Tortoise – “América Num Ringue De Box” (entrevista + artigo de opinião + O Novo Som De Chicago – pós-rock / lista / crítica)

Y 16|FEVEREIRO|2001
música|capa

“Standards”, o novo álbum dos Tortoise, encena a América como uma aberração conceptual. Local de observação: Chicago. Para agitar a bandeira do “day after”. Das eleições presidenciais e do pós-rock.


América num ringue de box



A história dos Tortoise é a história de um grupo em permanente ebulição. Se em “Millions now Living Will never Die”, por muitos considerado uma das obras-primas do pós-rock, rótulo que eles próprios ajudaram a criar, com a convicção íntima de que o rock era algo de insuficiente, até ao novo “Standards”, passando pelo “puzzle” eternamente insolúvel que é “TNT”, os Tortoise têm questionado e posto à prova conceitos como os de improvisação e música programática, “live electronics” e alquimia de computação, síntese e citação, entrando finalmente, e como uma intuição, nos domínios da ideologia.
“Standards” surge pouco tempo depois e ainda mal refeito da grande confusão eleitoral dos EUA pós-Clinton. A capa mostra uma bandeira americana deformada por interferências vídeo e o título deixa espaço em aberto para diversas interpretações. Os modelos do “american way of life”, dissecados por dissertações instrumentais abstratas, constituem desde logo um enigma que convoca ainda a memória dos standards da música de jazz, sem que seja possível adivinhar onde se situa exatamente o alvo. Doug McCombs, baixista do grupo, é taxativo: “Gore ou Bush? Sinto que nenhum deles vem trazer algo de grandioso à América…”.
Chicago, cidade onde toda esta trama se desenrola e pela qual os Tortoise se dizem afetados, tem sido de há muito sede de múltiplas concentrações artísticas. Em Chicago a música ferve. Os “blues” de larga tradição, o grande templo jazz da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM) criado nos anos 60 e berço dos Art Ensemble of Chicago, o boom hardcore de bandas como os Naked Raygun ou Big Black, nos anos 80, e a insurreição do pós-rock despoletada em meados da década passada, fizeram e fazem desta metrópole um forno de criatividade.
Não admira então que na música dos Tortoise se sinta a pulsação da fervilhante Chicago, onde tudo é possível lícito e realizável. Se “Millions now Living…” era o “day after” do rock e “TNT” a introspeção esquizoide de jovens intelectuais barricados no estúdio, “Standards” desfere um soco nas expetativas. Os Tortoise assumem-se nesta sua nova fase como um grupo de rock que no rock descobriu que a porta de saída pode ser, no fim de contas, também porta de entrada para o desconhecido. “Standards” transborda de energia, não se envergonha de lançar para a mesa de mistura o espancamento de riffs de guitarra e usa o estúdio como substituto virtual das tradicionais desbundas de garagem. Em vez do manifesto de “Millions…” e da filigrana jazz/minimal de “TNT”, há agora blocos de magma sonoro e ideias em confronto num ringue de box. Serão afinal os Tortoise, como insinuou o seu guitarrista, Jeff Parker, em entrevista ao “Y”, uma banda punk?



A EXISTIR UM CONCEITO, SERIA
UNICAMENTE O DE TORNAR A NOSSA MÚSICA
MAIS ÁSPERA, MAIS
DISTORCIDA E MAIS ALTA,
COM CANÇÕES MAIS DENSAS E CURTAS. MAIS ROCK, NO FUNDO… LEMBRO-ME DE DOUG MCCOMBS DIZER UMA VEZ QUE
JÁ ERA ALTURA
DE FAZERMOS UM DISCO PUNK


Explode rock

Jeff Parker, guitarrista dos Tortoise, explicou a Y as diferenças entre “TNT” e “Standards”, frisando as ambiguidades do conceito, em contraste, com a evidência e o poder exclamativos dos sons. Adeus pós-rock, bem vindo, rock ‘n’ rol. Só que nos Tortoise, nem tudo o que parece, é.
Ao contrário do anterior “TNT”, o novo álbum soa mais unificado e compacto. Seguiram uma estratégia de trabalho diferente?
Desta vez fizemos um esforço consciente para soarmos mais rudes e para tocarmos juntos ao mesmo tempo, uma vez que em “TNT” não tivemos meios para o fazer. Usámos para este álbum, pela primeira vez, o estúdio Soma mas embora o “editing” continue a ser parte importante das gravações, foi-o menos em “Standards” do que em “TNT”. Quando fizemos as misturas claro que usámos o estúdio exaustivamente, mas com mais subtileza do que no disco anterior.
Pode definir essa “subtileza”?
Digamos que as canções sofreram menos tratamentos. Deixámo-las respirar. O estúdio continua a ser um instrumento como qualquer outro mas, em comparação com “TNT”, a sua utilização torna-se menos óbvia.
Em que doses se misturam o rock e o jazz no novo som dos Tortoise?
É mais rock do que qualquer dos outros álbuns… Há pessoas que não gostaram de “TNT” e dizem adorar “Standards” e pessoas que ao ouvirem o novo álbum ficam desiludidas por não soar como “TNT”.
Não existe qualquer elo com a tradição jazz da AACM (ver texto ao lado)?
Bem, adoro jazz e tenho um background mais jazzy do que qualquer outro dos músicos do grupo, mas penso que, a existir uma ligação, ela é sobretudo espiritual, uma influência indireta, mais do que a incorporação na nossa música de elementos concretos de jazz. Estruturamos o som de uma maneira abstrata.
“Standards” é um título enigmático. Com que intenção o escolheram?
Depende do que se entender por “standard”. É um termo ambíguo, com uma quantidade de significados. Pode ser a bandeira da capa, pode ser um presidente, pode ser algo pelo qual lutamos e pode ser uma canção… A música acaba por ser um reflexo das nossas vivências, do modo com observamos o mundo. Mas a existir um conceito, seria unicamente o de tornar a nossa música mais áspera, mais distorcida e mais alta, com canções mais densas e curtas. Mais rock, no fundo… Lembro-me de Doug McCombs dizer uma vez que já era altura de fazermos um disco punk! [risos]
O tema “Blackjack” é bastante diferente do resto do álbum, soando quase como uma banda sonora de Morricone para um “western spaghetti”…
É um dos meus temas favoritos. A música de filmes é algo que todos nós apreciamos, o que acaba por se traduzir em mais uma faceta do grupo. Mas há outras que, de uma maneira ou outra, refletem os gostos de cada um de nós. Eu posso falar nos Gang Starr ou em Art Blakey…
Uma pergunta que se tornou horrível fazer: o termo pós-rock ainda faz algum sentido para os Tortoise?
Foi algo que nunca assumimos. Se alguém nos quer colar esse rótulo, tudo bem… Mas o termo é tão lato que pode abranger bandas tao diferentes como os Isotope 217º, Him, Trans AM ou os Labradford, dos quais gosto especialmente. Acontece que existem problemas de comunicação, de distribuição e de marketing, cujos interesses se acabam por sobrepor à música.
Já que estamos a falar nisso, tem alguma lista pessoal de “standards”?
“You go to my head”, de Billie Holiday, e dois álbuns, “Live at Plugged Nickel”, de Miles Davis, e “Tejas”, dos Z Z Top.


O novo som de Chicago

CHICAGO UNDERGROUND
Synesthesia

Guarda avançada do novo jazz, os Chicago Underground Duo movem-se entre as coordenadas da eletrónica, do pós-rock e do free-jazz, diluídas numa música sem fronteiras tao (des)alinhada com os Supersilent, Miles Davis e Don Cherry, como com Sun Ra, Conrad Schnitzler, em zonas ambientais de ressonâncias cósmicas.

GASTR DEL SOL
Upgrade & Afterlife

“Camoufleur” poderá ser o álbum da iluminação, mas “Upgrade & Afterlife” é aquele que mais longe transporta a candeia dos Faust pelas grutas do inexplorado. Com John Fahey a servir de guia à guitarra e Tony Conrad e LaMonte Young a ensinarem que pode ser necessário todo o tempo do mundo até se descobrir que da repetição pode nascer a luz.

ISOTOPE 217º
The Unstable Molecule

O jazz rock psicadélico e indolente dos jardineiros de Canterbury pode não fazer parte das suas conjeturas, mas a verdade é que os Isotope 217º redescobriram o mesmo sentido de melodia, a afetação diletante e o gosto pela transgressão dos cânones, dos National Health, Hatfield and the North, Nucleus ou Isotope, numa música onde o jazz e a eletrónica correm com um swing quase infantil. E o fraseado “cool” do trompete e do trombone enviam “The Unstable Molecule” para as memórias de Miles Davis de “The Silent Way”.

JIM O’ROURKE
Bad Timing

Um dos gurus de Chicago, em plena fase de transição do hermetismo “faustiano” dos primeiros álbuns para a pop falsamente inocente e por muitos odiada do posterior “Eureka!”. Há melodias, como estas, que nascem tristes e doentes. Como as de Robert Wyatt.

ROME
Rome

Cada audição revela uma esquina diferente dos vários caminhos trilhados por esta banda da primeira geração do pós-rock. Com ênfase no ruído, na eletrónica visceral e num tribalismo electro que evoca as velhas invocações a um demónio sem nome da velha guarda da editora ESP.

STEPHEN PRINA
Push Comes to Love

Antes dos The Sea and Cake dizerem “sim” em francês, já Stephen Prina, dos The Red Krayola, introduzira o Verão e a delicadeza fonética num álbum de canções com a textura de nuvens que tanto carregam a chuva de um chá das cinco em Canterbury como dão a mão à garota de uma imaginária Ipanema. Com a música das palavras a conduzir a dança.

TORTOISE
Millions now Living Will never Die

O álbum que deu credibilidade a uma invenção, o pós-rock, que outros arrastaram pelas ruas do tédio e da amargura. O experimentalismo e a ousadia num álbum de eletrónica em estados de alerta, sem fronteiras que não as da própria música. “Millions” entrou para o grupo dos “que nunca morrem” e fez de novo Chicago o centro do mundo.

VANDERMARK 5
Target or Flag

Hoje aclamado como um dos maiores saxofonistas da nova geração, Ken Vandermark cultiva a musculatura e o fraseado sem papas na língua, aqui num projeto que não desdenha o rock sem as câmaras de magia da estética da editora Recommended.

E ainda:

AERIAL M Post-Global Music
BOBBY COM Rise Up!
BROKEBACK Field Recordings from the Cook Country Water Table
CUL DE SAC Crushes to Light, Minutes to its Fall
ELEVENTH DREAM DAY Eight
THE FOR CARNATION The For Carnation
FREAKWATER End Time
JOHN MCENTIRE Reach the Rock
THE LONESOME ORGANIST Cavalcade
SAM PREKOP Sam Prekop
SLINT Spiderland
THE SEA AND CAKE Oui
TOWN & COUNTRY Decoration Day

Anja Garbarek – “Como Um Blues Europeu” (Entrevista)

Y 16|MARÇO|2001
anja garbarek|música

Um olá e um adeus. Assim define Anja Garbarek Smiling & Waving, jardim de acenos ao passado e ao futuro, à pop e à eletrónica, nas sombras de uma melancolia europeia.


como um blues europeu



Filha de pai ilustre, o saxofonista Jan Garbarek, figura de proa do catálogo ECM, Anja Garbarek mudou-se recentemente para Londres, onde vive com o seu marido inglês. Sem renegar –antes pelo contrário – a experiência e os ensinamentos do pai, aos 30 anos, Anja desbrava o seu próprio caminho, encetado com os álbuns “Velkommen Inn” e “Baloon Mood”, este último o primeiro a ter distribuição em Portugal.
“A única regra que vale a pena seguir é aquela que diz que não há regra nenhuma que valha a pena seguir” disse-lhe o pai. Paradoxo lógico. Paradoxo criativo. Que Anja tem seguido à risca. E nem sequer vale a pena dar ouvidos às opiniões alheias. “Houve quem achasse o meu primeiro álbum demasiado ‘poppy’ e quem o acusasse de ser demasiado ‘leftfield’”, suspira.
“Smiling & Waving” foi gravado em Inglaterra, mas as ideias nasceram na Noruega. “Quando cheguei a Londres achei muito confuso, existe uma quantidade de informação em excesso. É uma cidade difícil de penetrar e a princípio senti falta da proximidade do campo… e da neve. Na Noruega é tudo mais calmo e propício à meditação, podemos ouvir-nos melhor a nós próprios. E eu precisava de ouvir melhor, não tanto o que vem de fora, mas o lado de dentro, o meu eu verdadeiro”.
Até chegar a essa estrada que conduz ao interior, Anja cresceu a ouvir os discos do pai. Miles Davis, sobretudo, mas também Erik Satie, Laurie Anderson e um dos álbuns que mais a impressionou, “My Life in the Bush of Ghosts”, de Brian Eno com David Byrne, título que bem poderia ser usado para definir as imagens e refrações sonoras de “Smiling & Waving”, lugar de encontro de evocações vocais em que a memória aclara os nomes de Annette Peacock, Stina Nordenstan ou de Alison Goldfrapp, mas onde se movimenta algo indefenível e possuidor de um brilho estranho. “Como uma casa grande com muitas divisões”. “A casa de Anja Garbarek tem salas e quartos espaçosos e arejados, mas também caves húmidas e sótãos escuros e poeirentos cheios de recantos onde se ocultam baús com tesouros e há monstros prontos a saltar de dentro do armário.
Hoje, Anja Garbarek “não perde tempo nas lojas de discos, na secção pop”. Gosta de Kate Bush, Laurie Anderson, João Gilberto, António Carlos Jobim e… dos Residents. “Conhece-os? Uau! Praticamente já deixei de os mencionar, perguntam-me sempre: Quem?”.

Melancolia. Como os Residents, Anja Garbarek cultiva os filmes e a dramaturgia da imaginação. Aos 16 anos entrou para uma escola de teatro. Aí aprendeu a adaptar a voz aos seus sonhos. A personagem nasceu com a máscara grega da tristeza. Ela achou que a culpa era de uma certa “melancolia escandinava”. Hoje descobriu que, além de sua, é uma melancolia mais vasta: “uma melancolia europeia”. Londres ensinou-a a ver assim. “A tristeza no rosto das pessoas, o seu ar assustado, perante a abundância de tudo. Um ‘pathos’”. Destino trágico (ou dramático, o drama tem resolução, ao contrário da tragédia) da Europa que os antigos gregos exorcizavam através do teatro. A cantora e compositora norueguesa, com um olhar simultaneamente próximo (de europeia), e distante (de norueguesa) observa, tentando tirar partido desses “blues” do Ocidente europeu mas também procurando vislumbrar o outro lado. “Gosto de imagens dramáticas, mas procuro sentir além delas, a esperança e a alegria, e de captar a magia”.
Robert Wyatt, presente no dueto vocal “The diver” – “nunca tínhamos ouvido a música um do outro, mandei-lhe uma cassete e ele, que é sempre muito seletivo, aceitou colaborar” – foi um dos artistas convidados de “Smiling & Waving” sensível a esta magia. Mark Hollis, dos Talk Talk (encontrámo-nos numa loja de discos”), que a apresentou a Robert Wyatt, foi outro. E Steve Jansen e Richard Barbieri, dois ex-Japan, também. “Um círculo fechado de amigos”, como a norueguesa lhes chama.
Eletrónica espacial, grooves umas vezes galácticos outras recolhidos no conforto doméstico, uma voz que percorre infatigável os corredores interiores deixando um rasto de ecos atrás de si. Um bosque escuro. Neve e estrelas. É assim “Smiling & Waving”, palco de mil metamorfoses, imagens e sensações materializadas num dos grandes álbuns do ano.
Neste momento Anja Garbarek prepara a transposição de “Smiling & Waving” para os espetáculos ao vivo. Não vai ser fácil. “No disco há uma secção de cordas composta por 20 elementos… e quero usar os computadores”. Violinos e programações. Futuro e tradição. Propusemos uma frase para ilustrar o desenho: uma criança a passear num mundo de fantasmas de máquinas. Anja aceita o quadro. O álbum tem uma parte dela e uma parte do mundo. “É ao mesmo tempo um olá e um adeus”. A quem? – perguntamos. Ri-se. “Vocês jornalistas querem sempre saber tudo!”

do norte, a barbárie esclarecida

O recrutamento de Anja Garbarek para as fileiras da multinacional Virgin reflete a capacidade de penetração da música nórdica no mercado internacional, fenómeno que já vem de longe e encontra ramificações na totalidade de estilos musicais contemporâneos. No jazz, na folk, na pop, no rock, na eletrónica ou na música de dança são vários os artistas oriundos da Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca que ao longo das últimas quatro décadas têm semeado a originalidade nos sons do velho continente.
Se nos anos 70 os suecos Abba são os expoentes de uma pop que soube transitar da montra do Festival da Canção para a aceitação universal, a eles se devendo, além da propaganda feita ao traseiro de uma das vocalistas, a aceitação da pop-lixo como produto vendável a uma escala planetária, já antes, nos anos 60, os Shocking Blue, com “Venus”, ou os Tee-Set, com “Ma belle amie”, ambos de um país um bocadinho mais para Sul, a Holanda, tinham como funcionado como gazuas para abrir o top inglês ao resto da Europa – ainda que nestes casos, a veia europop estivesse ainda disfarçada sob o colorido dos trajes hippies e o odor do haxe.
É nos “seventies” que a oferta musical com o selo das terras do Norte se diversifica. Na editora alemão ECM nasce uma escola de jazz ambiental e classicista, personificada por compositores e solistas como Terje Rypdal, Jan Garbarek (pai de Anja) e Palle Danielssen. A folk, sobretudo na Finlândia, prepara na Academia Sibelius, de Helsínquia, ou no Instituto Kansanmusiikki – um e outro proporcionando aos músicos uma severa aprendizagem clássica – a grande invasão que explodirá na década de 90 sob a liderança dos Hedningarna, extraordinariamente bem acolitados pelos Filarfolket, Den Fule, Tallari, JPP, Garmarna, Ottopasuuna, Koinurit, Loituma, Niekku, Pirnales, Sirmakka, Troka, Väsen ou Värttinä.
Também no campo da música progressiva se assiste ao aparecimento de bandas como os dinamarqueses Burnin’ Red Ivanhoe, os suecos Samla Mammas Manna (integrantes do movimento Rock in Opposition com outras bandas continentais), os noruegueses Day of Phoenix e os finlandeses Wigwam e Tasavallan Presidenti, com sonoridades onde é visível a influência do jazz. Todas elas assinam por editoras continentais, o que torna mais fácil a sua divulgação.
Na era da música industrial e de todos os tribalismos eletrónicos dos anos 80, a resposta é dada pelos suecos Omala, enquanto a editora Cold Meat Industry faz as vezes de talhante, oferecendo produtos ritualísticos onde nórdico se confunde com mórbido. Enquanto isso, a tradição pop encontra continuação nas músicas eivadas de nostalgia dos Fra Lippo Lippi e Thirteen Moons.
Chegados aos anos 90 e à viragem do século, a eletrónica kratwerkiana pós-industrial dos finlandeses Pan Sonic esmaga com a sua arte do massacre, sem chegarem a assustar Jimi Tenor e Jay Jay Johanson que cultivam uma mescla de kitsch, exotismo e futurismo, criando sonoridades em equilíbrio no fio instável que liga o “easy listening” ao experimentalismo e a pop à música de variedades.
Se desviarmos o ouvido para a música de dança, encontramos Bobby Hughes Experience, Bobby Trafalgar, YMC ou Quant, e editoras como a Svek e April. E se aqui será mais difícil encontrar traços especificamente nórdicos (passando ao lado de uma inusitada preferência pelo nome Bobby…), é ainda a profusão de sonoridades disponíveis a prova de que no Norte da Europa, sem transbordar já a barbárie, cada nova glaciação põe o resto do continente a ferro e fogo.



Ricki Lee Jones – “A Arte Do Be-Pop” (artigo de opinião) + “Top 10 Álbuns De Covers” (artigo de opinião / listas)

Y 26|JANEIRO|2001
música|rickie lee jones


classicismo é, em Rickie Lee Jones, sinónimo de classe

Rickie Lee Jones – “génio”, “louca” ou “sublime”? Um pouco de tudo, como se poderá comprovar na primeira atuação ao vivo da cantora em Portugal, para apresentar “It’s like This”, coleção de standards candidata a um Grammy.

a arte do be-pop



É pegar ou largar. A voz de Rickie Lee Jones, ou se odeia ou se ama. Em todo o caso, não seria uma má ideia ela pôr umas gotas de Nazex para desentupir o nariz (será que só grava no Inverno, ao ar livre e de manga curta?). Já lhe chamaram “Tom Waits no feminino”, “génio”, “louca”, “irresponsável” e “sublime”. Tem um pouco de tudo isso, como se verá na sua primeira apresentação ao vivo em Portugal, agendada para o último dia deste mês (quarta-feira), às 22h, na Aula Magna da Universidade de Lisboa.
O seu mais recente álbum, intitulado “It’s like this”, é uma coletânea de “standards” de autores como Gershwin, Brecker Brothers, Beatles, Traffic, Marvin Gaye e Bernstein/Stephen Sondheim, que poderá ser considerada a continuação do clássico trabalho com o mesmo formato editado pela cantora há dez anos, “Pop Pop”.
Para já, o novo disco é candidato a um Grammy, na categoria “pop vocal tradicional”, repetindo o que já acontecera em 1979 com o disco de estreia, “Rickie Lee Jones”, que viria a arrecadas o prémio de “Best New Artist”, e em 1989, quando conquistou, de parceria com Dr. John, outro troféu, pela interpretação jazz de “Makin’ whoopie”.
Rickie Lee Jones começou a escrever canções aos sete anos mas a sua primeira profissão, em 1976 e 1977, foi a de empregada doméstica, em Los Angeles, onde conheceu Chuck E. Weiss e Tom Waits, cujo círculo começou a frequentar e com quem chegou a ter um início de romance. No ano seguinte, foi a vez de Lowel George, dos Little Feat, a descobrir, gravando com ela o tema “Easy money” ao mesmo tempo que convenceu a editora Warner Brothers a investir no seu talento.
Mas Rickie era uma força da natureza e adaptava-se mal às convenções. Depois de ter fugido de casa e ser expulsa da escola, por insubordinação, exigiu da editora que o produtor do primeiro disco fosse Lenny Waronker, um dos nomes mais importantes da companhia.
O álbum saiu em 1979 e um dos temas, “Chuck E’s in love”, chegou aos lugares cimeiros do top americano, com um milhão de cópias vendidas, um Grammy no bolso e digressões esgotadas. Parecia aberto o caminho para o sucesso, mas Rickie Lee Jones era perita em desviar-se e enveredar por caminhos pouco iluminados. Desviou-se para não mais voltar a encontrar o êxito desse primeiro disco, mas em contrapartida a sua música ganhou o estatuto de culto e um núcleo de adeptos ferrenhos.
“Pirates”, de 1981, vendeu metade do disco de estreia. Rickie fugiu uma vez mais. Desta vez mudando-se para Nova Iorque e, logo de seguida, para Paris.
As versões de clássicos aparecem em força pela primeira vez no mini-álbum “Girl at her Volcano”, de 1983, onde a classe das suas interpretações se impunha.

Cabeça de fantasma. Regressou a Los Angeles e a Hollywood para gravar “The Magazine” (1984), onde a sua voz inconfundível se rodeava de sintetizadores e de uma aura futurista que voltaria mais tarde a entrar em funcionamento, de forma bem mais escura, em “Ghostyhead”.
Depois de nova fase de turbulência da sua vida privada, com casamento, nascimento de uma filha e a morte do pai, Rickie mudou uma vez mais de casa – indo viver para o campo, em França – e de editora, assinando para a Geffen o álbum “Flying Cowboys” (1990), com um novo produtor, Walter Becker, dos Steely Dan, pondo fim a um interregno de seis anos afastada dos estúdios, excetuando o single “The moon is made of gold” e o encontro com os The Blue Nile, na Escócia.
O seu talento interpretativo explodiria em pleno em 1991, no álbum “Pop Pop”, um trabalho imaculado saído dos sonhos de uma criança magoada, apaixonada pela canção clássica e pelo be-bop. O ciclo Geffen fechar-se-ia com “Traffic from Paradise” (1993); o regresso à Warner teria lugar dois anos depois, com “Naked Songs”, revisitação acústica de alguns dos seus temas mais antigos.
“Ghostyhead”, de 1997, marcaria outro dos seus momentos de transgressão. Álbum difícil e mal aceite por alguns, de sonoridades carregadas, explora a eletrónica industrial e o lado mais sombrio de uma personalidade sempre inquieta, permanecendo até à data como um dos seus trabalhos mais estimulantes.
Por fim, nova mudança de editora – passagem para a Artemis –, e o regresso a um dos formatos que lhe é querido, o dos “standards”, com o novo “It’s like this” (com os convidados Joe Jackson e Taj Mahal) a fazer de novo incidir os holofotes na vertente da interpretação. Numa altura em que se tornou “trendy” fazer álbuns de versões (recorde-se que outros dois concorrentes ao Grammy de melhor “pop vocal tradicional”, Joni Mitchell, com “Both Sides Now”, e Bryan Ferry, com “As Time Goes by”, competem igualmente com álbuns de standards) não deixa de haver ironia no facto de Rickie Lee Jones ver associado o seu talento à “tradição”, quando é sabido que ela fez sempre questão de fintar as convenções.
Mas no final do mês se demonstrará que “classicismo” é, em Rickie Lee Jones, sinónimo de “classe”

TOP 10 de álbuns de “covers”

“It’s Like This” insere-se na tradição de álbuns de “covers”. Aqui ficam alguns mais representativos.

JEAN-LUC PONTY
King Kong Blue Note, 1970

“Virtuose” do violino eletrificado, ginasta do jazz de fusão, herdeiro de Grappelli, Ponty deu novo rosto instrumental ao papa dos Mothers of Invention, reinventando o humor de “Idiot bastard son” e “Twenty small guitars”, ou alinhando em cumplicidade com o mestre, em “Music for Electric Violin and low budget orchestra”.

DAVID BOWIE
Pinups EMI, 1973

O camaleão ainda arranjou tempo para vestir a pelo dos seus heróis, travestindo “See Emily play”, de Syd Barrett, “I can’t explain”, de Townshend ou “Where have all the good times gone”, de Ray Davies.

THE RESIDENTS
George and James Ralph, 1984

Os amantes da soul, seu pudessem, davam-lhes um tiro. Os da música clássica, enforcavam-nos. Os “criminosos” são os Residents, e o crime foi o massacre de James Brown e Gershwin, no primeiro volume de uma série dedicada a compositores americanos deste século.

MARIANNE FAITHFULL
Strange Weather Island, 1987

Resultou do encontro mágico entre a produção de Hal Willner e uma voz do fundo da noite. Tom Waits e Bob Dylan sangrados. E os extremos de uma ressurreição sempre incompleta, entre a ferida de “As tears go by” e o despojamento sem esperança de “Boulevard of broken dreams”.

STEVE BERESFORD
L’Extraordinaire Jardin de Charles Trenet Nato, 1988

Do jazzman e lunático Steve Beresford tudo se espera. Mas foi na editora-anedota Chabada que o inglês soltou o humor nonsense e o amor pelas variedades, em particular a “chanson française”, num disco sorridente que levou ao colo as canções de Trenet.

PASCAL COMELADE
El Primitivismo Les Disques du Soleil et de l’Acier, 1988

Tudo o que toca fica em cacos. E é ao juntar os pedaços com a cola da memória que a música se transforma num brinquedo. Aqui remonta alguns dos seus preferidos: Stones, Wyatt, Nino Rota e Chuck Berry.

MARY COUGHLAN
Uncertain Pleasures Eastwest, 1990

Uma das mais sensuais vozes da atualidade, a irlandesa Mary Coughlan desfiou álbuns de “covers”, qual deles o mais brilhante. “Uncertain Pleasures” distingue-se pela arrebatadora versão de “Heartbreak hotel”, de Presley, subindo ao cume em “The little death”, dos Boomtown Rats, feito standard de jazz.

MATHILDE SANTING
Carried Away Solid, 1991

Todd Rundgren, Roddy Frame e os Doors contam-se entre os autores de “Carried Away”, veículo para a voz desta holandesa cultivar a arte da elegância. Com a meticulosidade de colecionadora e o apuro da designer.

URBAN TURBAN
Urban Turban Resource, 1994

Para os suecos Urban Turban, dar lustro a uma canção é esfregá-la com o desregramento. Sarcasmo, rock & rol e sanfonas, numa variante das barbaridades folk dos compatriotas Hedningarna. “Voodoo chile”, de Hendrix, e “Let’s work together”, dos Canned Heat, caíram que nem ginjas nas mãos dos iconoclastas.

JONI MITCHELL
Both Sides now Reprise, 2000

Uma das damas da pop deste século, na sua primeira incursão no universo das “covers”. Canções sobre o amor, numa paleta interpretativa que vai do recolhimento à orquestração majestosa das emoções. “Standards” na sua aceção mais nobre, de modelos a seguir.