21.01.2005
As Viagens de Cristina Branco
Cristina Branco
Ulisses
SACD ed. e distri. Universal
8/10
Pronto, ela decidiu, está decidido. Para Cristina Branco o fado já faz parte do passado. Ela já tinha, aliás, avisado antes. Que não era uma fadista, mas uma cantora. “Tout court”. “Ulisses” sela a transição, já encetada no anterior “Sensus”, do fado para a canção popular urbana. Não vale a pena sequer congeminar-se, ao nível do substrato emocional, esta é ainda uma música marcada pelo fado. Não é. A emoção que atravessa “Ulisses”, um álbum de viagens, não é exclusiva do fado mas a emoção que desde o início de uma carreira milimetricamente talhada, Cristina e os eu companheiro Custódio Castelo foram aos poucos e metodicamente abrindo e burilando. “Ulisses” confirma a excelência de uma voz e um ecletismo de estilo que já se adivinhavam. Num panorama de vozes femininas que já albergava nomes como o de Amélia Muge, Filipa Pais e Né Ladeiras veio agora juntar-se o de Cristina Branco, com uma música cujas raízes mergulham na tradição, seja esta tradição o da música folclórica, de cantautores como José Afonso, Vitorino, Fausto e Joni Mitchell, ou da veia modernizadora das composições originais assinadas por Castelo. Em qualquer dos casos a versatilidade e plasticidade vocal de Cristina Branco são notáveis, a par da riqueza do timbre, acentuada ainda mais nesta edição em super áudio CD.
Depois de ensaiar de início com o sotaque brasileiro e com a língua castelhana, a cantora atinge um “Redondo vocábulo” o primeiro pico de “Ulisses”, naquela que será uma das melhores versões de sempre deste tema de José Afonso. Logo a seguir, a operação de risco que é pegar numa canção de Joni Mitchell, revela-se totalmente conseguida. Cada canção da compositora canadiana é, por si só, uma viagem e “A Case of You”, do álbum “Blue”, não é excepção. Cristina Branco entra de coração aberto no coração deste novo universo. “Navio Triste”, de Vitorino, e “Porque me olhas assim”, de Fausto são outras interpretações sem falhas e “Choro (ai barco que me levasse”) exala o discreto odor da nostalgia das gerações mais antigas da música popular portuguesa. Custódio Castelo assegura até ao final que “Ulisses” continue a viajar sobre as nuvens, seja sobre os versos de Paul Éluard (com a língua francesa a exigir uma abordagem mais física e rasgada que Cristina por enquanto não lhe consegue arrancar), de David Mourão-Ferreira, em “E por vezes”, uma das mais sentidas vocalizações de “Ulisses”, ou num “Cristal” em registo “neo folk” (Pentangle à portuguesa?) onde, uma vez mais, se revela fundamental o piano de Ricardo Dias. Sobram “Gaivota”, único momento de fado num álbum que perscruta mais do que as vielas e becos da tradição, e “Fundos”, a inspirar algumas dúvidas quanto ao uso de uma batida “drum ‘n’ bass”. Tal não seria necessário para assegurar a modernidade de “Ulisses”.