cultura >> domingo, 11.07.1993
IV Encontros Musicais Da Tradição Europeia Partem Para Évora E Coimbra
Os Demónios Que Vieram Do Frio
Os IV Encontros Musicais da Tradição Europeia terminaram em beleza no jardim do Palácio Anjos em Algés. Os Hedningarna corresponderam ao que deles se esperava e fizeram deflagrar a sua música como uma bomba. Lições de bom-gosto e tecnicismo, deram-nas respectivamente os Oskorri e Ivo Papasov. Os House Band – foi pena – limitaram-se a assinar o ponto. Hoje, os Encontros prosseguem em Évora e amanhã em Coimbra.
Havia sempre muita gente no jardim, ao longo dos quatro dias de concertos dos Encontros Musicais da Tradição Europeia, que decorreram em Algés, nos arredores de Lisboa. Gente conhecedora do que ouvia, ao contrário do que se passou nas edições anteriores, onde foi grande a percentagem dos curiosos e dos “perturbadores”.
Quarta-feira foi dia-rei do festival. Abriram os Oskorri, banda lendária do País Basco. Sete músicos em palco, coesão absoluta e reportório criteriosamente escolhido proporcionaram uma actuação sem mácula. Avessos à mensagem panfletária os Oskorri afirmaram a seu modo, pela música, uma cultura e uma identidade próprias.
A banda “euskadi” alternou os ritmos de dança com baladas às quais a voz de Natxo de Felipe – uma das melhores que passaram pelos Encontros, ao lado das de Erik Marchand e Maryika Karafezieva – emprestou inflexões e tonalidades inusitadas. Natxo, além de excelente vocalista, revelou-se igualmente um óptimo percussionista, nos tambores e na pandeireta, alcançando ainda um desempenho positivo no acordeão, num pequeno saltério e na guitarra acústica. Flautas, uma trompa de corno, BOMBARDA, GUITARRAS E UM BAIXO, QUE NUNCA ENCHERAM DE ELECTRICIDADE O SOM, ILUSTRARAM AQUELA QUE É UMA DAS MÚSICAS TRADICIONAIS DA Europa menos conhecidas entre nós.
A seguir: Bum! Os Hedningarna subiram ao palco e foi o fim. Instrumentos amplificados até ao limite (a sanfona e o alaúde pareciam poder rebentar a cada momento), fumos e encenação corporal criaram de imediato uma atmosfera e uma sonoridade que terão chocado os que até à data desconhecem “Kaksi”, o álbum da banda sueca de que se fala.
Anders Stake, Totte Mattsson, Bjorn Tollin e as duas cantoras finlandesas, Sanna Kurki-Suonio e Tellu Paulasto, os cinco vestidos de negro, fizeram jus ao nome que ostentam – os pagãos – na invocação dos demónios do gelo das regiões polares. A música, essa, foi abrasiva. Anders, “o louco”, fabricou os sons saídos da sua imaginação em estranhos instrumentos inventados por si: um híbrido de flauta de Pan com “didjeridu”, uma cítara mutante, um “sarangi” transformado.
As duas meninas fizeram de bruxas e de fadas, no canto “a capella” ou rodeadas pelo apocalipse tecido pelas percussões infernais de Bjorn Tollin, os gritos do alaúde de Toote Mattsson e as monstruosidades tímbricas de Anders Satke.
Num dos temas mais fortes de “Kaksi”, com dedicatória a Jimi Hendrix, Anders colocou na cabeça uma peruca estilo esfregona, fazendo à gaita-de-foles o mesmo que Hendrix fazia à guitarra, massacrando-a, arrancando-lhe guinchos de dor até o fole ficar vazio como um trapo, enquanto Totte Mattsson seguia idêntico processo no alaúde. Uma carnificina. O público, estarrecido, não queria acreditar. A partir de agora o “heavy metal” deixou de ter o exclusivo das descargas de artilharia. Fez-se história nos Encontros.
Mudanças De Velocidade
Quinta-Feira começou com os House Band, não se pode dizer que da melhor maneira. O trio formado por Ged Foley, antigo elemento dos Battlefield Band, Chris Parkinson e John Skelton, pareceu cansado e sem chama, não atingindo o alto nível de álbuns como “Word of Mouth” e “Stonetown”. Disseram “obrigado”, “Benfica”, “Jorge de Brito” e “crise”, insistindo várias vezes num “merry Christmas” sem que se percebesse muito bem qual a intenção.
Vocalizações apagadas, falta de entusiasmo e de noção de espectáculo não mostraram o que, em melhores dias, os House Band são capazes de fazer. Uma actuação monótona que nem o talento de John Skelton nas flautas e na bombarda, ou uma passagem interessante pelos ritmos dos Balcãs, conseguiram salvar. Despediram-se sem glória, com duas danças da África do Sul, onde deram a entender que o que lhes apatecia era ir o mais depressa possível dormir para o hotel. Fica para a próxima.
Enstusiasmo é o que não faltou à “banda de casamentos” do búlgaro Ivo Papasov. O quinteto, formado por tecnicistas ao mais alto grau, com Papasov a cometer verdadeiros prodígios no clarinete, não deu descanso à audiência, enredando-a numa sucessão vertiginosa de compassos que terão soado “contra-natura” a ouvidos (mal) habituados ao conforto do quatro por quatro.
Maryika Karafezieva, trajada a preceito, levou o vibrato da voz aos estremeções de um terramoto, passeando com um à vontade desconcertante entre as constantes trocas de mudança, quase sempre de velocidade, metidas pelos outros músicos.
Do jazz ao “reggae”, com retorno às danças tradicionais, foi um torvelinho que no final deixou a assistência de rastos. Uma palavra final para o som, a cargo da Audição, que esteve impecável em todos os concertos.
Os concertos prosseguem hoje, em Évora, na praça do Giraldo, com os Zaiti e House Band, as mesmas bandas que encerram o ciclo dos Encontros amanhã, na praça velha de Coimbra.