Né Ladeiras – “Todo Este Céu”

POP ROCK

2 Abril 1997

NÉ LADEIRAS
Todo este Céu (7)
Ed. e distri. Sony Music


nl

Na capa, um lobo uiva à lua, contra um céu Walt Disney. O tema final, “Invocação da alcateia”, é constituído, na íntegra, pelo uivo da loba Morena, adoptada por Né Ladeiras, destacando-se da invocação colectiva da alcateia, sob a “direcção” do “invocador dos uivos”, Francisco Fonseca, do Centro de Recuperação do Lobo Ibérico. À excepção deste e de “Ponto de Oxum Nagô”, um tradicional do Congo onde a cantora exprime a sua devoção pela religião do candomblé e pela sua “Mãe Mariana”, numa invocação aos seus orixás, todos os restantes temas são da autoria de Fausto Bordalo Dias. “Todo este Céu” faz a sobreposição do universo pessoalíssimo de Fausto com o misticismo de Né Ladeiras. O encontro entre ambos nem sempre expressa da melhor maneira os hipotéticos pontos em comum que para Né são uma certeza. O tom é predominantemente arrastado, hipnótico, como uma mantra que pretendesse penetrar no segredo de uma relação sagrada, nos três primeiros temas, “Lembra-me um sonho lindo”, “Diluídos numa luz” e “Porque não me vês”, enriquecidos pela ponteira de Amadeu Magalhães e a guitarra acústica de Miguel Veras, ambos dos Realejo. Em “Ao longo de um claro rio de água doce” e “Eu tenho um fraquinho por ti” é a voz da discípula que fala, encantada com os ritmos do mestre. O misticismo desaparece em “Uma cantiga de desemprego”, cujas conotações políticas com uma época particular apagam eventuais ligações ao corpo interior. “Flagelados do vento Leste” retoma as sonoridades africanas, enquanto “Oh pastor que choras” põe em dia o contacto entre o lobo e a loba, ainda que a familiaridade da melodia apenas conceda o prazer da novidade no deslizar triste do “tin whistle” de Amadeu Magalhães. Passando por uma “Rosalinda” demasiado deleitada no original, chegamos à magia do princípio e à cadência de um sonho. Primeiro com uma vocalização, algo desequilibrada, de Jorge Palma, em “Atrás dos tempos”, a seguir, num desenho a tira-linhas sobre o céu, em “De Ocidente a Oriente”. “Todo este Céu” adormece. Teríamos preferido mais garra, neste encontro onde se adivinha que o respeito terá impedido a liberdade de voo. Os lobos que “cantam” em “Invocação da alcateia” não tiveram esse problema.



Xutos & Pontapés – “Dados Viciados”

POP ROCK

26 Março 1997
portugueses

XUTOS E PONTAPÉS
Dados Viciados (7)
Ed. E distri. EMI-VC


xp

“Telecaster”, o instrumental que abre “Dados Viciados”, não consta do alinhamento. Para se ouvir este tema-fanstasma em que os Xutos fazem a recriação “kitsch” do ambiente de um casino, deve-se carregar continuamente na tecla de recuo do leitor, no início do tema número um, até se entrar na contagem de tempo correspondente ao tema escondido que está gravado antes.
Se se preferir começar “Dados Viciados” pelo tema de abertura, com o mesmo nome, apanha-se, de imediato, com um pontapé na cara. A entrada do grupo de Tim, Zé Pedro, Kalu e João Cabeleira para a sua actual editora coincidiu com o desengatilhar de energias contidas, agora libertas em puro rock’n’roll. As guitarras dispararam, o ritmo acelerou, o império do “riff” veio para ficar. Ronnie Champagne, o produtor que soube adivinhar nos Xutos toda esta força contida e canalizá-la através de um som mais internacional do que o das obras precedentes, reduziu a estrutura das canções ao essencial: voz, guitarras, baixo e bateria, lançados a galope, como se o tempo escasseasse e os Xutos tivessem urgência em atirar às cegas os dados desta sua nova aposta.
Descansa-se ao tema número quatro, “Manhã submersa”, com passagem para o psicadelismo, inoculado de orientalismo, de “Um jogador”, acelerando-se um pouco em “Mil dados”, sequência de “riffs” pesados, na tradição dos grandes mamutes da antiguidade, Deep Purple, Led Zeppelin e Black Sabbath. “Negras como a noite” inicia-se no balanço suave de uma guitarra acústica, a letra e vocalização de Tim fazendo lembrar a mesma temática de separação dos Rio Grande. Nas distorções dilacerantes da guitarra que angustiam “No quarto de Candy” entra-se para o mesmo quarto frequentado, a horas proibidas, pelos UHF.
Mas é no rock que se forjou e continua a afirmar a identidade dos Xutos, quer em desaustinação “punk”, quer em velocidade de cruzeiro. Não há em “Dados Viciados” qualquer espécie de ruptura com o passado, mas antes a redescoberta e rejuvenescimento das mesmas premissas de sempre: dizer depressa e sem subterfúgios o tempo que escasseia e a vontade de ir em frente, mesmo se pela frente estiver um muro ou um abismo. É a velha máxima do “No future” reciclada para os anos 90, segundo as regras de um jogo, à partida, viciado. Mas os Xutos continuam a lançar a cabeça contra o pano verde.



Segredo Dos Deuses – “Segredo Dos deuses”

POP ROCK

26 Março 1997
portugueses

Segredo dos Deuses
Segredo dos Deuses
ED. BMG


sd

A máscara da cantora careca Sinead O’Connor deu lugar ao rosto verdadeiro de Inês Santos, para o melhor e para o pior, a vencedora incontestada de um dos concursos do programa Chuva de Estrelas. “Segredo dos Deuses” é um trabalho despretensioso em que o esforço colectivo se sobrepõe ao individual, embora, como é óbvio, a voz de Inês de destaque naturalmente. Predominam as baladas em tempo médio, o cuidado posto nos textos e a preocupação com os ambientes. A voz de Inês faz lembrar, curiosamente, em mais do que uma ocasião, no timbre e na colocação, a de Annie Haslam, cantora de um grupo de rock sinfónico dos anos 70, os Renaissance. Aliás, temas como “Guardador de rebanhos”, “Marés sem tempo”, “Se tu viesses ver-me…” e, sobretudo, “Fugaz” e “Brilhos perdidos” exibem uma construção cujas parecenças com a música daquele grupo são impressionantes. É um álbum fora de tempo e das tendências em voga, simpático e agradável, que cresce a cada audição. Há um momento delicioso quando Inês Santos faz a voz balançar sobre as sílabas da palavra “suave”, em “Suave e só”, aqui com semelhanças com outro grupo dos anos 70, os Curved Air. Ao longo de todo o disco é notório o prazer que todos os músicos sentiram em tocar uns com os outros. Os deuses, decerto, não os irão abandonar. (6)