(público >> cultura >> portugueses >> concertos)
quarta-feira, 22 Outubro 2003
Cristina Branco canta Camões e Slauerhoff no S. Luiz
“De Camões a Slauerhoff”. Da poesia portuguesa à holandesa. Do fado às músicas do mundo iluminado pela voz de Cristina Branco. É o programa a apresentar esta noite no Teatro S. Luiz, em Lisboa, pela cantora que recentemente lançou o álbum “Sensus”, inspirado na poesia erótica de diversos autores, incluindo Camões.
“De Camões a Slauerhoff” socorre-se das palavras, além das dos dois poetas citados (o holandês, Jan Jacob Slauerhoff, serviu mesmo de mote a outro álbum da cantora, “Cristina Branco canta Slauerhoff”, editado em 2000), de David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill, José Régio, Pedro Homem de Mello e Amália Rodrigues, com música composta, na maior parte dos temas, por Custódio Castelo, como um tema de homenagem a Carlos Paredes. Castelo assina igualmente os arranjos e é o guitarrista (guitarra portuguesa) do grupo de acompanhamento, do qual também fazem parte Alexandre Silva (guitarra), Miguel Carvalhinho (guitarra clássica) e Fernando Maia (baixo).
Cristina Branco iniciou a carreira em 1997, na Holanda, onde gravou e editou os álbuns “Live in Holland”, “Murmúrios” e “Post-Scriptum” (estes dois últimos premiados pela revista “Le Monde de la Musique”) e “Cristina Branco Canta Slauerhoff” (este posteriormente reeditado pela Universal, com o título “O Descobridor – Cristina Branco Canta Slauerhoff”, e incluindo três inéditos). “Corpo Iluminado”, de 2001, primeiro álbum gravado em Portugal, para a Universal, é o álbum que em definitivo lançou a cantora no nosso país, onde foi disco de platina. Se o fado é a música em que Cristina Branco mergulha as suas raízes, a verdade é que a emancipação tem sido progressiva, através da assimilação de outras linguagens musicais como a música brasileira, a música tradicional e mesmo ocasionais inflexões jazzísticas, ecletismo bem patente, de resto, no novo disco, “Sensus”.
(público >> y >> portugueses >> artigo de opinião)
23 Maio 2003
ser fadista é entregar-se à vida
São duas vozes capitais do novo fado. No mais recente álbum de Mafalda Arnauth, Encantamento, escutamos uma voz mais serena, alada e “cantabile” do que nos discos anteriores. Com Sensus, Cristina Branco avança mais um passo para fora do fado tradicional. Disco onde a poesia e a voz rivalizam em erotismo, tem a ousadia das coisas belas.
Depois de “Mafalda Arnauth”, produzido por João Gil, e “Esta Voz que me Atravessa”, produzido por Amélia Muge, “Encantamento” tem auto-produção da fadista. O resultado é o seu melhor álbum de sempre. Pelos temas e pela voz. A fadista tomou quase tudo em mãos. “não quis deixar nada em mãos alheias, decido assumir toda a responsabilidade. A parceria maior que tenho neste disco é o Luís Oliveira, que se encarregou da direção musical e dos arranjos. Neste disco as letras voltam a ser minhas… E a responsabilidade de algo que esteja menos bem é também minha. Digamos que a minha personalidade se tornou mais vincada. O disco resulta de um crescimento e de uma auto-descoberta tão grande que não seria justo pôr outras pessoas a assumirem a responsabilidade pelas minhas decisões”.
Responsabilidade que Arnauth assume como fruto de uma segurança que antes não se manifestara: “uma segurança que adveio do prazer que me deu. Sou uma mistura de racional e emocional, e o racional consegue fazer uma avaliação do trabalho. O emocional voltou a ter espaço para se expressar, coisa que no segundo disco não aconteceu, por cansaço e por estar a trabalhar com pessoas com muito mais experiência do que eu, o que gerou em mim um certo respeito”.
Algo mudou entretanto, como resultado desse processo de auto-descoberta. Mafalda centrou as atenções no corpo, forçou-o a disciplinar-se. Três fatores contribuíram para essa mudança: “O primeiro fator vital foi a saúde. O templo onde tudo isto acontece, o meu corpo. Precisava de uma paragem no final de 2001, todo o trabalho de estrada tinha sido desgastante. O segundo fator foi ter deixado de fumar. De repente pude reencontrar a minha voz e redescobrir novas possibilidades em termos de interpretação. Quando tomamos conta do nosso corpo ficamos com muito mais força para tudo o que vem a seguir. Um terceiro fator foi ter voltado a compor”.
o fado é sereno. Desprende-se da audição de “Encantamento” uma sensação de serenidade. Sem rodeios: dos três álbuns já gravados pela fadista, “Encantamento” é aquele em que Mafalda canta melhor. Algo que nasce “da respiração, da tal história de ter acabado com o tabaco”. A fadista também teve aulas de canto, “de colocação de voz”, que a ajudaram, sobretudo a tranquilizar-se. “Não me formataram a voz mas deram-me saúde ao instrumento. Sinto que está muito bem. O sopro, a respiração é tão importante a falar como a cantar, o facto de eu conseguir fazer essa gestão do ar, põe naturalmente tudo no sítio, deixando outra margem para a inspiração. Antes era uma das minhas dificuldades. Só a insegurança, a ansiedade, só isso já aperta o ar. Quando não temos que nos preocupar com isso, a atenção passa imediatamente para outro lado”.
O trabalho de estúdio teve a sua quota-parte nestes resultados. Mafalda teve o estúdio totalmente à sua disposição. “O Luís Oliveira e o José António Pedro, que faz o som do disco, formam uma sociedade e têm os dois um estúdio que, além de ser muito caseiro, é topo de gama ao nível técnico. Os músicos tiveram dois meses para gravar, mais um para as misturas”. Sobrou tempo. Não houve pressões. “A editora teve alguma dificuldade em perceber como é que está tanto tempo a fazer um disco. Para a maior parte das pessoas é uma loucura, ter um estúdio só para nós”.
Preocupações que não são vulgares nos fadistas vulgares mas que Mafalda Arnauth considera essenciais. Funcionou uma filosofia de vida que passa pela aprendizagem constante. “Enquanto estudei Veterinária tive uma cadeira, de Toxicologia, que me abriu os olhos para o ser humano hoje e como era há 30 anos atrás. Em 30 anos, os nossos corpos deixaram de ser as forças da natureza que eram. Não digo que toda a gente seja assim, mas eu pago mais caro do que as outras pessoas. Apesar de ter um corpo forte, com personalidade, sinto que sou frágil. O ritmo da vida é hoje superior, o stress que apanhamos, a comida, tudo nos fragiliza. Tive que encontrar uma disciplina. É claro que há outras pessoas que continuam a ser forças da Natureza, por mais que façam as maiores desgraças”.
Há quem diga que quanto maiores são os excessos melhor se canta o fado. Para Mafalda, não. “Até há quem diga que eu, neste momento, tenho voz a mais…”, diz a sorrir. Como é isso? “Voz a mais, por se sentir menos esforço a cantar, sem aquela necessidade de sofrimento que ainda está um bocadinho inerente ao canto”. Em “encantamento” sente-se o prazer. Incluindo “o prazer que se pode tirar das próprias dificuldades”. “porque o percurso deste disco é extremamente doloroso, fruto do tal crescimento”, diz a fadista. “Tentei fazer algo feliz de um processo que foi doloroso”. Ser fadista é, então, uma “filosofia de vida”, uma “entrega à vida”. Filosofia que pratica, “embora não os mesmos núcleos nem nos mesmos ambientes” que fizeram o fado no passado. “Ser fadista é isso, é a pessoa que vive, que absorve uma quantidade de experiências e que as transporta para o canto. O que eu absorvo é que é diferente do que absorve a maior parte das pessoas. Continuo a sentir um canto melancólico. Hoje já consigo ver nas fadistas da minha geração as suas diferenças”. E vê-las assim: Cristina Branco, “cada vez mais uma fadista que se alimenta da poesia”, Mariza, a “fadista de faísca, de garra”, Mísia, “uma fadista cosmopolita”. Cada uma delas “a absorver várias áreas do mundo”.
matar saudades. Mafalda Arnauth continua a frequentar as casas de fado. Para “matar saudades”. Dá razão a Argentina Santos que ainda há pouco tempo dizia ao Público que é impossível aos novos fazer carreira sem passar pelas casas de fado. “Passei por lá e continuo a sentir a necessidade de ir, mas não no mesmo formato. Se já não vou com a mesma frequência é porque foi lá que aprendi, nem tudo coisas boas. Mas a minha natureza não se enquadra numa casa fechada. Argentina Santos tem o seu trono, o seu lugar de culto. Se um dia tiver a minha casa de fados, naturalmente que também terei que estar lá. Mas hoje prefiro ir cantar a uma casa de fado e sentir gozo do que estar lá uma noite inteira. Até porque nós, da nova geração, tornámo-nos umas “pequenas estrelas”. Numa casa de fado onde está alguém a cantar diariamente, com uma entrega total, não tenho coragem de chegar lá, e por ter algum estatuto, chegar, cantar cinco ou seis fados e ir para casa. Estaria a obrigar alguém, provavelmente muito mais cansado do que eu, a ter que cantar outra vez. É um respeito que continuo a ter”.
o problema dos títulos. “Encantamento” termina com um “Fado Arnauth”. A própria não receia ser acusada de pretensiosismo e explica a razão de ser do título: “esse título existe porque estive dois ou três meses a tentar dar títulos às músicas o que, com a SPA [Sociedade Portuguesa de Autores], é impossível. Têm sempre registado um título igual! Por exemplo, tinha ‘Na palma da minha mão’, mas não dava, tentei cinco ou seis títulos, acabou por ter que ser ‘Da palma da minha mão’. O ‘Fado Arnauth’ foi “Feitiço’, o ‘Sem limite’ não pôde ser ‘Sem limites’, ‘Bendito fado’ teve que ficar ‘Bendito fado, bendita gente’, ‘É sempre cedo’ chamava-se ‘Acorda coração’… Impressionante. O “Fado Arnauth” foi um relâmpago, nascido da frustração.”
E “Encantamento”, foi também assim? “Esse foi um encantamento total. Um cantamento, encantamento que vem do canto. Um encantamento com a vida que passa. Porque é que, de repente, me sinto uma pessoa saudável? Há quem diga que o desapego à vida, um instinto anti-vida, é necessário. Eu penso precisamente o contrário, acho que este encantamento vem de cantar à vida, da superação do dia-a-dia. A minha vida será tanto mais rica quanto mais gostar até das coisas menos boas. Embora hoje este amor pela vida esteja algo ‘démodé’… Já esteve mais na moda ser-se feliz.”
Também a síndrome ‘Nova Amália’ esteve mais na moda. Hoje “as novas fadistas que estão a aparecer têm o cuidado de ter particularidades próprias, uma personalidade marcada”. Mafalda Arnauth até exagera um pouco, a ponto de continuar sem gravar um único fado de Amália. Lá virá o dia. “Hei-de fazer isso! Mas quando o fizer, não serão só fados dela. Será como uma prenda que darei a mim própria”.
“Encantamento” é composto por 14 temas, com música de Luís Oliveira e poemas de Mafalda Arnauth, à exceção de “As Fontes”, de Sophia de Mello Breyner, “Cavalo à Solta”, com letra de Fernando Tordo, e “No teu poema”, com versos de José Luís Tinoco. Acompanham a fadista José Elmiro Nunes (guitarra portuguesa), Luís Oliveira (guitarra clássica) e João Penedo (contrabaixo). Os convidados são João Ferreira Rosa, em “Da palma da minha mão”, e a cantora de jazz Mónica Ferraz, em “Ó voz da minha alma”.
eros é branco
“Sensus” é um disco de poesia erótica de autores luso-brasileiros como Vinicius de Moraes, Chico Buarque, David Mourão-Ferreira, Pedro-Homem de Melo, Camões, Vasco Graça Moura, Maria Teresa Horta, Pedro Támen e Eugénio de Andrade. Com William Shakespeare a deitar também a sua pitada de sal a uma música em que Custódio Castelo se encarrega de dar sentido aos sons.
Tudo partiu de um poema de David Mourão-Ferreira que deu o nome ao álbum anterior de Cristina Branco, “Corpo Iluminado”. Mourão-Ferreira volta a estar presente, desta feita, com “Assim que te despes”. Assim Cristina Branco se despe de preconceitos. Fado dos sentidos. Fado-carne. Fado picante? Cristina garante que se sente, neste novo registo, “como peixe na água”.
A capa calhou ficar talvez um pouco sugestiva demais, provocando todo o tipo de associações. A cantora não tem culpa, ri-se com gosto e salta imediatamente para o cerne da questão: “Toda a gente pensa logo, poesia erótica e tal…”. É este “tal” que importa esclarecer. Tenham clama, é tudo científico: “inicialmente pretendi que fosse um documento sobre a sociedade portuguesa desde a época medieval até agora. Como é que os portugueses viam a sexualidade. Acabou por não ser, porque entretanto tropeçámos no Shakespeare, no Vinicius e no Chico…”. Apesar da vertente didáctica, Cristina assume que “Sensus” tem “uma linguagem mais ousada, embora sem cair no óbvio”, do que os álbuns anteriores.
Mas “Sensus” fala de sexualidade ou de erotismo? “Tem as duas coisas. Sem utilizar as palavras concretas”, como faz questão em frisar. “Pastoras da estrela”, um dos belíssimos temas de “Sensus”, composto por Miguel Carvalhinho, soa a música antiga, situando o fado nas noites trovadorescas de antanho. É pecado, clamariam as vozes censoras. É pecado sentir e tirar prazer da música. “Sensus” destila esse pecado e quem nos absolverá desta luxúria? “A abordagem musical do Custódio tem algo que bebe em tempos muito remotos”. A voz de Cristina faz o resto, lançando-nos no caminho da perdição.
Sem misericórdia pelos fracos, Cristina garante que “ainda pretende ir mais longe”. Na revolução do fado, bem entendido. E recorda que, nos primórdios, o “fado era cantado por prostitutas”, o que lhe conferia um carácter, digamos, não de pecado mortal, mas venial.
Quanto a Cristina Banco, o seu canto afasta-se cada vez mais das formas tradicionais do fado. “Porque não contar apenas uma história?”. As histórias de “Sensus” incluem um “Soneto de separação”, de Vinicius de Moraes, “O meu amor”, de Chico Buarque, “Ninfas”, de Camões, “Soneto destruído”, de Graça Moura, “As mãos e os frutos”, de Eugénio de Andrade e “O sabor de saber”, de Rui Branco. Histórias, afinal, de amor que uns dizem que vem antes e outros que vem depois. Cristina Branco destaca uma, “O meu amor”, uma espécie de “impressão digital”. Começa assim: “O meu amor/Tem um jeito manso que é só seu/E que me deixa louca/Quando me beija a boca/A minha pele fica toda arrepiada/E me beija com calma e fundo/Até minha alma se sentir beijada”.
Tocam em “Sensus” Custódio Castelo (guitarra clássica, baixo), Alexandre Silva (guitarra clássica), Fernando Maia (baixo), Miguel Carvalhinho (guitarra clássica), André Dequech (piano) e Ben Wolf (contrabaixo).
CRISTINA BRANCO Não é habitual uma cantora de fado começar a carreira no estrangeiro antes de ver reconhecido o seu trabalho em Portugal. Mas foi isso que aconteceu com Cristina Branco, 27 anos, currículo feito na Holanda, que acaba de assinar contrato com a Universal o que significa que os seus discos terão pela primeira vez edição e distribuição nacional.
Integra uma geração de novas fadistas à qual também pertencem Mafalda Arnauth, Sofia Varela, Joana Amendoeira, Marisa e Cátia Guerreiro. Ela prefere chamar-se “cantora de fado”, em vez de “fadista”, distinção que, no seu caso, faz sentido. Embora tenha crescido a ouvir fado (o primeiro de todos foi “Ai Mouraria”) assimilou igualmente a música de José Afonso ou de Sérgio Godinho. E Amália, claro, que deixou marcas, quando pela primeira vez ouviu da diva o álbum “Rara e Inédita”.
Emigrante, encontrou na Holanda a sua casa e foi neste país que gravou o disco de estreia, “Cristina Branco Live in Holland” (1997), aos quais se seguiram “Murmúrios”, com fados de Amália, textos de David Mourão-Ferreira e canções de Sérgio Godinho e Zeca Afonso, “Postscriptum”, a partir de um poema de Maria Teresa Horta, e “Cristina Branco canta Slauerhoff”, sobre versos do poeta holandês J. J. Slauerhoff.
Em Cristina Branco o fado é música do mundo, em que cada pormenor, do gesto à formulação das emoções, do vestuário à estrutura cénica e musical dos espetáculos ao vivo, segue um roteiro onde a sofisticação e a elegância se aliam à expressividade. Uma “cantora de fado” chegada, na atitude, à mundivisão dos Madredeus, cuja voz encontrou na guitarra transcendente de Custódio Castelo a companhia ideal.