Norma Waterson, Martin & Eliza Carthy – “Waterson: Carthy” + A. L. Lloyd – “Classic A. L. Lloyd” + Vários – “Hidden English”

Pop Rock

15 de Março de 1995
álbuns world

PARA GLÓRIA DA VELHA ALBION

NORMA WATERSON, MARTIN & ELIZA CARTHY
Waterson: Carthy (10)
Topic
A.L. LLOYD
Classic A. L. Lloyd (10)
Fellside
VÁRIOS
Hidden English (10)
Topic
Todos distri. MC-Mundo da Canção


wc


al

Deixemos por uma vez a Irlanda em paz e saltemos para o lado do seu “inimigo” ancestral, a Inglaterra. Os nossos irmãos da ilha hão-de perdoar, mas, se hoje toda a gente fala dos grupos e da música irlandesa, tal fama deve-se aos ingleses, que, ainda nos anos 60, abriram as portas do “folk revival”, através de grupos como os Fairport Convention e Steeleye Span. Claro que a folk – tanto a irlandesa como a inglesa – não começou aí, confundindo-se as suas origens com a dos povos que há milénios colonizaram as ilhas, como também é verdade que, na Irlanda, tanto os Chieftains como os Dubliners já estavam em acção, embora apenas para consumo interno. Foi preciso o rock vir dar uma ajuda para que as atenções do auditor comum se voltassem para uma herança musical até então apenas do conhecimento de uma minoria. Mas antes ainda dos grupos citados, responsáveis pelo “boom” do folk-rock, outros havia que vinham investigando e perpetuando a tradição, como os Hot Vultures, os Copper Family ou os Watersons, a par de um trabalho de divulgação e recolha levado a cabo pelos clubes ou pela veneranda instituição “Cecil Sharp House” ou ainda pelos registos fonográficos da Topic, que datam dos anos 50. É preciso compreender tudo isto para compreender a importância de um disco como “Waterson: Carthy”, considerado “disco do ano” pela Folk Roots, cruzamento de três gerações, irmanadas numa espécie de cruzada contra o esquecimento e a discriminação contra a folk sem fusões nem concessões de qualquer espécie. Norma Waterson – quem ouviu falar dela? – fez parte dos citados Watersons, bem como Martin Carthy, este já um nome conhecido, a partir do momento em que fundou, com Ashley Hutchings, os Steeleye Span. A sua filha, Eliza, benjamim do trio, revelou-se como notável violinista num duo, formado recentemente, com outra intérprete deste instrumento, Nancy Kerr. O encontro dos três resultou em pura magia. Escutar o canto e a voz de Norma Waterson é por si só uma experiência que não se explica por palavras. As suas interpretações em “Bold Doherty”, “With Kitty I’ll go”, “When first I came to Caledonia”, “Sleep on beloved” (com harmonizações de Martin e Eliza, num arranjo a fazer recordar os Watersons), e “Midnight on the water” (com apoios vocais de Eliza Carthy) são, todas elas, de antologia e – para quem já tiver sido trabalhado nesse sentido – arrepiantes. Martin Carthy não lhe fica atrás, naquele registo épico que o caracteriza, em “Ye mariners all” e “John Hamilton” (nova harmonização a três vozes, numa das especialidades deste cantor-guitarrista, a balada biográfica, magistralmente exemplificada nos álbuns “Out of the Cut” e “Rights of Passage”). A sua filha é, em primeiro lugar, uma violinista em cujo estilo está presente a marca dos clássicos, já que a voz não tem por enquanto, como é natural, a “patine” e a riqueza de “nuances” dramáticas da sua companheira mais velha.
“Waterson: Carthy” pode ser ainda um cartão de acesso para um passado ainda mais antigo, como aparece reunido na colecção de canções do lendário cantor, emigrante, escritor, radialista, ensaísta, aventureiro e comunista Albert Lancaster Lloyd, A. L. Lloyd, como é mais conhecido. Na companhia da concertina de Alf Edwards e o violino de Dave Swarbrick, mestre dos mestres. Ou na excepcional antologia de vozes da geração antiga, personificada por lendas como Bob e Ron Copper, Walter Pardon, William Kimber, Louise Fuller, Cyril Poacher, Bob Hart ou Fred Jordan, que a Topic tinha registadas em vinilo, em edições que alguns, mais velhos, recordarão das crónicas que sobre elas se publicaram no tempo em que se escrevia sobre folk no “Melody Maker”, pela pena de Colin Irwin. Gravações em as quais, como se refere no livrete, “o nosso conhecimento colectivo sobre o que a música tradicional realmente representa seria virtualmente inexistente” e que, ao mesmo tempo, “recolocam algumas das vozes do primeiro ‘folk revival’ num contexto necessariamente mais vivo e actual”. Documentos a ouvir e conservar com urgência.

Nota – Há cerca de 15 dias, no “Expresso”, uma voz houve que ousou desautorizar os “sumo-sacerdotes do templo”. Foi tal o desplante, a fúria e o destrambelho da invectiva que, por pouco, o herege quase se esquecia de criticar o disco em análise – no caso, o mais recente dos Chieftains -, empenhado que estava na destruição, um pouco tonta, é certo, das razões alheias, insuportáveis pelo simples facto de não serem as suas. Assim, como reparação, os deuses condenam o faltoso à audição da obra completa de Tom Jones. E a escrever mil vezes “Não invocarei o santo nome dos Monty Python em vão”.



Vários – “Global Meditation” + Vários – “Global Celebration”

Pop Rock

22 de Fevereiro de 1995
álbuns world

O mundo em elipses

A Ellipsis Arts é uma editora americana de “world music”. Até aqui nada de mais. O que distingue este selo da concorrência é o facto de apenas editar antologias. Objectos de luxo nos quais são postos todos os cuidados, desde o conteúdo à apresentação e embalagem. A editora vai fazer três anos de existência e é um ramo do selo-mãe Relaxation, com sede em Nova Iorque, especializado na música “new age”. O novo catálogo apresenta até à data cinco títulos, todos eles a partir de agora com distribuição portuguesa pela Etnia. O primeiro, editado em 1992, é uma caixa de quatro compactos de genérico “Global Meditation” e reúne temas de música religiosa recolhidas das mais diversas regiões do globo. Esteve seis semanas consecutivas no primeiro lugar de vendas no “top” de “world music” da “Billboard”, com largas dezenas de milhares de exemplares vendidos (35 mil, só no ano de lançamento). A segunda edição é um nova antologia complementar da primeira. Chama-se “Global Celebration” e segue o mesmo formato de quatro compactos com um livrete informativo. A temática é desta feita a música de carácter festivo oriunda de novo das mais diversas tradições planetárias. As vendas foram de novo de molde a colocar a antologia no “top ten” da “Billboard”. Seguiu-se “Voices of Forgotten Worlds”, um CD duplo contendo música étnica de culturas primitivas, acompanhado de um livro com 96 páginas, com informação detalhada e fotografias de grande qualidade. As duas últimas edições da Ellipsian Arts são uma antologia de música africana, em três compactos e livro, “Africa Never Stand Still” e outra incidindo sobre o flamenco, intitulada “Duende”, como nos outros casos, acompanhada de material informativo e fotográfico detalhado. Na calha está uma antologia dedicada na íntegra à percussão. As actividades da Ellipsian Arts planeiam estender-se a outros domínios, constituindo-se num verdadeiro polvo “multimedia” que integrará a edição de livros, vídeos e CD-ROMs.
Um dos muitos atractivos da estética da Ellipsis Arts prende-se com a atitude que preside à feitura de todos os trabalhos. Jeffrey Charno, director da companhia, insiste num ponto que é o aspecto lúdico da apresentação. Uma preocupação que se reflecte a todos os níveis, uma vez que a selecção de temas não obedece a um critério didáctico mas antes a uma escolha subjectiva que passa em primeiro lugar pelo prazer da audição. Depois, a arrumação temática que caracteriza todas as obras oferece como que várias viagens paralelas no interior de um percurso principal, o que retira à descoberta o peso da erudição e da catalogação científica. A “world music” encontrou na Ellipsis Arts novos roteiros. A investigar e fruir com urgência.

Global Meditation (10)
Global Celebration (10)


gm


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Fascinante. É o mínimo que se poderá dizer de um projecto com a envergadura das antologias “Global Meditation” e “Global Celebration”, compiladas pela Ellipsis Arts.
“Global Meditation”, música religiosa, da contemplativa à ritual, subdivide-se em quatro subtemáticas registadas em outros tantos discos. “Voices of the Spirit” põe em destaque o canto, a voz humana em comunicação e comunhão com a divindade. “Harmony and Interplay” é dedicado aos “ensembles” instrumentais. “The Pulse of Life” incide no ritmo e “Music from the Heart” na melodia. Entre uma multidão de músicos anónimos, encontramos os nomes de Ale Møller, Milton Cardona, Nusrat fateh Ali Khan, Soliman Gamil, Farafina, Zakir Hussain, Stella Rambisai Chiweshe, Glen Velez, Djivan Gasparyan, Gordon Mooney e os Guo Brothers.
“Global Celebration”, música festiva, segue um esquema de divisão idêntico. Parte-se de “Dancing with the gods”, a dança, em várias festividades do planeta, continua-se com “Earth Spirit”, celebrações relacionadas de forma directa com a natureza, e “Passages”, rituais de passagem ou iniciação (baptismo, casamento, morte, etc.) e chega-se ao fim (ou ao princípio…) com “Gatherings”, colectânea de canções seculares. Aos ilustres desconhecidos juntam-se Bachir Attar, Mongo Santamaria, Matt Molloy, Sëbo Ensemble, Alan Reid com John McCusker, Angelin Tytöt, Ali Hassan Kuban, Klezmatics, Värttina, Tarika Sammy, Orchestra Marrabenta Star de Mozambique, Mahlathini e Seckou & Ramata, entre outros.
Em ambos os casos, é o grande mergulho nas raízes e, em simultâneo, na descoberta de sons e atitudes que enformam a nossa maneira de viver e de sentir. “Global Meditation” e “Global Celebration” são não só actos de amor à música, como manifestos políticos. A uma visão redutora, política e economicamente compartimentada do mundo, contrapõe-se uma noção de fraternidade cósmica baseada na comunicação e na partilha. Soa a banalidade “hippy” ou “new age”, mas é verdade. Na Ellipsis Arts, são todos românticos e anarquistas.



Dan Ar Braz – “Héritage Des Celtes”

Pop Rock

8 de Fevereiro de 1995
álbuns world

DAN AR BRAZ
Héritage des Celtes

Columbia, distri. Sony Music


dab

Dan Ar Braz, guitarrista com passado feito na banda de Alan Stivell, não oferece, com a sua posterior obra a solo, grandes motivos de elogio, ao contrário do que aconteceu com outro companheiro seu e de Stivell, Gabriel Yacoub. Braz raramente conseguiu ultrapassar os limites de uma música bonitinha, nas margens do “mainstream”, do rock sinfónico e da “new age”. Neste disco, resolveu empenhar-se num projecto mais “sério”. Só que tanta seriedade não passa de pretensão e os resultados reduzem-se a uma declaração de intenções. A “herança dos celtas” reduz-se aqui a algumas canções de variedades, na voz – bonita – de Karen Matherson, dos Capercaillie, como “Language of the gaels”, gaitadas ao melhor estilo “polaroid” de castelo escocês, doses reforçadas de reverberação (é o que está a dar com os “celtas”…), teorizações (“uma breve história de…” sobre o povo que 2000 anos antes de Cristo já tinha conquistado a Europa, os Balcãs e a Ásia Menor), uma apresentação de luxo (a capa é a 1328ª variação sobre a tripla espiral “an triskell”) e o lote de convidados escolhidos a dedo da ordem, entre os quais Patrig Molard, Jacques Pellen, Jean-Michel Veillon, Donnal Lunny, Nollaig Casey, a Shotts Pipe Band e a Bagad Kemper. Ou seja, gente recrutada das várias regiões célticas, o que não chega para fazer de “Héritage des Celtes” uma obra com o fôlego e a importância de “Symphonie Celtique” de Alan Stivell. Os únicos momentos onde a música consegue desligar o interruptor do “disco de fusão com celtas e batida rock” e ser algo mais que o simples afago dos sentidos são aqueles em que o bretão Yann Fanch Kemener, em “Maro eo ma mestrez” (numa versão bastante diferente da incluída no lendário “Chemins de Terre”, ainda de Stivell) e “Me zo ganet e kreiz ar mor” (aqui com uma segunda guitarra, de Jacques Pellen, e em diálogo com outro bretão lendário, Gilles Servat), ensina que a simplicidade é a melhor forma de chegar ao santuário do templo. O armazém Braz & Braz, ao contrário do outro, não tem. (5)