Arquivo da Categoria: Entrevistas 1997

Entrevista: Mark Sandman – “Natação Obrigatória”

Pop Rock

5 Março 1997

NATAÇÃO OBRIGATÓRIA

“Low rock” é como Mark Sandman, baixista e “tritarista” dos Morphine, define o som do novo álbum do grupo, “Like Swimming”. Sem fado, mas com mais espaço e dedicatória à música egípcia. E um uso intensivo dos sintetizadores, só porque estavam ali mesmo à mão no estúdio. O regresso a Portugal está marcado para o princípio de Maio.

Depois de “Good”, “Cure for Pain” e “Yes”, o novo álbum dos Morphine, “Like Swimming”, exibe, em simultâneo, as marcas de uma ainda maior contenção e o desejo de experimentar novas paletas sonoras. Mara Mark Sandman, como o próprio explicou ao PÚBLICO, trata-se tão-só de tirar máximo partido das circunstâncias e de aproximar a dinâmica dos espectáculos à alquimia dos discos.


ms

PÚBLICO – Sobre o novo disco já afirmou que tem “mais subtracção do que produção”. Mas a verdade é que enriqueceram o som com instrumentos como sintetizadores, sequenciadores, órgão electrónico…
MARK SANDMAN – Digamos que acontecem menos coisas ao mesmo tempo. Há mais espaço. Um espaço que funciona como se fosse outro instrumento. Os outros discos já tinham sintetizadores, só que, desta vez, todos esses instrumentos que já usamos desde o início foram misturados mais alto. De resto, o método de gravação foi o mesmo, de maneira a que as canções possam ser tocadas ao vivo.
P. – O que é exactamente a “tritar” que surge na ficha técnica?
R. – É uma invenção minha. Tem uma corda de baixo e duas de guitarra.
P. – A necessidade de um som diferente?
R. – É mais uma questão de ser mais fácil de tocar do que um instrumento normal.
P. – Para os Morphine a técnica é absolutamente secundária?
R. – Sim, a esse nível sentimo-nos completamente perdidos [risos]. Nós tentamos, mas… Eu não tenho técnica do baixo de quatro cordas. Não consigo tocar. Toco uma canção e as mãos já não conseguem…
P. – Apesar disso, o som de baixo dos Morphine faz, por vezes, lembrar um contrabaixo…
R. – Mas convidámos para este disco um amigo que toca contrabaixo, na primeira canção e em “Empty box”. E, em “Hanging on a curtain”, o que parece ser um contrabaixo é, na verdade, um “mellotron”.
P. – “Mellotron” que foi um dos primeiros instrumentos electrónicos a ser utilizado nos anos 60 e, sobretudo, nos 70, pela escola progressiva. O termo “progressivo” assusta-o?
R. – “Progressivo” tem sido um termo cuja definição está constantemente a mudar. Como o “jazz” ou “alternativo”.
P. – “Like Swimming” demonstra um gosto, por vezes subliminar, pelos blues e pelo jazz. São dois universos determinantes no som dos Morphine?
R. – Ouço de tudo. Gosto de um tipo particular de blues, do início dos anos 50, os discos de Muddy Waters dessa época. Há um disco dele fabuloso, sem bateria, somente contrabaixo e “slide guitar”, com mais dinâmica do que qualquer energia rock dos dias de hoje. E muito mais dramático.
P. – Também aparecem em “Like Swimming” ambientes fumarentos, de bares em horas de fecho, um pouco ao modo de Tom Waits…
R. – Em certas canções há, de facto, muito esse ambiente “smoky”, do qual, sobretudo, os escritores gostam muito de falar.
P. – Como é que os Morphine trabalham em estúdio? Sente-se que os processos devem ser diferentes do habitual.
R. – Para a gravação de “Like Swimming”, usámos um gravador de 24 pistas, o que é vulgar nestas situações. Tentámos tocar o mais que pudemos ao vivo no estúdio. Nalguns casos, tivemos de acrescentar sons por cima. Costumamos trabalhar em estúdio bastante depressa, porque as canções vêm quase todas já rodadas dos espectáculos ao vivo. Mas acontece que acabamos por usar bastantes “overdubs”, por uma razão muito simples. É que depois de gravarmos a banda a tocar em conjunto, sobram ainda uma quantidade de pistas vazias. Nessa discutimos entre nós e incluímos toda a espécie de efeitos bizarros, utilizando tudo o que temos à disposição no estúdio. Daí a tal inclusão dos sintetizadores ou do “mellotron” nas misturas de “Like Swimming”, só porque, na altura, estavam ali…
P. – O que, ao vivo, é impossível de fazer. São uma banda diferente, nos concertos?
R. – Ao vivo, temos de fazer com que a coisa funcione só com três pessoas. Penso que soamos melhor ao vivo, o que, para mim, é óptimo, na medida em que aço que os nossos discos já são óptimos!… Já agora, tivemos uma quantidade de pedidos de entrevistas em Portugal, o que nos espantou, tratando-se de um país tão pequeno. Talvez cinco vezes mais do que as que tivemos em Inglaterra… Porquê? O grupo tem obtido uma reacção espantosa em Portugal. Posso dizer que a minha estadia aqui, quando o grupo veio cá tocar, influenciou totalmente a minha maneira de compor. Talvez fosse por causa de todas as sardinhas que comi, não sei!…
P. – A propósito disso, declarou no passado que iria usar um fado neste disco. Não cumpriu a promessa…
R. – Não usei, de facto, nenhum fado, mas isso não significa que a influência não esteja presente… O que talvez explique a boa reacção dos portugueses aos nossos discos…
P. – Também falou numa orquestra egípcia…
R. – Bem, mas isso aparece no tema instrumental de abertura, “Lilah”. Fizemos uma versão mais produzida, com vozes, e uma utilização intensiva de um naipe de cordas, mas não ficou pronta a tempo de entrar no álbum. Acontece que tenho vindo a interessar-me a fundo pela música egípcia, nos últimos anos. Descobri uma das superestrelas da música egípcia, Oum Kalsum [ou Kalthoum, por coincidência, uma das vozes preferidas por Amália Rodrigues]. Gravou cerca de 300 álbuns. E há um número enorme de bandas, uma cena pop egípcia com uma quantidade de estilos diferentes.
P. – Reconhece que não é vulgar um músico de rock interessar-se por esse tipo de sons?
R. – Na verdade, não ouço muita música pop quando estou em casa. É como ler um livro, não estou constantemente a ler livros, uns a seguir aos outros. Mas nessas ocasiões, ou quando estou a conduzir, ouço sempre discos que nunca, mas nunca, passam na rádio. Além de Oum Kalsum, música irlandesa, músicos irlandeses qjue tocam em todo o lado e vão para casa gravar discos e tocar durante horas e horas sem parar. Pessoas que aprenderam por elas próprias, cujo único prazer é tocar, sem se preocuparem em ser “pop stars”.
P. – Os Morphine também seguem os seus próprios métodos. Por exemplo, nas digressões, recusam-se a fazer as primeiras partes de outros artistas. Por alguma razão em especial?
R. – É muito mais divertido assim. Queremos que as pessoas venham para ver e ouvir os Morphine e não outra banda qualquer.
P. – O termo “post rock” diz-lhe alguma coisa?
R. – Absolutamente nada. O termo que se aplica a nós é “low rock”.
P. – Os Morphine vão voltar a actuar em Portugal proximamente?
R. – Sim, no próximo dia 1 de Maio, no Coliseu, em Lisboa. Só falta a editora confirmar.



Entrevista – Meira Asher: “As Cavidades Do Templo”

Pop Rock

12 Janeiro 1997

Meira Asher lança estreia controversa

AS CAVIDADES DO TEMPLO

O álbum de estreia da israelita Meira Asher, “Dissected”, promete dar que falar. Gritos e suspiros. Música das cavidades do corpo e da alma. Das suas doenças e dos seus sonhos. Poesia e experimentação sobrepostos num painel de tabus e sublimações. “World music” do fundo do poço.


ma

Meira Asher usa os textos bíblicos para dar a conhecer as suas visões. Ouve música de dança, mas não obedece às suas ordens de comando. Em viagem pelos caminhos da sexualidade, num “veículo próprio” entre a terapia e a denúncia, Meira Asher revelou ao PÚBLICO algumas das inquietações que manifesta em “Dissected”. Questionada sobre o diabo e a sua interferência na música, respondeu com uma citação de Job. Tão perturbante como a música.
PÚBLICO – “Dissected” é um álbum violento, de confrontação. Há alguma razão especial para ter escolhido esta estratégia de choque.
MEIRA ASHER – “Dissected” tem a ver com confrontação, mas não é violento. É um procedimento médico vulgar, uma observação mais de perto dos membros.
P. – Por que razão decidiu fazer também a produção do disco?
R. – Foi a coisa mais natural do mundo. Pretendi dar-lhe o toque mais pessoal possível. Em termos artísticos: projectar uma multiplicidade tumultuosa de disciplinas que resultasse numa síntese que pudesse manejar a meu bel-prazer. Em termos da indústria: as editoras que existem aqui [em Israel] não têm nem visão nem independência, todas elas lidam apenas com a música de Israel mais “mainstream”, que é extremamente chata. Os poucos músicos com uma atitude individualista que existem por cá geralmente produzem os seus próprios álbuns.
P. – O corpo e o sexo são duas das temáticas centrais de “Dissected”. Porque escolheu “Sida” para abrir o álbum?
R. – “Sida” tem por base uma oração de luto maravilhosa, chamada “Aquele que dá forma”. É uma invocação do poder de cura de Deus e refere-se a todas as cavidades do corpo humano. Quem ora não conhece nenhumas fronteiras, nem do tempo nem do espaço, nem da boca que canta…
P. – A relação que estabelece entre os textos bíblicos e alguns temas tabus da sociedade ocidental é outra estratégia de choque ou tem raízes mais profundas?
R. – Utilizo as escrituras por diversas razões. Uma dela é por ser uma grande obra de poesia, acessível, que emprega uma sábia sintaxe das sílabas hebraicas, o que resulta numa textura sonora de enorme profundidade. Aqueles que andam sempre a lamentar-se do desaparecimento da música do templo não se aperceberam deste facto. Por outro lado, a natureza eterna dos textos permite interpretações infindáveis, uma das quais é a sua manipulação tendenciosa por fanáticos, no contexto sócio-político de Israel.
P. – “Dissect me” fala de sofrimento, mutilação e tortura. Há uma relação óbvia com a Intifada, mas também permite outro tipo de leituras…
R. – … é um tema que traduz um sonho de horror que tive, durante a Intifada. Mas são possíveis outras leituras, sim… Sugerindo um Estado próprio chamado Palestina.
P. – “Maligora”, com poema de Tahar Bem Jelloun, é um dos temas mais fortes do disco. A energia sexual em circuito fechado. Uma espécie de tantrismo solitário. Que pretendeu dizer com este tema?
R. – O lugar é Marrocos. Na maior parte das sociedades orientais, quem não tem filhos e ainda por cima tem uma quantidade de filhas é objecto de desprezo. Um pai de sete filhas, frustrado, decide que o próximo será um rapaz, custe o que custar. O oitavo a nascer é, assim, uma “filha/filho”, como uma mentira, condenada a viver toda a vida na solidão. Ele leva as suas capacidades de escrita ao extremo de usar as palavras para preservar a sua sanidade. No parágrafo que utilizei, ela descreve o encontro sexual com o seu próprio corpo, à medida que vai descobrindo a sua identidade feminina. Tem 20 anos, o pai acabou de morrer e ela abandona a aldeia para uma longa viagem. “Maligora” é uma “raga” do Norte da Índia, entre a noite e a madrugada, em que os sentidos estão despertos e aguçados como o sabor do alho. A recitação do texto é feita pela harpista italiana Stefania Mpoiraghi.
P. – O incesto é abordado em “Daddy came”. Ainda e sempre o corpo e a pureza violentados?
R. – É um grito de despertar. Uma forma cáustica para nos recordar os direitos da criança.
P. – Está de acordo com que a sua música se pode considerar “ritual”, na medida em que induz a transformações, interiores e exteriores, de vária ordem?
R. – Sem dúvida.
P. – Trabalhou em musicoterapia, com crianças autistas. “Dissected” é, nesta medida, uma terapia ou, pelo contrário, uma contaminação?
R. – Digamos que um espelho da realidade. É necessária uma grande dose de energia para transformar um sonho como este em palavras. Lembro-me de, nessa altura, trepar pelas paredes e esborrachar os miolos contra elas…
P. – Que tipo de reacção tem tido este seu trabalho, em Israel?
R. – O “feedback” tem sido bom. As pessoas comovem-se, nalguns casos até às lágrimas. Os israelitas, embora raramente prezem a originalidade, admiram a honestidade.
P. – Sei que se interessa pela música electrónica, nomeadamente pela techno e industrial, formas musicais conotadas com a massificação, o apocalipse e o terror. De que maneira pretende trabalhar, no futuro, com estas formas musicais?
R. – Não posso predizer o que aí vem, mas planeio, de facto, entrar mais a fundo na electrónica. Há novo material a aparecer e estou na fase de procurar músicos para o tocar.
P. – Que relação mantém com a cena internacional da música de dança? Concorda que é uma óptima maneira de introduzir determinado tipo de mensagens ideológicas? O transe como veículo, não de ascese, mas de hipnose…
R. – Ouço bastante “dance music”, de toda a espécie, apesar de o meu corpo rejeitar a maior parte e não obedecer à ordem de comando “Move!” [Mexa-se!]. Propaganda e formas de hipnose podem e têm sido usados através de vários estilos de música. No que me diz respeito, sinto necessidade de criar um veículo protótipo.
P. – O demónio, caso acredite nele, está a trabalhar em pleno neste final do século. Concorda que a música é, presentemente, o seu instrumento privilegiado?
R. – “Satanás replicou ao Senhor: ‘Um homem é capaz de dar tudo o que tem, e até a sua própria pele, para poder salvar a sua vida! Mas experimenta levantar a tua mão contra ele, faz com que ele sofra a doença nos seus ossos e no seu corpo e verás se ele não te amaldiçoa, mesmo na Tua frente!’” Job, 2:4-5.



Entrevista: Arto Lindsay – “A Bossa Nova Tem Elementos Vanguardistas”

Pop Rock

29 Janeiro 1997

“A BOSSA NOVA TEM ELEMENTOS VANGUARDISTAS”

Em o “O Corpo Sutil”, Arto Lindsay canta toda a tristeza que pode ter a bossa nova. Uma música que “deixa o dito por não dito”, na qual encontra “elementos de vanguardismo”. Nutre uma admiração imensa por João Gilberto, “o maior cantor do universo”. Longe vão os tempos com os DNA, quando lia Fernando Pessoa, no meio de uma “barulheira danada”.


arto

Arto Lindsay, conhecido como uma figura de proa da “downtown” nova-iorquina, viveu quinze anos no Brasil. As sementes brasileiras ficaram, percorrendo a sua música desde o início, com os DNA, até ao seu mais recente álbum a solo, “O Corpo Sutil”, uma viagem em redor da bossa nova. O PÚBLICO conversou com ele. Em português.
PÚBLICO – Quantos anos viveu no Brasil e onde?
ARTO LINDSAY – Quinze anos, dos três aos dezoito. Vivi no Nordeste do Brasil, no interior, em Pernambuco, numa cidade chamada Garanhões. Mas viajava bastante pelo resto do país, com a minha família.
P. – Quando ouviu pela primeira vez bossa nova?
R. – Foi na rádio, quando a bossa nova começou. Tornou-se na música brasileira nacional. Sem dúvida, é uma música carioca mas também tem elementos do baião. Um exemplo é a batida de violão do próprio João Gilberto.
P. – Alem da bossa nova, ouve a música do Nordeste do Brasil?
R. – Com certeza! A música nordestina está sendo uma grande influência em toda a música jovem do resto do Brasil. Há actualmente músicos nordestinos geniais. Aliás, a melhor banda brasileira, hoje em dia, é pernambucana, Chico Science & A Nação Zumbi. Outra grande banda é a de Carlinhos Brown.
P. – Houve uma época em que todo o artista brasileiro fazia questão de gravar nos Estados Unidos. Falava-se, então, muito, em descaracterização. Concorda?
R. – No passado, isso ocorreu, de facto, nem sempre por culpa dos músicos, mas sim das editoras, que queriam encaixar os músicos num padrão americano. Não funcionou.
P. – A influência da bossa nova parece ter-se eclipsado no início da sua carreira, quando, no final dos anos 70, formou a banda de “noise rock” DNA. Ou não?
R. – Repare, o Brasil tem uma tradição muito forte de música de vanguarda. A própria bossa nova tem elementos vanguardistas, é muito conceptual. E a música do Tropicalismo foi a mais abrangente, no sentido intelectual do termo, dos anos 70. Havia, embora de maneira não óbvia, elementos de música brasileira nos próprios DNA. E tínhamos uma música cuja letra consistia em primeiras frases de vários poemas de Fernando Pessoa, que eu gritava no meio de uma barulheira danada!…
P. – Seguiram-se os Lounge Lizards. No disco de estreia, a sua guitarra era parte determinante do som do grupo. Depois, o saxofone de John Lurie passou a ocupar quase todo o espaço. Teve desinteligências com ele?
R. – Quando a gente começou, éramos, de facto, uma banda. Mas depois chegou uma época em que virou John Lurie e os Lounge Lizards, na qual não quis participar. Mas John Lurie continua sendo muito amigo meu. Ainda há dias falámos horas ao telefone.
P. – Um álbum em que as baladas cantadas, por si, em português, parecem algo deslocadas é “The Man in the Elevator”, de Heiner Goebbels…
R. – Exactamente por serem deslocadas é que elas surgem. Uma das escolhas foi do próprio Heiner, o tema da baiana. A outra música, do Cartola, fui eu que escolhi. O Heiner pretendeu colocar no meio daquela atmosfera, meio industrial, fria e triste, alguns momentos quase de sonho.
P. – Volta a cantar em português num disco pouco falado, “Comme des Garçons”, de Seigen Ono, em dois volumes repletos de estrelas da “downtown” e músicos brasileiros…
R. – É verdade. Foi uma das primeiras coisas que fiz como produtor, fiz a produção associada de algumas faixas. Por acaso, estou a trabalhar de novo com Seigen Ono, neste momento, na produção de um disco de um violinista japonês. O Seigen é o engenheiro de som.
P. – É verdade que foi Ryuichi Sakamoto a sugerir-lhe gravar um disco em torno da música brasileira, que viria a resultar em “O Corpo Sutil”?
R. – É verdade, sim. Ele gosta imenso de bossa nova e de coisas minhas que já conhecia, nesta área, coisas bem calmas. Pediu-me para fazer um disco de bossa nova. Eu concordei em fazer, pelo menos, um disco quieto.
P. – Um dos convidados mais assíduos no alinhamento do disco é Vinicius Cantuária…
R. – Foi uma escolha natural. A única pessoa que fui buscar a outro lado foi o Bill Frisell. O Vinicius veio morar em Nova Iorque; por isso, foi fácil. O Brian Eno também estava na altura da gravação a trabalhar em Nova Iorque, com David Bowie. Sakamoto também vive em Nova Iorque. Estava todo o mundo aqui.
P. – Por falar em Brian Eno, é uma das escolhas mais curiosas para o “line up”.
R. – Ele costumava vir ao estúdio onde estávamos, todos os dias, depois de trabalhar com o David Bowie, só para conversar. Em geral, finalizadas as sessões, saíamos os dois para jantar. Passou-se uma semana assim. No último dia, perguntei-lhe se não queria gravar um pouquinho. Nem tinha pensado nisso antes. Mas acho que combinou bem com a ideia do disco.
P. – O único tema de algum dos pais da bossa nova é “Este seu olhar”, de António Carlos Jobim. Por que razão escolheu este tema em particular?
R. – Foi composto e escrito por ele. É um tema sucinto, uma das qualidades que aprecio na bossa nova. Fazer uma música toda em cima de uma só percepção, de uma única ideia.
P. – “O Corpo Sutil” não é um álbum de bossa nova mas sim sobre a essência da bossa nova, não é?
R. – É por aí, sim. Já tentei várias vezes definir que essência é essa… Tem a ver com a tal batida de violão do João Gilberto. Tem a ver com o deixar o dito por não dito… tem a ver com uma relação da intimidade com uma emoção maior, pública mesmo, uma dialéctica entre dois sentimentos. Há alguém que se senta sozinho a tocar um violão. Mas o violão de João Gilberto sugere legiões de percussionistas, escolas de samba, está tudo implícito.
P. – É conhecido como guitarrista mas, neste álbum, quase só canta. Sentiu que não era capaz de adaptar o seu estilo de guitarra, eléctrico e fragmentado, ao ambiente da bossa nova?
R. – Só toco mesmo nesse estilo! Não sei tocar violão, um acorde sequer. Sou um instrumentista diferente. Ao vivo, já tenho misturado as duas coisas, mas neste disco foi diferente.
P. – A sua voz tem a mesma suavidade e fluidez de Tom Jobim ou de João Gilberto…
R. – Em termos técnicos, pode haver algumas semelhanças com Tom Jobim, sim. Digamos que vou aprendendo a cantar enquanto canto. Já João Gilberto tem uma técnica incrível. É o maior cantor do mundo!
P. – “Anima animale” é um dos temas mais estranhos do disco. No final canta “It’s no fun unless it bleeds” (“não tem piada se não sangrar”).
R. – O refrão fala da confiança animal, como se diz em inglês, “animal confidence”. “Anima animale” quer dizer, “animal soul”. É uma mistura engraçada entre estas duas ideias. Foi um amigo meu italiano que um dia me chamou de “Anima animale”. A letra trata de vários encontros da “anima”, alma, com o animal. Também se pode ler como sexo adulto. Ou a histeria da criança. Gosto imenso de crianças, embora não seja casado nem tenha filhos. Além de que podem ser muito úteis como metáforas.
P. – O que é o “Corpo Sutil”? O corpo astral?
R. – No ideário yogi (embora seja um conceito budista e também hindu), acredita-se na existência de três corpos. O corpo físico, corpo subtil, que é o corpo nervoso, e o corpo ultra-subtil, o espírito. O corpo subtil está no meio, é uma espécie de purgatório.
P. – Interessa-se por esse tipo de assuntos, pelo candomblé, por exemplo?
R. – O candomblé é muito interessante para mim. É uma religião que, embora linda, é muito prática. Com um reportório cultural incrível. E, no seu íntimo, há algo de moderníssimo. Uma grande parte da música brasileira vem do candomblé.