, com ‘trajezinhos’ e, na maior parte das vezes, os instrumentos miseravelmente tocados” – como Fernando Meireles faz questão de frisar, os Realejo encaram a música como um acto de entrega amorosa. Para além das modas e oportunismos, longe da ignorância e inépcia oficiais, ficam “aqueles que gostam mesmo disto e acham que vale a pena lutar”.

O Paraíso Dos Bonecos

As Marionetas de Santo Aleixo, os títeres tradicionais do Alto Alentejo, abriram o programa de sábado, dia 9, com o “Auto da Criação do Mundo”. Construídos em madeira e cortiça e de dimensões muito pequenas – 20 a 40 centímetros – os bonecos, propriedade do Centro Cultural de Évora, são manipulados no retábulo, que é a reprodução em miniatura de um palco tradicional, com cenários pintados em papelão e iluminação a candeia de azeite.
O “Auto da Criação do Mundo” é a recriação, popular, brejeira, mas também trágica, da parábola bíblica da queda de Adão e Eva do paraíso, expulsos por um Deus avaro que contava os frutos do pomar do paraíso terrestre. Nos vários quadros, cujo elemento de ligação era um coro de anjos impertinentes e tontos que esvoaçavam sobre o pequeno cenário, foi constante, durante os 45 minutos de representação, a provocação e o diálogo com a assistência. Um pouco à maneira da revista à portuguesa: “Como se chama esta avezinha?”. “Pomba”, responde alguém do público. “Então meta aqui a tromba!”.
A fraca iluminação projectava no fundo negro do palco do Teatro da Trindade as enormes sombras dos cinco manipuladores das marionetas, acentuando o lado trágico desta farsa de que são protagonistas Deus, Adão e Eva – “duas carnes e um só osso” – Caim e Abel.

História Da Guitarra

Estes bonecos tradicionais, os textos, das peças, de transmissão oral e o suporte musical começaram a ser divulgados pelo etnólogo Michel Giacometti a partir do final da década de 60. Juntamente com Mestre Manuel Jaleca, “grande guitarrista de Évora”, a figura de Giacometti foi lembrada por Carlos Paredes no pequeno recital – pouco mais de meia-hora – que deu a seguir à representação dos títeres alentejanos.
Foi uma curta viagem pela história da guitarra portuguesa, desde o seu antepassado mais recuado, a citola, até ao modelo que o músico usou no recital, e que foi definido no século XVIII. As peças que Paredes interpretou – “Dança dos Camponeses”, “Variações”, “Verdes Anos” – serviram-lhe para explicar as várias facetas do instrumento, capaz de exprimir o fatalismo e a saudade mas também o vigor e a violência. Oportunidade para Carlos Paredes lembrar o pai, Artur Paredes, o criador de um género novo, a guitarra de Coimbra.
No final houve direito a um “encore” pedido pela assistência que não enchia a plateia do Teatro da Trindade, e que era constituída, na sua maioria, por sócios do INATEL, com direito a desconto de 50 por cento nos 1200 escudos que era o preço do bilhete.