16.03.2001
Mafalda Arnauth
Foi Deus Que As Quis
Mafalda Arnauth não está só com a responsabilidade de garantir uma sucessão para o espaço deixado vago por Amália Rodrigues. Se ela é, para já, o rosto mais visível de uma nova vaga de fadistas que cresceu a ouvir cantar a diva – em parte por já ir no segundo álbum gravado para uma multinacional; em parte por ser dona de uma voz e de uma presença notáveis -, outras cantoras se perfilam no horizonte, prontas para dar conta de uma nova era dourada do fado, contrariando quem apregoava ser esta música um anacronismo que apenas se mantinha vivo por obra e graça da existência da autora de “Foi Deus”.
Com o desaparecimento físico desta pouco mais restava senão fazer o enterro. Enganaram-se. O fado, na sua expressão mais profunda, é a manifestação musical da alma portuguesa, inseparável da saudade. Parece um lugar-comum, mas é verdade. Saudade e modernidade não são incompatíveis pela simples razão de que a segunda está presa no tempo enquanto a primeira está para além dele. Mafalda Arnauth, como Cristina Branco ou Ana Sofia Varela, são simultaneamente modernas e tradicionais, independentemente da idade, da voz e da personalidade de cada uma.
Esta simultaneidade do tempo e da eternidade encontra-se no íntimo de cada uma e elas parecem ter, senão o acesso ao fogo central, pelo menos, e para já, os caminhos que a ele conduzem.
Pode mimar-se os gestos e as expressões dos grandes fadistas, moldar-se a voz à voz dos mestres nos seus mais ínfimos detalhes, decalcar as vestes, o negro, os xailes e a ordem de “silêncio que se vai cantar o fado”. Mas não se pode fazer nascer o fado das aparências. Por melhores que sejam as vozes e a técnica de canto. É esta a grande “descoberta” das novas vozes do fado. Que o fado não se aprende, mas se descobre no oculto interior, pronto a ser libertado.
Amália morreu. É impossível imitar Amália. Mas é possível, e desejável, descobrir tão fundo na alma quanto ela descobriu.
Quando ouvimos pela primeira vez Mafalda Arnauth cantar “foi Deus”, numa já longínqua noite de “fados para multidões”, baixámos os olhos a pensar em Amália. Não porque este fado tivesse sido imortalizado antes por ela, não porque a voz fosse parecida, mas porque se sentia em Mafalda, avassaladora, a mesma força interior e a mesma entrega. Ser como Amália é ser-se como se é. Sem barreiras nem calculismos de “como se deve proceder para fazer carreira”. Só a sinceridade e a tal entrega permitem, aliás, seguir, mais do que uma carreira, um caminho.
Cristina Branco é outro caso. Ao contrário de Mafalda Arnauth, cuja música tende a expandir-se para fora dos limites do nosso país, Cristina Branco há anos que canta na Holanda, onde gravou uma série de álbuns com escassa divulgação em Portugal, como “murmúrios” e “Post-scriptum”, onde canta David Mourão-Ferreira, Miguel Torga e Maria Teresa Horta.
Em Cristina Branco prima a sofisticação e uma visão mais universalista do fado, próxima da “world music” e da música popular portuguesa (em “Murmúrios” canta José Afonso e Sérgio Godinho). A seu lado tem tido um guitarrista genial, Custódio Castelo, garante de uma unidade estética rara. É ainda Amália quem se revela como determinante na escolha do fado como forma de vida, “quase uma impressão digital”, como confessou ao público.
Numa segunda linha de projecção mediática encontra-se Ana Sofia Varela, cuja participação em “A Guitarra e outras Mulheres”, de António Chainho, é brilhante. Joana Amendoeira e Cátia Guerreiro, ainda sem discos gravados, são outras novas fadistas com quem o fado pode contar. Marisa, mais inclinada a fazer acompanhar a música de uma imagem visual, marcou presença num recente espectáculo televisivo, com a chancela de Filipe LaFéria, dedicado a Amália. Para além das vozes portentosas, têm outra coisa em comum: são todas muito bonitas.