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Anja Garbarek – “Como Um Blues Europeu” (Entrevista)

Y 16|MARÇO|2001
anja garbarek|música

Um olá e um adeus. Assim define Anja Garbarek Smiling & Waving, jardim de acenos ao passado e ao futuro, à pop e à eletrónica, nas sombras de uma melancolia europeia.


como um blues europeu



Filha de pai ilustre, o saxofonista Jan Garbarek, figura de proa do catálogo ECM, Anja Garbarek mudou-se recentemente para Londres, onde vive com o seu marido inglês. Sem renegar –antes pelo contrário – a experiência e os ensinamentos do pai, aos 30 anos, Anja desbrava o seu próprio caminho, encetado com os álbuns “Velkommen Inn” e “Baloon Mood”, este último o primeiro a ter distribuição em Portugal.
“A única regra que vale a pena seguir é aquela que diz que não há regra nenhuma que valha a pena seguir” disse-lhe o pai. Paradoxo lógico. Paradoxo criativo. Que Anja tem seguido à risca. E nem sequer vale a pena dar ouvidos às opiniões alheias. “Houve quem achasse o meu primeiro álbum demasiado ‘poppy’ e quem o acusasse de ser demasiado ‘leftfield’”, suspira.
“Smiling & Waving” foi gravado em Inglaterra, mas as ideias nasceram na Noruega. “Quando cheguei a Londres achei muito confuso, existe uma quantidade de informação em excesso. É uma cidade difícil de penetrar e a princípio senti falta da proximidade do campo… e da neve. Na Noruega é tudo mais calmo e propício à meditação, podemos ouvir-nos melhor a nós próprios. E eu precisava de ouvir melhor, não tanto o que vem de fora, mas o lado de dentro, o meu eu verdadeiro”.
Até chegar a essa estrada que conduz ao interior, Anja cresceu a ouvir os discos do pai. Miles Davis, sobretudo, mas também Erik Satie, Laurie Anderson e um dos álbuns que mais a impressionou, “My Life in the Bush of Ghosts”, de Brian Eno com David Byrne, título que bem poderia ser usado para definir as imagens e refrações sonoras de “Smiling & Waving”, lugar de encontro de evocações vocais em que a memória aclara os nomes de Annette Peacock, Stina Nordenstan ou de Alison Goldfrapp, mas onde se movimenta algo indefenível e possuidor de um brilho estranho. “Como uma casa grande com muitas divisões”. “A casa de Anja Garbarek tem salas e quartos espaçosos e arejados, mas também caves húmidas e sótãos escuros e poeirentos cheios de recantos onde se ocultam baús com tesouros e há monstros prontos a saltar de dentro do armário.
Hoje, Anja Garbarek “não perde tempo nas lojas de discos, na secção pop”. Gosta de Kate Bush, Laurie Anderson, João Gilberto, António Carlos Jobim e… dos Residents. “Conhece-os? Uau! Praticamente já deixei de os mencionar, perguntam-me sempre: Quem?”.

Melancolia. Como os Residents, Anja Garbarek cultiva os filmes e a dramaturgia da imaginação. Aos 16 anos entrou para uma escola de teatro. Aí aprendeu a adaptar a voz aos seus sonhos. A personagem nasceu com a máscara grega da tristeza. Ela achou que a culpa era de uma certa “melancolia escandinava”. Hoje descobriu que, além de sua, é uma melancolia mais vasta: “uma melancolia europeia”. Londres ensinou-a a ver assim. “A tristeza no rosto das pessoas, o seu ar assustado, perante a abundância de tudo. Um ‘pathos’”. Destino trágico (ou dramático, o drama tem resolução, ao contrário da tragédia) da Europa que os antigos gregos exorcizavam através do teatro. A cantora e compositora norueguesa, com um olhar simultaneamente próximo (de europeia), e distante (de norueguesa) observa, tentando tirar partido desses “blues” do Ocidente europeu mas também procurando vislumbrar o outro lado. “Gosto de imagens dramáticas, mas procuro sentir além delas, a esperança e a alegria, e de captar a magia”.
Robert Wyatt, presente no dueto vocal “The diver” – “nunca tínhamos ouvido a música um do outro, mandei-lhe uma cassete e ele, que é sempre muito seletivo, aceitou colaborar” – foi um dos artistas convidados de “Smiling & Waving” sensível a esta magia. Mark Hollis, dos Talk Talk (encontrámo-nos numa loja de discos”), que a apresentou a Robert Wyatt, foi outro. E Steve Jansen e Richard Barbieri, dois ex-Japan, também. “Um círculo fechado de amigos”, como a norueguesa lhes chama.
Eletrónica espacial, grooves umas vezes galácticos outras recolhidos no conforto doméstico, uma voz que percorre infatigável os corredores interiores deixando um rasto de ecos atrás de si. Um bosque escuro. Neve e estrelas. É assim “Smiling & Waving”, palco de mil metamorfoses, imagens e sensações materializadas num dos grandes álbuns do ano.
Neste momento Anja Garbarek prepara a transposição de “Smiling & Waving” para os espetáculos ao vivo. Não vai ser fácil. “No disco há uma secção de cordas composta por 20 elementos… e quero usar os computadores”. Violinos e programações. Futuro e tradição. Propusemos uma frase para ilustrar o desenho: uma criança a passear num mundo de fantasmas de máquinas. Anja aceita o quadro. O álbum tem uma parte dela e uma parte do mundo. “É ao mesmo tempo um olá e um adeus”. A quem? – perguntamos. Ri-se. “Vocês jornalistas querem sempre saber tudo!”

do norte, a barbárie esclarecida

O recrutamento de Anja Garbarek para as fileiras da multinacional Virgin reflete a capacidade de penetração da música nórdica no mercado internacional, fenómeno que já vem de longe e encontra ramificações na totalidade de estilos musicais contemporâneos. No jazz, na folk, na pop, no rock, na eletrónica ou na música de dança são vários os artistas oriundos da Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca que ao longo das últimas quatro décadas têm semeado a originalidade nos sons do velho continente.
Se nos anos 70 os suecos Abba são os expoentes de uma pop que soube transitar da montra do Festival da Canção para a aceitação universal, a eles se devendo, além da propaganda feita ao traseiro de uma das vocalistas, a aceitação da pop-lixo como produto vendável a uma escala planetária, já antes, nos anos 60, os Shocking Blue, com “Venus”, ou os Tee-Set, com “Ma belle amie”, ambos de um país um bocadinho mais para Sul, a Holanda, tinham como funcionado como gazuas para abrir o top inglês ao resto da Europa – ainda que nestes casos, a veia europop estivesse ainda disfarçada sob o colorido dos trajes hippies e o odor do haxe.
É nos “seventies” que a oferta musical com o selo das terras do Norte se diversifica. Na editora alemão ECM nasce uma escola de jazz ambiental e classicista, personificada por compositores e solistas como Terje Rypdal, Jan Garbarek (pai de Anja) e Palle Danielssen. A folk, sobretudo na Finlândia, prepara na Academia Sibelius, de Helsínquia, ou no Instituto Kansanmusiikki – um e outro proporcionando aos músicos uma severa aprendizagem clássica – a grande invasão que explodirá na década de 90 sob a liderança dos Hedningarna, extraordinariamente bem acolitados pelos Filarfolket, Den Fule, Tallari, JPP, Garmarna, Ottopasuuna, Koinurit, Loituma, Niekku, Pirnales, Sirmakka, Troka, Väsen ou Värttinä.
Também no campo da música progressiva se assiste ao aparecimento de bandas como os dinamarqueses Burnin’ Red Ivanhoe, os suecos Samla Mammas Manna (integrantes do movimento Rock in Opposition com outras bandas continentais), os noruegueses Day of Phoenix e os finlandeses Wigwam e Tasavallan Presidenti, com sonoridades onde é visível a influência do jazz. Todas elas assinam por editoras continentais, o que torna mais fácil a sua divulgação.
Na era da música industrial e de todos os tribalismos eletrónicos dos anos 80, a resposta é dada pelos suecos Omala, enquanto a editora Cold Meat Industry faz as vezes de talhante, oferecendo produtos ritualísticos onde nórdico se confunde com mórbido. Enquanto isso, a tradição pop encontra continuação nas músicas eivadas de nostalgia dos Fra Lippo Lippi e Thirteen Moons.
Chegados aos anos 90 e à viragem do século, a eletrónica kratwerkiana pós-industrial dos finlandeses Pan Sonic esmaga com a sua arte do massacre, sem chegarem a assustar Jimi Tenor e Jay Jay Johanson que cultivam uma mescla de kitsch, exotismo e futurismo, criando sonoridades em equilíbrio no fio instável que liga o “easy listening” ao experimentalismo e a pop à música de variedades.
Se desviarmos o ouvido para a música de dança, encontramos Bobby Hughes Experience, Bobby Trafalgar, YMC ou Quant, e editoras como a Svek e April. E se aqui será mais difícil encontrar traços especificamente nórdicos (passando ao lado de uma inusitada preferência pelo nome Bobby…), é ainda a profusão de sonoridades disponíveis a prova de que no Norte da Europa, sem transbordar já a barbárie, cada nova glaciação põe o resto do continente a ferro e fogo.



Anja Garbarek – “Smiling & Waving”

Y 2|FEVEREIRO|2001
escolhas|discos


ANJA GARBAREK
Smiling & Waving
Virgin, distri. EMI – VC
8|10



Depois de um promissor “Balloon Mood”, a filha do saxofonista de jazz Jan Garbarek apresenta-se em “Smiling & Waving” como a sucessora de Annette Peacock, na inteligência e na sensualidade do canto mas também nas ondulações swingantes. Mas enquanto a autora de “X-Dreams” se vem aproximando de uma depuração nas margens do silêncio, a norueguesa reveste-se de orquestrações eletrónicas próximas da pop ou do drum ‘n’ bass (“Big mouth”), ora com a textura de veludo de Goldfrapp, ora regando o jardim secreto de Stina Nordenstam. Com Mark Hollis (Talk Talk), Steve Jansen e Richard Barbieri (dois ex-Japan), “Smiling & Waving” descobre o outro lado do horizonte em “The diver”, dueto com Robert Wyatt que dá uma dimensão nova ao termo “nostalgia” – “com um pouco de melancolia escandinava”, diz ela.



Anja Garbarek – Balloon

16.07.1999
Anja Garbarek
Balloon (7)
RCA, distri. BMG

anjiagarbarek_baloon

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pwd: ultimovicio

Não há que enganar, Anja é mesmo filha de Jan Garbarek, o saxofonista norueguês que começou pelo jazz, derivou para a “new age” e acabou por despejar o açucareiro nos insuspeitos Hilliard Ensemble. E se é verdade que filho de peixe sabe nadar isso não significa que nadem no mesmo estilo. Anja mostra neste seu álbum de estreia estar ao corrente de algumas correntes em voga, distribuindo a sua voz fora do vulgar por um classicismo inspirado em Mathilde Santing, um ambientalismo pastoril regado no jardim de Virginia Astley, a infantilidade simulada de uma Stina Nordensteem e o mesmo culto da originalidade, trabalhada em laboratório, de Björk. Se no tema inicial a voz de Anja sugere a segurança e o mistério de Mathilde Santing, logo a seguir, em “I.C.U”, a cantora norueguesa procede à desmontagem do hip-hop, colorindo-o com uma orquestra de cordas em pano de fundo e uma vocalização onde Anna Homler, Laura Anderson e um anjo de Boticelli se confundem. “Picking up pieces” e “The Cabinet” aliam a herança estética do hip-hop com um experimentalismo sem fronteiras. O primeiro é uma união de “loops”, barulho de máquinas e uma emissão de rádios em ondas-curtas, com Holger Czukay no horizonte. O segundo abre-se em claustros de murmúrios e reverba, lembrando uma banda como os Double-X-Project que volta a intrometer-se no mais jazzístico “She Collects (Stuff Like That)”. “Strange Noises” agradará aos adoradores de Meira Asher e “The Telescope Man Says” leva Virginia Astley num foguetão até uma estação espacial, na mesma órbita do tema final, “Balloon Moon”, lá muito no alto.