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Vários – Encontros Musicais da Tradição Europeia – “Encontros Com Rede”

pop rock >> quarta-feira >> 29.06.1994


ENCONTROS COM REDE




A edição deste ano, a quinta, dos Encontros Musicais da Tradição Europeia, que pela primeira vez apresenta no programa um nome não originário do continente europeu, neste caso a cantora do Mali, Oumou Sangare, tem, segundo Mário Alves da Etnia, entidade organizadora dos Encontros, a preocupação de realçar “a abertura definitiva a expressões musicais não-europeias, entendendo que a cultura europeia contemporânea não pode mais ignorar a presença e o contributo dessas culturas na sua própria evolução”. Também pela primeira vez os Encontros incluem-se no âmbito mais vasto do “European Forum of Worldwide Music Festivals”, uma rede que abarca 25 festivais anuais importantes de “world music” na Europa.
O programa, como vem sendo hábito desde a primeira edição, é de luxo, apostando em nomes que sem serem muito conhecidos em termos de mercado são porém todos eles de elevada categoria artística. A descentralização continua a ser outra das tónicas dos Concertos em quatro localidades do país – Coimbra, Évora, Guimarães e Oeiras (Algés) – vão ser ponto de encontro, é o termo, de propostas que trazem a melhor música tradicional da Europa, e não só.
Se nos pedissem para fazer apostas, jogaríamos forte nos Radio Tarifa, de Espanha, (ne esperança, bem entendido, de que a sua actuação esteja ao nível do fantástico “Rumbas Argelinas”) nos Calicanto, de Itália, nos Fia da Roca, da Galiza, e em Oumou Sangare, do Mali. Isto em termos de propostas ao vivo, uma vez que nem sempre a música contida nos discos dá uma imagem fiel do que são as prestações dos artistas em concerto. O caso dos italianos e dos galegos é, neste aspecto, flagrante. Os respectivos discos, “Cartas del Navegar Pitoresco” e “Fia na Roca” não são propriamente entusiasmantes mas, segundo rezam as crónicas, os espectáculos ao vivo são de se lhes tirar o chapéu.
Claro que as surpresas podem vir de onde menos se espera. Dos Albion Band, por exemplo. A banda “eterna” de Ashley Hutchings não tem andado em forma ultimamente (para sermos claros, desde os tempos áureos de “Battle of the Field”, “The Prospect before us”, “Rise up Like The Sun” e “Larkrise to candleford”) mas com o recente regresso ao acústico, em “Acousticy”, poderá marcar pontos, Simon Nicol, o velhote dos Fairport Convention, vem integrado na nova formação.
Thierry Robin é uma incógnita. O disco “Gitans” deslumbra. Robin traz consigo uma maneira única de cantar os ciganos do Sul, mas também da Índia e do Leste europeu. Ao vivo poderá ser um acontecimento. Veremos. Os também ciganos, neste caso romenos, Taraf de Haidouks (cujo álbum “Musique des Tziganes de Roumanie” o Pop Rock considerou um dos melhores de 1992 e não do ano passado, como erradamente escrevemos na última edição deste suplemento) têm fama de darem excelentes concertos. São um valor seguro, com festa garantida. Quanto aos portugueses Romanças, têm a grande oportunidade de mostrar que merecem figurar no grupo das melhores bandas nacionais de música de raiz tradicional. É verdade que o seu último álbum, “Azuldesejo” tem boas ideias, mas peca por falta de unidade e direcção. Mas também é verdade que a banda de Sintra tem capacidade para surpreender e, quando menos se espera, voar alto.
O melhor é irmos já todos a voar para os Encontros. Lá nos encontraremos. Quem sabe, também connosco mesmos.
1 A 12 DE JULHO, 5ºS ENCONTROS MUSICAIS DA TRADIÇÃO EUROPEIA EM COIMBRA, ÉVORA, GUIMARÃES E ALGÉS.

Vários – “5ºs Encontros Musicais da Tradição Europeia – Europa Mais Para Sul” (Calicanto, de Itália, Thierry Robin, Taraf de Haidouks, Rádio Tarifa, Albion Band, Fia na Roca, Romanças, Oumou Sangare)

cultura >> terça-feira >> 21.06.1994
Folk


Europa Mais Para Sul


UM PROGRAMA excepcional aguarda os apreciadores de Folk nos “5ºs Encontros Musicais da Tradição Europeia”. Pelos palcos de Coimbra, Évora, Guimarães e Oeiras (Algés) vão passar, de 1 a 12 de Julho próximos, os Calicanto, de Itália, Thierry Robin, de França, Taraf de Haidouks, da Roménia, Rádio Tarifa, de Espanha, Albion Band, de Inglaterra, Fia na Roca, da Galiza, Romanças, de Portugal e, numa extensão africana dos Encontros, Oumou Sangare, do Mali.
Os Calicanto trazem o seu teatro musical inspirado no carnaval veneziano, uma proposta bastante mais interessante de seguir ao vivo do que no álbum da banda, já distribuído em Portugal, “Carta del Navegar Pitoresco”. Thierry Robin é conhecido entre nós pelo excelente álbum “Gitans”, editado com o selo Silex, síntese exótica das tradições ciganas, da Índia e dos Balcãs ao Mediterrâneo. Ciganos são também os Taraf de Haidouks cujo álbum “Musique Tzigane de Roumanie” o suplemento “Poprock” do “Público” considerou entre os melhores de 1993. O Sul está ainda presente na música dos espanhóis Radio Tarifa. O seu álbum “Rumba Argelina” é para nós, e até à data, o melhor álbum de música tradicional deste ano, uma bizarria que, ultrapassado o embate dos primeiros temas, pouco significativos da música que se lhes segue, explode em tons escuros e sensuais num enquadramento do flamenco, da rumba e da música árabe no contexto mais vasto e mais profundo da música antiga.
Míticos são os Albion Band, projecto e escola, já com um quarto de século de existência, de Ashley Hutchings, por muitos considerado o “pai da folk inglesa” e responsável pela electrificação das típicas “morris dances” mas que no trabalho mais recente do grupo, “Acousticity”, inflectiu na pureza do acústico. Quanto aos Fia Na Roca poderão constituir a surpresa maior destes Encontros. Desde o aparecimento dos Milladoiro que não surgia na Galiza um grupo com a categoria deste trio (ao vivo aumentado para quinteto) formado pelo violinista dos Xorima, Xaquim Farina, gaiteiro, saxofonista, tocador de “tin whistle” e de “sintetizador de vento”. Xabier Bueno, e, nas cordas, incluindo a harpa céltica, Enrique Comesana.
Representantes portugueses neste Encontros, os Romanças vão apresentar a música do seu mais recente álbum, “Azuldesejo”, enquanto a cantora do Mali, Oumou Sangare – excelente cantora, diga-se, o seu último álbum integrou a lista dos melhores do ano passado na revista “Folk Roots” -, vem espetar uma lança africana na Europa. Para a semana mais pormenores sobre os Encontros.

Vários (Grande Bande des Cornemuses, Rosa Zaragoza, Altan) – “Segundos Encontros Musicais Da Tradição Europeia Animam Terras Portuguesas – Danças E Cânticos Do Fundo Dos Tempos” (festivais)

Secção Cultura Terça-Feira, 09.07.1991


Segundos Encontros Musicais Da Tradição Europeia Animam Terras Portuguesas
Danças E Cânticos Do Fundo Dos Tempos


Todos se encontram com todos, nestes “Encontros” europeus que começam a ter tradição. Ou pelo menos, todos os que não desprezam o passado para melhor viver o presente e projectar o futuro. Em quatro localidades do país, a alegria tem sido a palavra de ordem.



Em Guimarães, Famalicão, Oeiras e Évora decorrem, desde a passada quarta-feira, os Segundos Encontros Musicais da Tradição Europeia, até agora um sucesso a todos os níveis. Música tradicional do “velho” continente. A festa de mãos dadas com a cultura, numa louvável iniciativa que, à semelhança do ano passado, voltou a apostar, e bem, na descentralização. No meio da ruína de capelinhas decrépitas, a corrupção e as grandes negociatas, louve-se o despontar de novas alternativas que, como esta, dêem a conhecer outras maneiras de ver e sentir o mundo em que vivemos.
Os artistas vieram de regiões afastadas pela geografia mas próximas na identidade profunda e na génese cultural. Chegaram até nós vindos da Occitânia e Lyon, França, da Catalunha, Espanha, da Inglaterra e da Irlanda. Os portugueses cá estão, para mostrar tesouros e maravilhas, em desafio amigável com o resto da Europa.
Hoje em Famalicão, por exemplo, tocam os ingleses Whippersnapper e os lioneses “La Grande Bande des Cornemuses”. Amanhã será a vez de Guimarães receber os Perlinpinpin Folc. E assim por diante, numa ronda fraterna por uma Lusitânia de súbito desperta para o seu amanhecer.
No passado sábado, a noite, aprazível, convidava à fruição. Dos prazeres do corpo e do espírito. Aconteceu assim, no parque, muito a propósito chamado “dos Anjos”, em Algés, porque os dez gaiteiros de Lyon não cabiam no auditório e a noite era propícia ao ritual.
Noite inesquecível para quantos trocaram o conforto das pantufas e a realidade virtual do pequeno écran pela celebração colectiva das festas da Lua e o convívio ameno com os sons, os outros e a Natureza, ali, como que por magia, concentrada num microcosmos quadrado e empedrado, delimitado pela luz dos holofotes e pela expectativa de crianças e graúdos.

Rituais Dionisíacos

De súbito, irrompendo por entre as conversas e a música de José Afonso que saía dos altifalantes, a surpresa e o sobressalto, provocados pela entrada no terreiro, de uma personagem mascarada, de chifres ameaçadores, percutindo um enorme tambor pendurado à maneira um falo, a ditar o ritmo do corpo. Depois, um a um, os dez gaiteiros da “Grande Bande des Cornemuses”, dirigidos por Jean Blanchard e coreografados por Laurent Figuière, foram surgindo de entre o arvoredo ou das escadarias do palácio, num crescendo sonoro provocado pelas gaitas-de-foles que aos poucos se iam juntando em uníssona congregação ao centro do recinto. Os músicos vestidos de branco, flores, ramagens e frutos na cabeça e à volta da cintura, evocavam, de forma deslumbrante, as cores e os sabores dos ciclos naturais. Em louvor a Pan, o deus dos rebanhos e dos bosques.
Diante dos muitos olhos e ouvidos siderados com o inusitado da apresentação, foram recriadas várias cerimónias ancestrais, com os músicos em constante movimento, na teatralização de mitos sobre a vida e a morte, ao mesmo tempo que as gaitas-de-foles enchiam o ar de cadências hipnóticas. A assistência susteve a respiração, quando dois dos gaiteiros retiraram a máscara e cortaram a longa cabeleira ao chifrudo, de maneira a simbolizar a vitória da energia espiritual sobre as pulsões do instinto. Ou quando Jean Blanchard incarnou o sacrificado, “morto” e ressuscitado num longo solo da gaita-de-foles. Completo o ciclo, os músicos terminaram a sua actuação como tinham começado, abandonando progressivamente o recinto até o som das gaitas se extinguir finalmente num recanto verde atrás da bancada.

Calores Do Mediterrâneo

No dia seguinte o programa prometia. Rosa Zaragoza actuou na primeira parte, enchendo a sala com uma voz e presença corporal avassaladoras. Calor e garra, nas entoações vocais, nos requebros do tronco, na pose extrovertida. Os espanhóis chamam “salero” a este fogo. Acompanhada por quatro músicos (um no bouzouki, outro na guitarra e violino, um percussionista e uma rapariga de decote mais que generoso, nos apoios vocais), por vezes hesitantes e de modo algum à sua altura, Rosa interpretou temas dos seus três álbuns, alternando o repertório sefardita em que é especialista, com tradicionais turcos ou da Catalunha, mostrando à saciedade porque é considerada uma das maiores vozes actuais da música mediterrânica.
Do álbum “Cançõns de noces dels jueus catalans, “Sir-Hasir la-hatan” ou “Dia de shabat”, evocativo do incêndio de Salónica, constituíram momentos altos de uma actuação que cedo a todos surpreendeu pela positiva. A parte final foi preenchida por temas do mais recente “Les nenes bonés van al cel, les dolents atot arreu”, o tal das meninas más que, em vez do céu, vão para “todo o lado”… Destaque para “Glosses contra la celebració del V centenari”, dedicada aos índios americanos e “Baga biga higa”, com letra retirada da tradição oral basca, em que vestiu a pele de uma feiticeira a lançar o sortilégio. Pelo sim pelo não, avisou os presentes, não fosse alguém transformar-se, ali mesmo, num insecto.
Regressou ao palco para dois “encores”: “Ai, quina alegria…” onde se congratulou por não se Madonna nem ter uma m oradia em Miami Beach e, a fechar, uma canção de embalar, cantada em solo absoluto.

Ritmos Endiabrados

Com a entrada em cena dos irlandeses Altan, tudo despareceu para dar lugar à vertigem da dança. Insuperáveis executantes nos respectivos instrumentos, com relevo para os dois violinistas, Paul O’Shaughnessy e Mairead Ni Mhaonaigh, uma loura angelical, toda de branco, e para o flautista Frankie Kennedy. Como quase sempre acontece e é típico dos irlandeses, sobretudo quando bem bebidos, o humornão podia faltar. Nunca perdendo o ar circunspecto, Frankie, flautista e um dos contadores de histórias de serviço, provocou amiúde a hilariedade, com constantes apartes e referências à boa cerveja portuguesa ou ao nome dos alfinetes que confeccionaram os trajes (vulgaríssimos) de cena.
Numa prestação que incidiu sobretudo nos “reels” e “jigs” instrumentais, as baladas interpretadas por Mairead (por ora ainda distante da excelência de grandes damas como Dolores Keane, Triona O’Dohmnaill ou Catherine Ann-MacPhee) criaram, por contraste, momentos de intimismo e decompressão que logo davam lugar a mais uma sequência de ritmos endiabrados. O homem do bouzouki, partiu uma das cordas do instrumento, no entusiasmo da refrega. Mairead sorria de olhos brilhantes, incrédula comm a receptividade e a crescente loucura do público, e ligava o “turbo” do violino, acelerando ainda mais a desafiar os outros que, por sua vez, a ultrapassavam.
Alguns jovens não resistiram, saltando das cadeiras para se entregarem, sem preconceitos, à dança, perante o olhar complacente dos mais velhos. A festa, enfim. Total e libertadora, fazendo esquecer esse outro ritmo, por vezes monótono e enfadonho, do dia a dia.
À saída houve quem reparasse no som solitário de uma gaita-de-foles, gemendo a um canto afastado do bar. Um dos “sonneurs de cornemuse”, muito jovem, evocava, de olhos cerrados, em profundo transe alcoólico, a beleza indizível de uma música que toca onde poucos ousam tocar. Houve quem se risse. Houve quem calasse, comovido, e saísse para a noite cálida, a sonhar.