Paco de Lucia + Vicente Amigo – “O Povo É Quem Mais Ordena”

rádio e televisão >> sexta-feira, 19.02.1993

DESTAQUE


O Povo É Quem Mais Ordena



AGORA PODE ESCOLHER-SE entre uma coisa e outra. Opções que a RTP põe à consideração do espectador, em matéria de programação. É o poder nas mãos do povo. O 25 de Abril na 5 de Outubro. Liberdade! Liberdade! Mas atenção, só até certo ponto. Continua a ser a direcção de programas a impor as regras. Não há terceiras escolhas. Devia poder-se ir mais longe nos temas oferecidos ao escrutínio popular. Por exemplo, um programa do tipo “Quem deve acabar, RTP ou SIC? A escolha é sua!”. Isso é que era divertido. Assim uma espécie de Nintendo em directo e com responsabilidades, e sermos nós a carregar no botão fatídico – Pimba! – o povo é quem mais ordena – acaba-se já com a outra! Democracia audiovisual é isto mesmo.
Mas por enquanto tal não é ainda possível. Cinjamo-nos pois ao que existe e a televisão nos oferece para decidir. Neste caso com música. Flamenco, mais precisamente. Paco de Lucia e Vicente Amigo são dois guitarristas que o programa “Últimas notas” põe esta noite em confronto. Um deles vai vencer o outro. Um deles vai ser visto por milhões. O outro será remetido para a poeira dos arquivos. Assim se fomentam ódios entre irmãos. Por mim escolhia o Manitas.
Seja como for aqui vai o currículo abreviado de ambos, para o ajudar a escolher com consciência, em plena paz de espírito, num Portugal europeu e moderno. O povo é sereno. E lembre-se que o voto é secreto.
Paco de Lucia é um dos maiores guitarristas de flamenco da actualidade. De origem cigana, desde muito novo começou a estudar guitarra, até se tornar no “virtuose” que hoje encanta as plateias em todo o mundo. Desenvolveu uma técnica particular no instrumento, que aprendeu com os mestres, e um estilo caracterizado pela fusão do flamenco com o jazz. Improvisador nato, já actuou em Portugal onde obteve um êxito assinalável. É uma lenda viva da guitarra.
Vicente Amigo, por seu lado, é um dos maiores guitarristas de flamenco da actualidade. De origem cigana, desde muito novo começou a estudar guitarra, até se tornar no “vituose” que hoje encanta as plateias de todo o mundo. Desenvolveu uma técnica particular no instrumento, que aprendeu com os mestres, e um estilo caracterizado pela fusão do flamenco com o jazz. Improvisador nato, já actuou em Portugal, onde obteve um êxito assinalável. É uma lenda viva da guitarra.
Agora escolha.
Últimas Notas
TV 2, às 00h40

Vários – “Weird Nightmare”

pop rock >> quarta-feira, 17.02.1993

NOVOS LANÇAMENTOS POP / ROCK

MINGUS E OS BACANAIS


VÁRIOS
Weird Nightmare
CD Columbia, distri. Sony Music



Francis Thumm, discípulo do iconoclasta Harry Partch, define do seguinte modo os pontos em comum entre o seu mestre e Charlie Mingus: “Cada um deles era capaz de combinar a precisão de um trabalho de ‘ensemble’ com a entrega e o abandono de um bacanal.”
Hal Wilner organizou o encontro e o festim fantasmáticos (especula-se quanto à possibilidade de um encontro de facto, algures na Califórnia, no princípio do século) entre os estes dois génios. Depois de “Amarcord Nino Rotta” (compositor favorito de Fellini), “That’s the way I feel now – A Tribute to Thelonius Monk”, “Lost in the Stars – The Musico f Kurt Weill” e “Stay Awake – Various Interpretations of Music from Vintage Disney Films”, Winner presta agora homenagem ao mito que Joni Mitchell já havia celebrado no duplo “Mingus”, gravado no ano da morte do compositor. Hal Winner fá-lo da melhor forma e após maturação lenta de um projecto que germinou a partir de uma selecção de gravações antigas da editora Folkways (algumas das quais serviram de inspiração às célebres colagens musicais de Mingus): através da reinvenção de um universo temático riquíssimo e da apropriação possível de um estado de espírito.
Mingus, falecido em 1979, foi um explorador de sons e sentidos. Nas décadas de 50, 60 e 70, ajudou a dar nome e consistência às fusões “Third Stream” e ao “free”, integrando na sua música elementos “étnicos” do Mediterrâneo, da América Latina e do Médio Oriente. O bacanal que Thumm refere é, no seu caso, esta mistura orgânica de formas musicais e vivências que Mingus trabalhou e combinou até ao fim. Nele, a composição era indissociável dos outros interesses que cultivava na vida: mulheres, comida, pintura, literatura, percepção extra-sensorial, meditação, teologia, psicoterapia, política, relações inter-raciais…
Mas se Mingus é o arquitecto deste “estranho pesadelo”, Harry Partch é o seu artesão (um músico “seduzido pela carpintaria”, como ele próprio se definiu). Tão ou mais excêntrico que Mingus, Partch – falecido em 1974, cinco anos antes do autor de “Ah Um” – inventou para si uma notação musical própria (vale a pena escutar os resultados em obras como “Petals Fell on Petaluma”. “Delusions of the Fury”, “Barstowl Daphne of the Dunes” e “The Bewitched”, esta última com reedição recente em compacto) que o obrigou a idealizar e fabricar novos instrumentos: “Cloud chamber bowls”, “marimba eroica”, “Chromelodeon II”, “Harmonic canon”, “Surrogate kithara”, “cone gong”, “Crychord”…
Instrumentos que Hal Winner foi buscar ao museu e que em “Weird Nightmare”, foram utilizados pela primeira vez num disco sem a autoria do seu inventor.
Faltava escolher os intérpretes. À semelhança dos anteriores projectos de Winner, o grupo de “Weird Nightmares” é constituído por uma panóplia de músicos oriundos de esferas musicais distintas, unidos numa mesma sensibilidade e devoção ao homenageado. Há um núcleo a quem foi entregue a função de sustentáculo sonoro, formado por Art Baron, Bill Frisell, Greg Cohen, Don Alias e Michael Blair e uma constelação de convidados, com a função de narradores – vocalistas – instrumentistas ocasionais: Henry Threadgill, Marc Ribot, Robbie Robertson, Don Byron, Elvis Costello, Vernon Reid, Henry Rollins, Charlie Watts, Keith Richards, Bob Stewart, Tony Trischka, Chuck D, Bobby Previte, Diamanda Galas, Leonard Cohen, Robert Quine, Ray Davies e Dr. John, entre muitos outros.
A que é que soa semelhante festim de sons, referências e ideias? Próximo do cruzamento entre Stravinsky, John Zorn e os Biota (“Work song”, por exemplo, habita esse proto-oceano onde os ruídos se revolvem na procura da harmonia) e Charlie Mingus, é claro. O ambiente é quase sempre soturno, preso às complexidades e exigências da pauta, interrompido por emanações “bluegrass”, um swing a que falta o pé ou um mundo em colapso. Impressionista de um modo espectral, desprende-se de “Weird Nightmares” uma sensação de profundidade abissal, de águas turvas habitadas por seres inomináveis. O título está perfeito. (8)

Noirin Ni Riain & Monks Of Glenstal – “Vox De Nube”

pop rock >> quarta-feira, 17.02.1993

WORLD

A LUZ SOBRE A NUVEM


NOIRIN NI RIAIN & MONKS OF GLENSTAL
Vox De Nube
CD Gael-Linn, distri. VGM



Não é uma metáfora. Há vozes que falam verdadeiramente com Deus. As búlgaras, por exemplo, e não só. Outras vezes é a própria voz de Deus que se deixa ouvir através da voz humana, feminina e masculina. “Vox de Nube” (“a voz que vem da nuvem”), terceira parte de uma trilogia iniciada com “Vox Populi – Good People All” e prosseguida com “Vox Clamatis in Deserto (Caoineadh na Maighdine)”, apresenta três aspectos da comunicação possível entre o humano e o divino. Três vias de manifestação: a terra, o povo e a nuvem, símbolo do véu que ao mesmo tempo oculta e revela o Verbo.
“Vox de Nube” foca este último vértice do triângulo e inspira-se directamente na tradição do cantochão (designação do cântico gregoriano na Europa Latina), bem como no acto contemplativo dos místicos Hildegard (monge beneditino do Mosteiro de Bingen, séc. XII) e, já no nosso século, do suíço Joa Bolendas. Quem vier à procura de danças, gaitas-de-foles, violinos e “bodhrans” pode passar à crítica seguinte. Mas, antes de se ir embora, fique já agora a saber que é aqui que pode encontrar o contraponto celestial ao panteísmo que anima grande parte da música tradicional de raiz celta. “Vox de Nube” é música litúrgica, sagrada. A voz do silêncio e do ar, por oposição complementar às vozes do mar, da pedra e da floresta.
Nisto que a nuvem do céu nos diz, procura-se ver para além do véu. Escreve-se na contracapa que a “a nossa visão do canto ocidental aparece filtrado por mil anos de transcrições manuscritas”. Tradição milenar que nesta perspectiva pode ser considerada como uma “subversão” de uma vibração que nenhuma notação pode traduzir. “Vox de Nube” busca então para além das aparências – essa voz que é o “coração de uma coisa selvagem” e uma consciência aprofundada da música tomada como “sopro original”. Gravado na capela de Honan, no condado de Cork, “Vox de Nube” ergue-se e ergue-nos às alturas. Transportam-nos o timbre de anjo de Nóirín Ní Riain, que os sete monges cantores do Mosteiro de Glenstal ajudam a impulsionar para o alto. Enquanto a estrutura de “Vox Populi” segue o modelo de uma missa católica, “Vox de Nube” reza e canta próximo da natureza, entre os seus sons e fragrâncias, ambas as vozes irmanadas em idêntica tenativa de ligação da terra ao seu coração primordial, que já foi e voltará a ser (e sempre tem sido: o erro, a queda, foi e é de visão…), no degrau seguinte – o paraíso.
Nóirin canta em gaélico, “a capella” ou acompanhada pela escola vocal dos religiosos de Glenstal. Por vezes sobre “drones” criadas por um “supeti” (órgão-de-foles indiano), uma caixa “sruti” ou uma “symphony” (ou “symphonia”, sanfona medieval). Os temas são na totalidade vocacionados para provocar a elevação espiritual: canções da tradição cristã baseadas no Velho Testamento, versões do “Pai Nosso”, hinos de Joa Bolendas, o visionário suíço mencionado no início, baladas tradicionais irlandesas de inspiração religiosa, um “Kyrie Eleison” e outros temas do místico Hildegard, cânticos de louvor à Virgem Maria e a Maria Madalena, uma “carol” (canção de Natal”) irlandesa do séc. XIII, uma composição de Peadar Ó Riada, entre outros. O efeito de exposição prolongada à Luz (mesmo filtrada pela nuvem) pode ser fulminante. Assim o permitam o coração flamejante e a mente desperta. Ou a fé. (10)