Arquivo da Categoria: Electrónica

Stephan Micus – “To The Evening Child”

pop rock >> quarta-feira, 13.01.1993


Stephan Micus
To The Evening Child
CD ECM, distri. Dargil



Primeiro há o som, o timbre particular de um instrumento. Depois o trabalho sobre esse som, dominá-lo e combiná-lo com outros submetidos a idêntico tratamento. Assim se estrutura a música de Stephan Micus, um bávaro que, ao longo de uma discografia que agora atingiu o número 11, se tem dedicado ao estudo e à prática de uma diversidade de instrumentos, na maioria provenientes de culturas e tradições não ocidentais. Do som para uma gramática intuitiva, ao contrário da tradição ocidental (nomeadamente a romântica), que parte em primeiro lugar da escrita. Em cada nova gravação, o músico seleciona um número restrito de instrumentos, pondo em relevo a mais recente “descoberta”: o “shakuhachi”, o “nay”, vasos de barro, o “suling” ou simplesmente as pedras, como acontece em “The Musico f Stones”.
Alguém já definiu os resultados desta estética como “a melhor música acústica para meditação”. De facto, a serenidade e a simplicidade de processos são uma constante presente em toda a obra de Micus. O zen permeia cada nota, intercalando a vibração e o silêncio.
Em “To the Evening Child” as estrelas são os “steel drums”, neste caso provenientes da Índia Ocidental, que, faixa a faixa, alternam com o “dilruba” (instrumento de arco indiano), o “suling” (flauta de palheta que integra as orquestras gamelão do Bali), o “kortholt” (instrumento de sopro de palheta da Renascença), o “nay” (flauta de palheta do antigo Egipto) e o “sinding” (harpa da África Ocidental), a par das vocalizações encantatórias de Micus, que cada vez mais assumem um papel preponderante. Mantras introspectivas de uma “other world music”, para novos tempos que se avizinham. (8)

Roberto Musci & Giovanni Venosta – “A Noise, A Sound”

pop rock >> quarta-feira, 13.01.1993
FORA DE SÉRIE

ALDEIA GLOBAL


ROBERTO MUSCI & GIOVANNI VENOSTA
A Noise, A Sound
CD Recommended, import. Contraverso



Em música, nem tudo afinal está inventado. Roberto Musci e Giovanni Venosta possuem a faculdade de, a cada novo disco, nos surpreenderem. Com ideias impensáveis e sínteses de elementos recolhidos de toda a parte, como se o universo fosse (e é, de facto) uma fonte inesgotável de sons. “Water Messages on Desert Sand” e “Urban and Tribal Portraits”, os dois trabalhos prévios da dupla (aos quais se poderá juntar o álbum a solo de Musci, “The Loa of Music”), são dois clássicos da música de fusão, no significado mais nobre que o termo pode ter. Musci e Venosta recolhem, cortam, colam, alteram e descontextualizam os sons (todos os sons), manipulando-os de forma a criar o que se poderá classificar de música absoluta – concordância plena da tecnologia com as sonoridades étnicas.
Neste novo álbum, havia a curiosidade de saber se a dupla cederia à tentação de se limitar a reproduzir os mesmos esquemas, que tão bons resultados tinham produzido nas obras atrás citadas. Se é certo que os dois fazem gala em exibir a lista, cada vez mais extensa, das gravações sampladas, a verdade é que tal táctica serve desta vez objectivos diferentes. O próprio conceito de “aldeia musical global” (utilizando uma aproximação ao enunciado de MacLuhan) sofreu desvios e novas enunciações. Onde se poderia esperar uma espécie de “world music” mutante, à imagem dos álbuns prévios, surge em vez disso uma construção mais abstracta, como se os elementos folclóricos utilizados não passassem agora de peças de um novo “puzzle”, ainda mais complexo e apontado a um tipo inteiramente novo de referências. Neste aspecto, “A Noise, A Sound” aproxima-se por vezes da estética de ruído harmonizado dos Biota ou da violência sónica das duas obras capitais (de síntese / mistura / delírio) de Fred Frith, “Gravity” e “Speechless”.
Como tudo o que estes italianos produziram até à data, trata-se de um objecto que reivindica uma sistemática própria, único na forma como idealiza, organiza e reproduz os sons. Desde o primeiro tema, no qual sons de macacos, um jaguar e um clarinete da Amazónia são manipulados pelos “samplers” até soarem a um “blues” dos confins da galáxia. De surpresa em surpresa, avança-se através de um túnel de harmonias bizarras e jogos de contrários, em que nada é o que aparenta ser, jogo de espelhos deformantes, fábrica de realidade fractal, que se auto-reproduz até ao infinito. Actualização plena da mónada primordial que o título refere: um ruído, um som. Música em estado puro. (10)

Jorge Reyes – “Bajo El Sol Jaguar” + Jorge Reyes – “Niérika”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 02.12.1992


Jorge Reyes
Bajo El Sol Jaguar (9)
CD, Exilio, import. Ananana
Niérika (9)
CD, No Rekords, import. Ananana



Em Jorge Reyes, músico mexicano pouco conhecido na Europa, o passado do México pré-hispânico encontra-se com os sinais extremos da modernidade. É possível situara sua obra em territórios próximos dos delimitados por Jon Hassell, O Yuki Conjugate ou Lights In A Fat City – músicas do “quarto mundo”, como se costuma dizer, na qual a electrónica e os elementos étnicos se cruzam em infinitas sínteses. “Bajo El Sol Jaguar”, o álbum mais recente, e “Niérika” (reedição do original de 1989, acrescentado de dois temas de “Ek-Tunkul”), como “Musica Pré-Hispânica” ou “Crónica da Castas” (de parceria com o guitarrista espanhol Suso Saiz), recuperam o ambiente e os mistérios das civilizações maia e asteca, em incursões sombrias em cavernas, pirâmides e vulcões, onde as energias telúricas e celestes se unem e dançam através do eixo humano. É uma música lenta, ondulatória, ritual, no sentido em que convoca e desencadeia movimentos interiores e deslocações da consciência. Ritmos primevos brotam de fontes sonoras como cântaros, troncos de árvore, pedras, fósseis ou do próprio corpo que Jorge Reyes percute e amplifica. Sons de chuva e vento ajudam a delinear paisagens recortadas contra o manto negro da noite. Ocarinas e flautas pré-hispânicas, “didjeridoo”, sintetizadores e sequenciadores ao serviço das energias naturais tecem quadrículas de tempo, relações bizarras entre culturas, transmutações da memória. A luz, quando o dia nasce, cobre de ouro velho as ruínas de templos esquecidos. Nas manchas de um jaguar, oculta-se o último segredo, terrível revelação que assombra um conto de Jorge Luís Borges. Na obra de Jorge Reyes, o sonho (tema sempre recorrente nos seus álbuns) é caminho e porta, meio sinuoso e alucinatório de acesso ao centro de um mundo povoado de fantasmas. “Bajo el Sol Jaguar” e “Nierika” são neste aspecto equivalentes à obra literária de Carlos Castaneda e às suas viagens de peyote – “Viaje al sitio de los violines de flores”, como diz o título de uma canção. As flores do mal, de Baudelaire?