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Peter Hammill – “O Último Dos Visionários” (Entrevista)

Y 2|FEVEREIRO|2001
música|peter hammill

o último dos visionários

A solo, com None of the Above, ou em retrospetiva com os Van Der Graaf Generator, em The Box, Peter Hammill é o ator, o profeta e o visionário da pop, venerado por um séquito de fãs. Canções onde o amor balança no baloiço do cosmos.



Mais de 30 anos de carreira, dezenas de álbuns e três livros de poesia editados é o saldo quantitativo de uma obra cujo alcance está por historiar na restrita Enciclopédia dos Génios da Música Popular do Seculo XX. Peter Hammill, fundador dos Van Der Graaf Generator (VDGG), compositor, poeta, guitarrista, teclista e cantor, tem sido ao longo das últimas três décadas um segredo bem guardado. Um artista de culto. Na altura em que acaba de ser lançada a antologia dos VDGG, “The Box” e depois da edição do seu enésimo álbum a solo, “None of the Above” – álbum de “fábulas terra a terra” e de canções quase todas de amor –, o Y trocou ideias com o último dos românticos – para utilizar um “cliché” que aqui faz todo o sentido.
A capa de “None of the Above” está cheia de escadas. Todas apontam para cima. Vão dar aonde?
É um trocadilho com o título do álbum, [“Nada do que está no cimo”], que acaba por ser mais um conjunto de fábulas terra a terra do que sobre assuntos das esferas celestiais. Também se pode pensar no rótulo “file under” [outro trocadilho: “File under”, de “arrumar em…” usado nas lojas de discos com “under”, “debaixo de”].
Incluímos “None of the Above” na lista dos melhores álbuns de 2000, ao lado de Fátima Miranda (“ArteSonado”), Raymond Scott (“Manhattan Research Inc.”) e Amon Tobin (“Supermodified”). Mais uma vez fez o disco certo, na altura ideal…
Obrigado. Dos discos que refere, o de Fátima Miranda parece-me o mais interessante. Tento sempre fazer álbuns que estejam de acordo com os meus sentimentos num dado momento, em lugar de me preocupar em apanhar uma qualquer onda.
Os arranjos de algumas canções lembram o álbum “Over”. Em que fase se encontrava quando fez o novo disco?
Como sempre, estava envolvido, ocupado e… desligado. O universo da música – da composição à gravação, passando pelos arranjos e pela interpretação – tornou-se-me familiar, fazendo com que me sinta confortável, por paradoxal que possa parecer. Algum do material do novo disco é bastante técnico embora tenha de reconhecer a necessidade de esperar pelos momentos de inspiração. Ao nível dos arranjos, é óbvio que fiquei “preso” a certos traços característicos…
É interessante a sua recusa em explicar o sentido das suas canções mas, em contrapartida, num álbum ao vivo como “Typical” analisa em detalhe os processos interiores por que vai passando ao longo de um concerto…
Essa análise que fiz em “Typical é a de um ator. Quando estou em palco habito cada canção da mesma forma que um ator encarna uma personagem. Mas ao mesmo tempo ponho em prática algumas noções e uma auto-análise que envolvem, sem dúvida, quer a consciência de mim mesmo quer uma “possessão”. Existe uma outra parte de mim, ligada à cabeça, ao corpo e à alma, que, sem ter o controle, é aquela que entra, que encarna determinada história.

É EVIDENTE QUE AQUILO QUE ESCREVO PARTE DAS MINHAS EXPERIÊNCIAS. EM QUALQUER CASO, GOSTARIA QUE, MAIS DO QUE OLHAREM PARA MIM, AS PESSOAS RECONHECESSEM ALGO NELAS PRÓPRIAS, AS SUAS EXPERIÊNCIAS

A verdade é que a maior parte das pessoas que o ouvem acreditam que as suas canções correspondem a experiências pessoais. Talvez porque a sua escrita toque naquele inconsciente coletivo de que Jung e Laing falavam…
Bem… não se trata, em absoluto, de uma autobiografia porque, a dada altura, tornei-me um compositor profissional. É, todavia, evidente que aquilo que escrevo parte das minhas experiências. Em qualquer caso, gostaria que, mais do que olharem para mim, as pessoas reconhecessem algo nelas próprias, as suas experiências. Não sinto que esteja a escrever “O Livro”! A personagem da canção “Somebody bad enough”, por exemplo, é um tipo arrepiante, dos genuínos!…
Depois de uma canção estar escrita, ou um álbum terminado, tem que ter vida própria, defender-se sem qualquer caução. Se continuam a pertencer-me é porque ainda não atingiram a forma definitiva. Quando algo está acabado, devo deixá-lo partir.
Porque é que hoje praticamente só escreve canções de amor?
Os assuntos vão e vêm por fases. É verdade que tenho escrito sobretudo canções de amor, talvez por ser o género fundamental da canção e aquele através do qual tenho mais coisas a dizer e posso explorar uma diversidade de formas. Mas não abandonei outras vias de exploração…
No passado quase todas as suas canções começavam por “I”. Agora é frequente haver um “you”. Mudou de perspetiva?
Sempre que uso o “I” estou a desempenhar uma personagem enquanto o “you” surge quando estou a interpelar-me a mim próprio… Será?
O Tempo foi sempre uma das suas preocupações?
Uma equação irresolúvel. Um dos mistérios da condição humana é a incapacidade de ver o tempo fora de uma perspetiva linear. O processo de escrita é uma tentativa de compreensão de algo que, em última análise, não tem conclusão.
Tem medo de morrer?
Quem é que não tem? Mas será que algum de nós acredita, de facto, que vai morrer?
Uma quantidade de canções do novo álbum fala de um estado intermediário, entre a “antecipação” e a “consequência”, o “Passado e o Presente”, a “luz” e as “trevas”. Nesta dialética, qual o terceiro elemento?
A maior parte das canções desenrolam-se, de facto, nesse “in between” que é, no fundo, a sua essência, a própria essência do instante. A canção em si é esse terceiro elemento, mudando a cada interpretação ao vivo e a cada audição.
“In a bottle” é um dos grandes temas do disco. Como é que fez os arranjos?
Pode parecer ridículo, mas a verdade é que nunca me consigo lembrar da maneira exata como fiz as coisas. Apenas me recordo de que a inserção de guitarras foi uma ideia de última hora.
A única canção mais “fraca” será “Astart”. Peter Hammill “middle of the road”?
Pense o que quiser (risos). Mas continuo a acreditar na simplicidade de uma boa canção pop, da mesma maneira que acredito em material mais complexo.
Por que razão decidiu regravar recentemente a ópera “The Fall of the House of Usher”?
Readquiri a licença e não me senti inclinado a uma reedição exatamente igual. Comecei a remexer na música, acabando por refazer o disco. Em particular para pôr guitarras elétricas, de maneira a criar um ambiente mais sombrio, e para tirar as percussões, que me soavam espalhafatosas.
Custou, mas finalmente foi editada a caixa “The Box”, dos Van Der Graaf Generator. Há alguma razão para serem incluídas tantas versões ao vivo, todas retiradas de um espetáculo dos anos 70 em Itália? Já existia o duplo ao vivo, “Vital”… agora só falta a remasterização, álbum a álbum…
Mas “Vital” era um álbum dos últimos dias do grupo. Os shows de Rimini correspondem a um dos períodos mais criativos dos VDGG que não constavam da discografia original. Quanto à remasterização, quem sabe? Isso está nas mãos da Virgin. Penso que não será possível comprar-lhes os direitos dos álbuns antigos. Mas, pelo menos, estamos a receber “royalties” e há que reconhecer que fizeram um bom trabalho com a caixa, depois de alguma persuasão… (risos). Acaba por ser um testamento!
Qual vai ser o seu próximo passo?
Num sentido literal: espetáculos no México, Japão, Londres, Israel e Itália. Além disso, estou a ultimar os pormenores do meu próximo CD.
Que música tem andado a ouvir?
Não tenho muito tempo, passo oito, dez horas por dia a trabalhar no estúdio. Mas os CDs que levei comigo para a última digressão foram o “Quarteto para o Fim dos Tempos”, de Olivier Messiaen, “Porgy and Bess” de Miles Davis, “Lontano”, de György Ligeti, algum Benjamin Britten, William Byrd, Piazzolla, John Lee Hooker… Uma mala sortida.



Tortoise – “América Num Ringue De Box” (entrevista + artigo de opinião + O Novo Som De Chicago – pós-rock / lista / crítica)

Y 16|FEVEREIRO|2001
música|capa

“Standards”, o novo álbum dos Tortoise, encena a América como uma aberração conceptual. Local de observação: Chicago. Para agitar a bandeira do “day after”. Das eleições presidenciais e do pós-rock.


América num ringue de box



A história dos Tortoise é a história de um grupo em permanente ebulição. Se em “Millions now Living Will never Die”, por muitos considerado uma das obras-primas do pós-rock, rótulo que eles próprios ajudaram a criar, com a convicção íntima de que o rock era algo de insuficiente, até ao novo “Standards”, passando pelo “puzzle” eternamente insolúvel que é “TNT”, os Tortoise têm questionado e posto à prova conceitos como os de improvisação e música programática, “live electronics” e alquimia de computação, síntese e citação, entrando finalmente, e como uma intuição, nos domínios da ideologia.
“Standards” surge pouco tempo depois e ainda mal refeito da grande confusão eleitoral dos EUA pós-Clinton. A capa mostra uma bandeira americana deformada por interferências vídeo e o título deixa espaço em aberto para diversas interpretações. Os modelos do “american way of life”, dissecados por dissertações instrumentais abstratas, constituem desde logo um enigma que convoca ainda a memória dos standards da música de jazz, sem que seja possível adivinhar onde se situa exatamente o alvo. Doug McCombs, baixista do grupo, é taxativo: “Gore ou Bush? Sinto que nenhum deles vem trazer algo de grandioso à América…”.
Chicago, cidade onde toda esta trama se desenrola e pela qual os Tortoise se dizem afetados, tem sido de há muito sede de múltiplas concentrações artísticas. Em Chicago a música ferve. Os “blues” de larga tradição, o grande templo jazz da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM) criado nos anos 60 e berço dos Art Ensemble of Chicago, o boom hardcore de bandas como os Naked Raygun ou Big Black, nos anos 80, e a insurreição do pós-rock despoletada em meados da década passada, fizeram e fazem desta metrópole um forno de criatividade.
Não admira então que na música dos Tortoise se sinta a pulsação da fervilhante Chicago, onde tudo é possível lícito e realizável. Se “Millions now Living…” era o “day after” do rock e “TNT” a introspeção esquizoide de jovens intelectuais barricados no estúdio, “Standards” desfere um soco nas expetativas. Os Tortoise assumem-se nesta sua nova fase como um grupo de rock que no rock descobriu que a porta de saída pode ser, no fim de contas, também porta de entrada para o desconhecido. “Standards” transborda de energia, não se envergonha de lançar para a mesa de mistura o espancamento de riffs de guitarra e usa o estúdio como substituto virtual das tradicionais desbundas de garagem. Em vez do manifesto de “Millions…” e da filigrana jazz/minimal de “TNT”, há agora blocos de magma sonoro e ideias em confronto num ringue de box. Serão afinal os Tortoise, como insinuou o seu guitarrista, Jeff Parker, em entrevista ao “Y”, uma banda punk?



A EXISTIR UM CONCEITO, SERIA
UNICAMENTE O DE TORNAR A NOSSA MÚSICA
MAIS ÁSPERA, MAIS
DISTORCIDA E MAIS ALTA,
COM CANÇÕES MAIS DENSAS E CURTAS. MAIS ROCK, NO FUNDO… LEMBRO-ME DE DOUG MCCOMBS DIZER UMA VEZ QUE
JÁ ERA ALTURA
DE FAZERMOS UM DISCO PUNK


Explode rock

Jeff Parker, guitarrista dos Tortoise, explicou a Y as diferenças entre “TNT” e “Standards”, frisando as ambiguidades do conceito, em contraste, com a evidência e o poder exclamativos dos sons. Adeus pós-rock, bem vindo, rock ‘n’ rol. Só que nos Tortoise, nem tudo o que parece, é.
Ao contrário do anterior “TNT”, o novo álbum soa mais unificado e compacto. Seguiram uma estratégia de trabalho diferente?
Desta vez fizemos um esforço consciente para soarmos mais rudes e para tocarmos juntos ao mesmo tempo, uma vez que em “TNT” não tivemos meios para o fazer. Usámos para este álbum, pela primeira vez, o estúdio Soma mas embora o “editing” continue a ser parte importante das gravações, foi-o menos em “Standards” do que em “TNT”. Quando fizemos as misturas claro que usámos o estúdio exaustivamente, mas com mais subtileza do que no disco anterior.
Pode definir essa “subtileza”?
Digamos que as canções sofreram menos tratamentos. Deixámo-las respirar. O estúdio continua a ser um instrumento como qualquer outro mas, em comparação com “TNT”, a sua utilização torna-se menos óbvia.
Em que doses se misturam o rock e o jazz no novo som dos Tortoise?
É mais rock do que qualquer dos outros álbuns… Há pessoas que não gostaram de “TNT” e dizem adorar “Standards” e pessoas que ao ouvirem o novo álbum ficam desiludidas por não soar como “TNT”.
Não existe qualquer elo com a tradição jazz da AACM (ver texto ao lado)?
Bem, adoro jazz e tenho um background mais jazzy do que qualquer outro dos músicos do grupo, mas penso que, a existir uma ligação, ela é sobretudo espiritual, uma influência indireta, mais do que a incorporação na nossa música de elementos concretos de jazz. Estruturamos o som de uma maneira abstrata.
“Standards” é um título enigmático. Com que intenção o escolheram?
Depende do que se entender por “standard”. É um termo ambíguo, com uma quantidade de significados. Pode ser a bandeira da capa, pode ser um presidente, pode ser algo pelo qual lutamos e pode ser uma canção… A música acaba por ser um reflexo das nossas vivências, do modo com observamos o mundo. Mas a existir um conceito, seria unicamente o de tornar a nossa música mais áspera, mais distorcida e mais alta, com canções mais densas e curtas. Mais rock, no fundo… Lembro-me de Doug McCombs dizer uma vez que já era altura de fazermos um disco punk! [risos]
O tema “Blackjack” é bastante diferente do resto do álbum, soando quase como uma banda sonora de Morricone para um “western spaghetti”…
É um dos meus temas favoritos. A música de filmes é algo que todos nós apreciamos, o que acaba por se traduzir em mais uma faceta do grupo. Mas há outras que, de uma maneira ou outra, refletem os gostos de cada um de nós. Eu posso falar nos Gang Starr ou em Art Blakey…
Uma pergunta que se tornou horrível fazer: o termo pós-rock ainda faz algum sentido para os Tortoise?
Foi algo que nunca assumimos. Se alguém nos quer colar esse rótulo, tudo bem… Mas o termo é tão lato que pode abranger bandas tao diferentes como os Isotope 217º, Him, Trans AM ou os Labradford, dos quais gosto especialmente. Acontece que existem problemas de comunicação, de distribuição e de marketing, cujos interesses se acabam por sobrepor à música.
Já que estamos a falar nisso, tem alguma lista pessoal de “standards”?
“You go to my head”, de Billie Holiday, e dois álbuns, “Live at Plugged Nickel”, de Miles Davis, e “Tejas”, dos Z Z Top.


O novo som de Chicago

CHICAGO UNDERGROUND
Synesthesia

Guarda avançada do novo jazz, os Chicago Underground Duo movem-se entre as coordenadas da eletrónica, do pós-rock e do free-jazz, diluídas numa música sem fronteiras tao (des)alinhada com os Supersilent, Miles Davis e Don Cherry, como com Sun Ra, Conrad Schnitzler, em zonas ambientais de ressonâncias cósmicas.

GASTR DEL SOL
Upgrade & Afterlife

“Camoufleur” poderá ser o álbum da iluminação, mas “Upgrade & Afterlife” é aquele que mais longe transporta a candeia dos Faust pelas grutas do inexplorado. Com John Fahey a servir de guia à guitarra e Tony Conrad e LaMonte Young a ensinarem que pode ser necessário todo o tempo do mundo até se descobrir que da repetição pode nascer a luz.

ISOTOPE 217º
The Unstable Molecule

O jazz rock psicadélico e indolente dos jardineiros de Canterbury pode não fazer parte das suas conjeturas, mas a verdade é que os Isotope 217º redescobriram o mesmo sentido de melodia, a afetação diletante e o gosto pela transgressão dos cânones, dos National Health, Hatfield and the North, Nucleus ou Isotope, numa música onde o jazz e a eletrónica correm com um swing quase infantil. E o fraseado “cool” do trompete e do trombone enviam “The Unstable Molecule” para as memórias de Miles Davis de “The Silent Way”.

JIM O’ROURKE
Bad Timing

Um dos gurus de Chicago, em plena fase de transição do hermetismo “faustiano” dos primeiros álbuns para a pop falsamente inocente e por muitos odiada do posterior “Eureka!”. Há melodias, como estas, que nascem tristes e doentes. Como as de Robert Wyatt.

ROME
Rome

Cada audição revela uma esquina diferente dos vários caminhos trilhados por esta banda da primeira geração do pós-rock. Com ênfase no ruído, na eletrónica visceral e num tribalismo electro que evoca as velhas invocações a um demónio sem nome da velha guarda da editora ESP.

STEPHEN PRINA
Push Comes to Love

Antes dos The Sea and Cake dizerem “sim” em francês, já Stephen Prina, dos The Red Krayola, introduzira o Verão e a delicadeza fonética num álbum de canções com a textura de nuvens que tanto carregam a chuva de um chá das cinco em Canterbury como dão a mão à garota de uma imaginária Ipanema. Com a música das palavras a conduzir a dança.

TORTOISE
Millions now Living Will never Die

O álbum que deu credibilidade a uma invenção, o pós-rock, que outros arrastaram pelas ruas do tédio e da amargura. O experimentalismo e a ousadia num álbum de eletrónica em estados de alerta, sem fronteiras que não as da própria música. “Millions” entrou para o grupo dos “que nunca morrem” e fez de novo Chicago o centro do mundo.

VANDERMARK 5
Target or Flag

Hoje aclamado como um dos maiores saxofonistas da nova geração, Ken Vandermark cultiva a musculatura e o fraseado sem papas na língua, aqui num projeto que não desdenha o rock sem as câmaras de magia da estética da editora Recommended.

E ainda:

AERIAL M Post-Global Music
BOBBY COM Rise Up!
BROKEBACK Field Recordings from the Cook Country Water Table
CUL DE SAC Crushes to Light, Minutes to its Fall
ELEVENTH DREAM DAY Eight
THE FOR CARNATION The For Carnation
FREAKWATER End Time
JOHN MCENTIRE Reach the Rock
THE LONESOME ORGANIST Cavalcade
SAM PREKOP Sam Prekop
SLINT Spiderland
THE SEA AND CAKE Oui
TOWN & COUNTRY Decoration Day

Anja Garbarek – “Como Um Blues Europeu” (Entrevista)

Y 16|MARÇO|2001
anja garbarek|música

Um olá e um adeus. Assim define Anja Garbarek Smiling & Waving, jardim de acenos ao passado e ao futuro, à pop e à eletrónica, nas sombras de uma melancolia europeia.


como um blues europeu



Filha de pai ilustre, o saxofonista Jan Garbarek, figura de proa do catálogo ECM, Anja Garbarek mudou-se recentemente para Londres, onde vive com o seu marido inglês. Sem renegar –antes pelo contrário – a experiência e os ensinamentos do pai, aos 30 anos, Anja desbrava o seu próprio caminho, encetado com os álbuns “Velkommen Inn” e “Baloon Mood”, este último o primeiro a ter distribuição em Portugal.
“A única regra que vale a pena seguir é aquela que diz que não há regra nenhuma que valha a pena seguir” disse-lhe o pai. Paradoxo lógico. Paradoxo criativo. Que Anja tem seguido à risca. E nem sequer vale a pena dar ouvidos às opiniões alheias. “Houve quem achasse o meu primeiro álbum demasiado ‘poppy’ e quem o acusasse de ser demasiado ‘leftfield’”, suspira.
“Smiling & Waving” foi gravado em Inglaterra, mas as ideias nasceram na Noruega. “Quando cheguei a Londres achei muito confuso, existe uma quantidade de informação em excesso. É uma cidade difícil de penetrar e a princípio senti falta da proximidade do campo… e da neve. Na Noruega é tudo mais calmo e propício à meditação, podemos ouvir-nos melhor a nós próprios. E eu precisava de ouvir melhor, não tanto o que vem de fora, mas o lado de dentro, o meu eu verdadeiro”.
Até chegar a essa estrada que conduz ao interior, Anja cresceu a ouvir os discos do pai. Miles Davis, sobretudo, mas também Erik Satie, Laurie Anderson e um dos álbuns que mais a impressionou, “My Life in the Bush of Ghosts”, de Brian Eno com David Byrne, título que bem poderia ser usado para definir as imagens e refrações sonoras de “Smiling & Waving”, lugar de encontro de evocações vocais em que a memória aclara os nomes de Annette Peacock, Stina Nordenstan ou de Alison Goldfrapp, mas onde se movimenta algo indefenível e possuidor de um brilho estranho. “Como uma casa grande com muitas divisões”. “A casa de Anja Garbarek tem salas e quartos espaçosos e arejados, mas também caves húmidas e sótãos escuros e poeirentos cheios de recantos onde se ocultam baús com tesouros e há monstros prontos a saltar de dentro do armário.
Hoje, Anja Garbarek “não perde tempo nas lojas de discos, na secção pop”. Gosta de Kate Bush, Laurie Anderson, João Gilberto, António Carlos Jobim e… dos Residents. “Conhece-os? Uau! Praticamente já deixei de os mencionar, perguntam-me sempre: Quem?”.

Melancolia. Como os Residents, Anja Garbarek cultiva os filmes e a dramaturgia da imaginação. Aos 16 anos entrou para uma escola de teatro. Aí aprendeu a adaptar a voz aos seus sonhos. A personagem nasceu com a máscara grega da tristeza. Ela achou que a culpa era de uma certa “melancolia escandinava”. Hoje descobriu que, além de sua, é uma melancolia mais vasta: “uma melancolia europeia”. Londres ensinou-a a ver assim. “A tristeza no rosto das pessoas, o seu ar assustado, perante a abundância de tudo. Um ‘pathos’”. Destino trágico (ou dramático, o drama tem resolução, ao contrário da tragédia) da Europa que os antigos gregos exorcizavam através do teatro. A cantora e compositora norueguesa, com um olhar simultaneamente próximo (de europeia), e distante (de norueguesa) observa, tentando tirar partido desses “blues” do Ocidente europeu mas também procurando vislumbrar o outro lado. “Gosto de imagens dramáticas, mas procuro sentir além delas, a esperança e a alegria, e de captar a magia”.
Robert Wyatt, presente no dueto vocal “The diver” – “nunca tínhamos ouvido a música um do outro, mandei-lhe uma cassete e ele, que é sempre muito seletivo, aceitou colaborar” – foi um dos artistas convidados de “Smiling & Waving” sensível a esta magia. Mark Hollis, dos Talk Talk (encontrámo-nos numa loja de discos”), que a apresentou a Robert Wyatt, foi outro. E Steve Jansen e Richard Barbieri, dois ex-Japan, também. “Um círculo fechado de amigos”, como a norueguesa lhes chama.
Eletrónica espacial, grooves umas vezes galácticos outras recolhidos no conforto doméstico, uma voz que percorre infatigável os corredores interiores deixando um rasto de ecos atrás de si. Um bosque escuro. Neve e estrelas. É assim “Smiling & Waving”, palco de mil metamorfoses, imagens e sensações materializadas num dos grandes álbuns do ano.
Neste momento Anja Garbarek prepara a transposição de “Smiling & Waving” para os espetáculos ao vivo. Não vai ser fácil. “No disco há uma secção de cordas composta por 20 elementos… e quero usar os computadores”. Violinos e programações. Futuro e tradição. Propusemos uma frase para ilustrar o desenho: uma criança a passear num mundo de fantasmas de máquinas. Anja aceita o quadro. O álbum tem uma parte dela e uma parte do mundo. “É ao mesmo tempo um olá e um adeus”. A quem? – perguntamos. Ri-se. “Vocês jornalistas querem sempre saber tudo!”

do norte, a barbárie esclarecida

O recrutamento de Anja Garbarek para as fileiras da multinacional Virgin reflete a capacidade de penetração da música nórdica no mercado internacional, fenómeno que já vem de longe e encontra ramificações na totalidade de estilos musicais contemporâneos. No jazz, na folk, na pop, no rock, na eletrónica ou na música de dança são vários os artistas oriundos da Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca que ao longo das últimas quatro décadas têm semeado a originalidade nos sons do velho continente.
Se nos anos 70 os suecos Abba são os expoentes de uma pop que soube transitar da montra do Festival da Canção para a aceitação universal, a eles se devendo, além da propaganda feita ao traseiro de uma das vocalistas, a aceitação da pop-lixo como produto vendável a uma escala planetária, já antes, nos anos 60, os Shocking Blue, com “Venus”, ou os Tee-Set, com “Ma belle amie”, ambos de um país um bocadinho mais para Sul, a Holanda, tinham como funcionado como gazuas para abrir o top inglês ao resto da Europa – ainda que nestes casos, a veia europop estivesse ainda disfarçada sob o colorido dos trajes hippies e o odor do haxe.
É nos “seventies” que a oferta musical com o selo das terras do Norte se diversifica. Na editora alemão ECM nasce uma escola de jazz ambiental e classicista, personificada por compositores e solistas como Terje Rypdal, Jan Garbarek (pai de Anja) e Palle Danielssen. A folk, sobretudo na Finlândia, prepara na Academia Sibelius, de Helsínquia, ou no Instituto Kansanmusiikki – um e outro proporcionando aos músicos uma severa aprendizagem clássica – a grande invasão que explodirá na década de 90 sob a liderança dos Hedningarna, extraordinariamente bem acolitados pelos Filarfolket, Den Fule, Tallari, JPP, Garmarna, Ottopasuuna, Koinurit, Loituma, Niekku, Pirnales, Sirmakka, Troka, Väsen ou Värttinä.
Também no campo da música progressiva se assiste ao aparecimento de bandas como os dinamarqueses Burnin’ Red Ivanhoe, os suecos Samla Mammas Manna (integrantes do movimento Rock in Opposition com outras bandas continentais), os noruegueses Day of Phoenix e os finlandeses Wigwam e Tasavallan Presidenti, com sonoridades onde é visível a influência do jazz. Todas elas assinam por editoras continentais, o que torna mais fácil a sua divulgação.
Na era da música industrial e de todos os tribalismos eletrónicos dos anos 80, a resposta é dada pelos suecos Omala, enquanto a editora Cold Meat Industry faz as vezes de talhante, oferecendo produtos ritualísticos onde nórdico se confunde com mórbido. Enquanto isso, a tradição pop encontra continuação nas músicas eivadas de nostalgia dos Fra Lippo Lippi e Thirteen Moons.
Chegados aos anos 90 e à viragem do século, a eletrónica kratwerkiana pós-industrial dos finlandeses Pan Sonic esmaga com a sua arte do massacre, sem chegarem a assustar Jimi Tenor e Jay Jay Johanson que cultivam uma mescla de kitsch, exotismo e futurismo, criando sonoridades em equilíbrio no fio instável que liga o “easy listening” ao experimentalismo e a pop à música de variedades.
Se desviarmos o ouvido para a música de dança, encontramos Bobby Hughes Experience, Bobby Trafalgar, YMC ou Quant, e editoras como a Svek e April. E se aqui será mais difícil encontrar traços especificamente nórdicos (passando ao lado de uma inusitada preferência pelo nome Bobby…), é ainda a profusão de sonoridades disponíveis a prova de que no Norte da Europa, sem transbordar já a barbárie, cada nova glaciação põe o resto do continente a ferro e fogo.