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Tortoise – “América Num Ringue De Box” (entrevista + artigo de opinião + O Novo Som De Chicago – pós-rock / lista / crítica)

Y 16|FEVEREIRO|2001
música|capa

“Standards”, o novo álbum dos Tortoise, encena a América como uma aberração conceptual. Local de observação: Chicago. Para agitar a bandeira do “day after”. Das eleições presidenciais e do pós-rock.


América num ringue de box



A história dos Tortoise é a história de um grupo em permanente ebulição. Se em “Millions now Living Will never Die”, por muitos considerado uma das obras-primas do pós-rock, rótulo que eles próprios ajudaram a criar, com a convicção íntima de que o rock era algo de insuficiente, até ao novo “Standards”, passando pelo “puzzle” eternamente insolúvel que é “TNT”, os Tortoise têm questionado e posto à prova conceitos como os de improvisação e música programática, “live electronics” e alquimia de computação, síntese e citação, entrando finalmente, e como uma intuição, nos domínios da ideologia.
“Standards” surge pouco tempo depois e ainda mal refeito da grande confusão eleitoral dos EUA pós-Clinton. A capa mostra uma bandeira americana deformada por interferências vídeo e o título deixa espaço em aberto para diversas interpretações. Os modelos do “american way of life”, dissecados por dissertações instrumentais abstratas, constituem desde logo um enigma que convoca ainda a memória dos standards da música de jazz, sem que seja possível adivinhar onde se situa exatamente o alvo. Doug McCombs, baixista do grupo, é taxativo: “Gore ou Bush? Sinto que nenhum deles vem trazer algo de grandioso à América…”.
Chicago, cidade onde toda esta trama se desenrola e pela qual os Tortoise se dizem afetados, tem sido de há muito sede de múltiplas concentrações artísticas. Em Chicago a música ferve. Os “blues” de larga tradição, o grande templo jazz da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM) criado nos anos 60 e berço dos Art Ensemble of Chicago, o boom hardcore de bandas como os Naked Raygun ou Big Black, nos anos 80, e a insurreição do pós-rock despoletada em meados da década passada, fizeram e fazem desta metrópole um forno de criatividade.
Não admira então que na música dos Tortoise se sinta a pulsação da fervilhante Chicago, onde tudo é possível lícito e realizável. Se “Millions now Living…” era o “day after” do rock e “TNT” a introspeção esquizoide de jovens intelectuais barricados no estúdio, “Standards” desfere um soco nas expetativas. Os Tortoise assumem-se nesta sua nova fase como um grupo de rock que no rock descobriu que a porta de saída pode ser, no fim de contas, também porta de entrada para o desconhecido. “Standards” transborda de energia, não se envergonha de lançar para a mesa de mistura o espancamento de riffs de guitarra e usa o estúdio como substituto virtual das tradicionais desbundas de garagem. Em vez do manifesto de “Millions…” e da filigrana jazz/minimal de “TNT”, há agora blocos de magma sonoro e ideias em confronto num ringue de box. Serão afinal os Tortoise, como insinuou o seu guitarrista, Jeff Parker, em entrevista ao “Y”, uma banda punk?



A EXISTIR UM CONCEITO, SERIA
UNICAMENTE O DE TORNAR A NOSSA MÚSICA
MAIS ÁSPERA, MAIS
DISTORCIDA E MAIS ALTA,
COM CANÇÕES MAIS DENSAS E CURTAS. MAIS ROCK, NO FUNDO… LEMBRO-ME DE DOUG MCCOMBS DIZER UMA VEZ QUE
JÁ ERA ALTURA
DE FAZERMOS UM DISCO PUNK


Explode rock

Jeff Parker, guitarrista dos Tortoise, explicou a Y as diferenças entre “TNT” e “Standards”, frisando as ambiguidades do conceito, em contraste, com a evidência e o poder exclamativos dos sons. Adeus pós-rock, bem vindo, rock ‘n’ rol. Só que nos Tortoise, nem tudo o que parece, é.
Ao contrário do anterior “TNT”, o novo álbum soa mais unificado e compacto. Seguiram uma estratégia de trabalho diferente?
Desta vez fizemos um esforço consciente para soarmos mais rudes e para tocarmos juntos ao mesmo tempo, uma vez que em “TNT” não tivemos meios para o fazer. Usámos para este álbum, pela primeira vez, o estúdio Soma mas embora o “editing” continue a ser parte importante das gravações, foi-o menos em “Standards” do que em “TNT”. Quando fizemos as misturas claro que usámos o estúdio exaustivamente, mas com mais subtileza do que no disco anterior.
Pode definir essa “subtileza”?
Digamos que as canções sofreram menos tratamentos. Deixámo-las respirar. O estúdio continua a ser um instrumento como qualquer outro mas, em comparação com “TNT”, a sua utilização torna-se menos óbvia.
Em que doses se misturam o rock e o jazz no novo som dos Tortoise?
É mais rock do que qualquer dos outros álbuns… Há pessoas que não gostaram de “TNT” e dizem adorar “Standards” e pessoas que ao ouvirem o novo álbum ficam desiludidas por não soar como “TNT”.
Não existe qualquer elo com a tradição jazz da AACM (ver texto ao lado)?
Bem, adoro jazz e tenho um background mais jazzy do que qualquer outro dos músicos do grupo, mas penso que, a existir uma ligação, ela é sobretudo espiritual, uma influência indireta, mais do que a incorporação na nossa música de elementos concretos de jazz. Estruturamos o som de uma maneira abstrata.
“Standards” é um título enigmático. Com que intenção o escolheram?
Depende do que se entender por “standard”. É um termo ambíguo, com uma quantidade de significados. Pode ser a bandeira da capa, pode ser um presidente, pode ser algo pelo qual lutamos e pode ser uma canção… A música acaba por ser um reflexo das nossas vivências, do modo com observamos o mundo. Mas a existir um conceito, seria unicamente o de tornar a nossa música mais áspera, mais distorcida e mais alta, com canções mais densas e curtas. Mais rock, no fundo… Lembro-me de Doug McCombs dizer uma vez que já era altura de fazermos um disco punk! [risos]
O tema “Blackjack” é bastante diferente do resto do álbum, soando quase como uma banda sonora de Morricone para um “western spaghetti”…
É um dos meus temas favoritos. A música de filmes é algo que todos nós apreciamos, o que acaba por se traduzir em mais uma faceta do grupo. Mas há outras que, de uma maneira ou outra, refletem os gostos de cada um de nós. Eu posso falar nos Gang Starr ou em Art Blakey…
Uma pergunta que se tornou horrível fazer: o termo pós-rock ainda faz algum sentido para os Tortoise?
Foi algo que nunca assumimos. Se alguém nos quer colar esse rótulo, tudo bem… Mas o termo é tão lato que pode abranger bandas tao diferentes como os Isotope 217º, Him, Trans AM ou os Labradford, dos quais gosto especialmente. Acontece que existem problemas de comunicação, de distribuição e de marketing, cujos interesses se acabam por sobrepor à música.
Já que estamos a falar nisso, tem alguma lista pessoal de “standards”?
“You go to my head”, de Billie Holiday, e dois álbuns, “Live at Plugged Nickel”, de Miles Davis, e “Tejas”, dos Z Z Top.


O novo som de Chicago

CHICAGO UNDERGROUND
Synesthesia

Guarda avançada do novo jazz, os Chicago Underground Duo movem-se entre as coordenadas da eletrónica, do pós-rock e do free-jazz, diluídas numa música sem fronteiras tao (des)alinhada com os Supersilent, Miles Davis e Don Cherry, como com Sun Ra, Conrad Schnitzler, em zonas ambientais de ressonâncias cósmicas.

GASTR DEL SOL
Upgrade & Afterlife

“Camoufleur” poderá ser o álbum da iluminação, mas “Upgrade & Afterlife” é aquele que mais longe transporta a candeia dos Faust pelas grutas do inexplorado. Com John Fahey a servir de guia à guitarra e Tony Conrad e LaMonte Young a ensinarem que pode ser necessário todo o tempo do mundo até se descobrir que da repetição pode nascer a luz.

ISOTOPE 217º
The Unstable Molecule

O jazz rock psicadélico e indolente dos jardineiros de Canterbury pode não fazer parte das suas conjeturas, mas a verdade é que os Isotope 217º redescobriram o mesmo sentido de melodia, a afetação diletante e o gosto pela transgressão dos cânones, dos National Health, Hatfield and the North, Nucleus ou Isotope, numa música onde o jazz e a eletrónica correm com um swing quase infantil. E o fraseado “cool” do trompete e do trombone enviam “The Unstable Molecule” para as memórias de Miles Davis de “The Silent Way”.

JIM O’ROURKE
Bad Timing

Um dos gurus de Chicago, em plena fase de transição do hermetismo “faustiano” dos primeiros álbuns para a pop falsamente inocente e por muitos odiada do posterior “Eureka!”. Há melodias, como estas, que nascem tristes e doentes. Como as de Robert Wyatt.

ROME
Rome

Cada audição revela uma esquina diferente dos vários caminhos trilhados por esta banda da primeira geração do pós-rock. Com ênfase no ruído, na eletrónica visceral e num tribalismo electro que evoca as velhas invocações a um demónio sem nome da velha guarda da editora ESP.

STEPHEN PRINA
Push Comes to Love

Antes dos The Sea and Cake dizerem “sim” em francês, já Stephen Prina, dos The Red Krayola, introduzira o Verão e a delicadeza fonética num álbum de canções com a textura de nuvens que tanto carregam a chuva de um chá das cinco em Canterbury como dão a mão à garota de uma imaginária Ipanema. Com a música das palavras a conduzir a dança.

TORTOISE
Millions now Living Will never Die

O álbum que deu credibilidade a uma invenção, o pós-rock, que outros arrastaram pelas ruas do tédio e da amargura. O experimentalismo e a ousadia num álbum de eletrónica em estados de alerta, sem fronteiras que não as da própria música. “Millions” entrou para o grupo dos “que nunca morrem” e fez de novo Chicago o centro do mundo.

VANDERMARK 5
Target or Flag

Hoje aclamado como um dos maiores saxofonistas da nova geração, Ken Vandermark cultiva a musculatura e o fraseado sem papas na língua, aqui num projeto que não desdenha o rock sem as câmaras de magia da estética da editora Recommended.

E ainda:

AERIAL M Post-Global Music
BOBBY COM Rise Up!
BROKEBACK Field Recordings from the Cook Country Water Table
CUL DE SAC Crushes to Light, Minutes to its Fall
ELEVENTH DREAM DAY Eight
THE FOR CARNATION The For Carnation
FREAKWATER End Time
JOHN MCENTIRE Reach the Rock
THE LONESOME ORGANIST Cavalcade
SAM PREKOP Sam Prekop
SLINT Spiderland
THE SEA AND CAKE Oui
TOWN & COUNTRY Decoration Day

Gastr Del Sol – Camoufleur (conj.)

06.03.1998
Revolution no. 10
Gastr Del Sol
Camoufleur (9)
Domino, distri. Música Alternativa

LINK

Tortoise
TNT (8)
City Slang, distri. Música Alternativa
Jim O’Rourke e John McEntire, respectivamente mentores dos projectos Gastr Del Sol e Tortoise, da cena pós-rock de Chicago, nunca esconderam as suas influências. Pelo contrário, assumiram-nas e integraram-nas numa música cuja originalidade é inquestionável.
O mais recente e, provavelmente, derradeiro trabalho dos Gastr Del Sol, já que JimO’Rourke deixou o grupo depois da gravação de “Camoufleur”, vem mesmo acompanhado por uma lista de influências prévias, musicais e não só, e por outra de “novas influências que se revelam”. Assim, a Derek Bailey, John Cage, John Fahey, algoritmos, e à “matéria dos pesadelos” anteriores, juntaram-se Brian Wilson, Scott Walker, o Vietname, e o “material suave dos sonhos”. Claro que nesta estratégia de desocultação está implícita uma carga de ironia e que sob a aparência de clarificação se esconde o seu oposto, na medida em que o óbvio e a citação directa (exceptuando, talvez, John Fahey, no álbum a solo de O’Rourke, “Bad Timing”) não fazem propriamente parte do léxico consciente dos Gastr Del Sol.
Retenha-se, contudo, a transição vocabular de “pesadelo” para “sonho” e a inclusão de Brian Wilson (já que Scott Walker facilmente se pode reivindicar como senhorio do obscurantismo…) no índice de influências. É que “Camoufleur”, ao contrário de anteriores trabalhos do grupo, bastante mais experimentais, pretende ser, nos seus movimentos tresloucados, um disco pop, da mesma maneira que os Faust (os quais, recorde-se, o próprio Jim O’Rourke relançou na estranha simbiose que é “Rien”) baralhavam este conceito, quando abriam o seu álbum de estreia com segmentos retorcidos da música dos Beatles e dos Stones para, mais à frente, se embebedarem com as harmonias vocais dos Beach Boys.
“Camoufleur” é, do princípio ao fim, um jogo de reconhecimentos e descolagens, de falsas pistas e de labirintos. Quando julgamos ter encontrado uma melodia estável, somos arrastados para o interior de um vórtice escuro de sons estranhos afastados de qualquer conceito próximo da pop. O álbum começa com “Seasons reverse”, algo semelhante à bossa nova como costuma ser recriada por Arto Lindsay, passa por uma espécie de ensaio vocal dos Beach Boys, em “Blues subtitled no sense of wonder”, e termina com “Bauchredner”, progressão minimalista de guitarra acústica que passa por uma cadência amrtelada de confluência entre Tony Conrad e os Neu!, para finalmente desembocar numa nuvem de sopros em suspensão em que se cruzam múltiplas melodias sobre as quais paira o vulto dos Faust. Pelo meio, o caminho está cheio de armadilhas e pontos de intersecção: guitarras processadas segundo as técnicas usadas por Klaus Schulze em “Black Dance”, órgãos de cinema, fanfarras chinesas (“Black Horse”), ruídos tridimensionais, enterros sucessivos de canções que a cada instante se reinventam, New Orleans, John Philip-Sousa e Canterbury passados pelo crivo de “Ruth Is Stranger Than Richard”, de Robert Wyatt (“Each Dream is an example”).
O círculo de Canterbury, depois do “krautrock”, parece ser, de resto, um territótio de crescente ocupação pelo pós-rock, ou “música intuitiva”, como alguns dos músicos implicados no movimento passaram a autocatalogar-se.
É o caso, também, dos Tortoise que no seu novo álbum apostaram numa sonoridade mais “light” que a dos dois primeiros álbuns, entrando mesmo em rota de colisão com algumas das premissas avançadas no anterior “Million Now Living Will Never Die”. E se referimos a influência da escola de Canterbury é porque encontramos em “TNT” um mesmo tipo de abordagem “leve” (nem que seja apenas na aparência) do som e porque um tema como “The suspension bridge at Igauzú falls” apresenta exactamente o mesmo tipo de progressões harmónicas empregues por grupos como os Hatfield and the North e National Health.
“TNT” nada tem de explosivo. Apenas o título-tema, remetendo não para o álbum anterior, mas para o disco de estreia do grupo, com o seu nevoeiro de guitarras desfocadas, se cola ao passado, apontando todo o resto para que “TNT” possa significar a sigla de “Tortoise or not Tortoise”. As influências são aqui mais visíveis à superfície do que nos Gastr Del Sol. O caso mais gritante é o de Steve Reich que se diria decalcado de álbuns como “Music for 18 Musicians” ou “Six Marimbas” em “Ten-day interval” e “Four-day interval”. “Swung from the gutters” lembra o progressivo “cool” do desconhecido (mas não para Jimi Hendrix…) teclista sueco, Bo Hansson. As guitarras planantes de “The Equator” não disfarçam a audição da fase recente da obra de Manuel Gottsching, ex-Ash Ra Temple. O contacto assíduo com os Stereolab faz-se sentir em “In Sarah, Mencken, Christ and Beethoven there were women and men” (curiosamente o título de um álbum de outro minimalista, Robert Ashley…). “I set my face to the hillside” é “easy listening” manchado pelas emoções estragadas de Pascal Comelade e, de novo, encaixando na maquinaria suave dos Stereolab. Ninguém julgue, porém, que “TNT” se resume a um livro de História. Cada tema é uma entidade mutante em permanente estado de inquietação, abrigando no seu seio as sementes do que poderiam ser múltiplas canções.
Jim O’Rourke e John McEntire, além de músicos, são melómanos, pessoas que gostam de ouvir música, que conhecem o passado e as suas várias linhas de evolução. É esta tensão, entre o antagonismo e a continuidade, que coloca quer os Gastr Del Sol quer os Tortoise na dianteira de um movimento que eles próprios iniciaram, grangeando-lhes, ao mesmo tempo, o estatuto de clássicos.
Para já, os primeiros souberam parar no preciso momento em que terão atingido o seu ponto mais alto, enquanto os segundos continuam a dar mostras de uma invejável capacidade de auto-regeneração. “Camoufleur” e “TNT” constituem a prova de que, afinal, o rock não está morto, mas tão-só a renascer com um corpo e uma alma novos. “Revolution no. 9”, dos Beatles, era o quê?

Coleccione Outros Cromos De “Música Intuitiva”
Amp, Bardo Pond, Bill Ding, Bowery Electric, C Clamp, Cul de Sac, Dazzling Killmen, Doldrums, Don Caballero, Earth, Eight Frozen Modules, Flying Saucer Attack, Füxa, Fridge, Ganger, Him, Hovercraft, Isotope 217º, Jessamine, Kante, Kreidler, Labradford, Low, Magnog, Mouse On Mars, Neutral Milk Hotel, Olivia Tremor Control, Rome, Run On, Sabalon Glitz, The Sea & The Cake, Seefeel, Shabotinski, Six Finger Satellite, Space Needle, Stars Of The Lid, Stereolab, Tarwater, Tone Rec, To Rococo Rot, Trans AM, Ui, Ulan Bator, Ween, Windsor For The Derby, Workshop…