Arquivo da Categoria: Artigos 1994

Miguel Teixeira (Em Público | Dossier)

pop rock >> quarta-feira >> 15.06.1994
EM PÚBLICO


MIGUEL TEIXEIRA *



Qual é o seu percurso anterior aos Toque de Caixa?
Comecei a tocar com 14, 15 anos, e a ouvir muita música sul-americana, toquei nalguns grupos que praticavam este tipo de música. Entretanto, comecei a interessar-me pela música tradicional portuguesa, com o Zeca Afonso e o Adriano – convém dizer que tenho 36 anos… Toquei também num grupo chamado Siga a Rusga, que durou dez anos e lançou dois discos. O Siga a Rusga acabou e fui convidado pelo Tentúgal para fazer parte da segunda formação dos Vai de Rodam e, quase ao mesmo tempo, para integrar a formação do actual Toque de Caixa.

De uma vez por todas, aceita a comparação que muita gente faz dos Toque de Caixa com os Vai de Roda?
Há uma confusão. O estigma de dois grupos serem idênticos em termos de arranjos. Mas as pessoas não se podem esquecer de que os Vai de Roda, para além do director musical comum com o Toque de Caixa que era o Tentúgal, tinha três músicos que agora estão no Toque de Caixa. Pessoas com formação musical e a tendência para pôr a sua maneira de tocar no grupo. No meu caso, a minha forma de tocar esteve presente no Vai de Roda e em particular no álbum “Terreiro das Bruxas” quando se começou a fazer arranjos baseados na música sul-americana.

Tanto quanto se sabe as relações actuais entre os dois grupos não são as melhores. Quer explicar as razões por que isso acontece?
A minha relação pessoal com o Tentúgal não é boa nem má, é de “bom dia, boa tarde, estás bom, pouco gosto em ver-te e poucas vezes”… Houve coisas que se passaram em relação ao Manuel Tentúgal e ao Vai de Roda, nomeadamente com alguns elementos do grupo que não foram muito correctos para com o actual Toque de Caixa. Por uma razão ou por outra, eles não tiveram um comportamento à altura, nem de músicos, nem de amigos que éramos.
O problema concreto surgiu porque ensaiávamos todos no mesmo sítio e, a determinada altura, começaram a surgir problemas de dinheiro, enfim, um problema de afirmação de um grupo perante o outro. O Manuel Tentúgal achou que os músicos deviam tocar ou num grupo ou noutro e que o local de ensaio deveria ser apenas de um deles. Houve uma opção do Bilão, que na altura era o dono do espaço onde ensaiávamos e puseram o Toque de Caixa lá para fora. Não aceitámos isso com muito bons olhos e daí as relações terem esfriado.

O vosso primeiro álbum, “Histórias do Som”, pode considerar-se bastante experimental, dentro do campo da chamada música de raiz tradicional. Como se processa a relação do grupo com a tradição?
Não é nada complicada. Como já disse, o meu percurso tem a ver com a música tradicional portuguesa e da América latina. No grupo, procuramos dar um determinado cariz à música tradicional, com um tipo de arranjos que estejam de acordo com a nossa forma de sentir actual. Não estamos muito preocupados em pegar em temas tradicionais e em trata-los de forma a que as pessoas achem ou não fiel. Embora neste campo tenhamos muita coisa recolhida, desde material escrito em pauta, recolhido de livros, coisas que vamos buscar aos alfarrabistas, muito antigas e que pouca gente conhece, até gravações que tanto podem ser feitas por nós em locais que visitamos como de gravações pré-existentes, caso dos discos do Giacometti.

No seu caso e na qualidade de principal compositor do grupo, como articula a sua escrita com o material tradicional?
Há sempre qualquer coisa naquilo que componho que é “tradicional”, na forma que tenho de ver a música. É uma coisa que está dentro do corpo. Para além disso, há outro tipo de músicas que vão entrando…

Como a dos Penguin Café Orchestra, por exemplo, uma das influências óbvias do Toque de Caixa?
É capaz de ser normal porque é um grupo que, se repararmos bem, tem também uma influência – nomeadamente com a introdução do “Cuatro” – dos ritmos e baixos sul-americanos. É um tipo de música onde eu pessoalmente me sinto à vontade, porque o facto de ter tocado e ouvido durante tantos anos música sul-americana me dá um grande à-vontade em termos de tempos e contratempos – esse tipo de coisas. Ainda agora acabei de oferecer, como presente de aniversário a um dos membros do grupo – o Horácio -, um disco da Linda Ronstadt, da fase em que ela cantava música sul-americana. Sempre que posso, aprendo com os sul-americanos, nomeadamente em termos de ritmo instrumental.

Concorda que a música dos Toque de Caixa privilegia um certo classicismo formal, em detrimento da espontaneidade que, por regra, se associa aos grupos ligados À música tradicional?
Penso que ainda há muito pouco à-vontade… este é o primeiro disco gravado pelo Toque de Caixa. Além disso, o conceito de estúdio põe às pessoas um problema que é o de ter de trabalhar o mais depressa possível, porque o estúdio é caro. Nos grupos de música tradicional, isto torna-se ainda mais evidente. Sentimos que em estúdio somos mais pressionados. Fora isso, os arranjos que fazemos são igualmente para serem tocados em estúdio e ao vivo. É evidente que ao vivo as coisas resultam de outra forma. Por exemplo, no disco, o tema “Aula de Música”, com a miúda a cantar. Experimentámos duas vezes ao vivo e não resultou, porque a miúda não estava à vontade. Então passámos a ser nós a fazer essa parte, com um grande berreiro. O que, em estúdio, não resultou, porque ninguém conseguiu reproduzir esse ambiente de festa. Pelo contrário, em estúdio, a voz da miúda resultou perfeitamente.

Uma das características comuns a muitos grupos portugueses da vossa área é o número elevado de elementos dos grupos, como é o vosso caso. Na Irlanda, por exemplo, dois ou três chegam para fazer muito boa música. A que se deve tal facto? Não será uma dificuldade adicional? Ou, pelo contrário, serve para disfarçar insuficiências técnicas?
Sim, provoca algumas dificuldades, nomeadamente logísticas. Temos sempre o problema de sermos nove elementos, para ir a qualquer sítio. Mas é de facto um apanágio dos grupos portugueses, terem sete, oito músicos. Quanto ao aspecto de execução técnica, como sabe, nem o Toque de Caixa, nem a maioria dos grupos portugueses são formados por músicos profissionais. Daí não podermos ensaiar todos os dias, nem sequer dia sim dia não.
A esse nível, há de facto falta de ensaios, se levarmos em conta que um grupo profissional tem pelo menos que ensaiar todos os dias, estar agarrado ao instrumento umas horas por dia. Talvez seja essa uma das razões e nós tenhamos que nos apoiar, podendo haver um músico que colmata as dificuldades do outro. Mas não sei até que ponto isso não será um falso problema, porque dentro deste género de grupos existem muito bons instrumentistas. Mas ao vivo há de facto que ter mais cuidado, são muitas pessoas, com cabos, problemas de equilíbrio de som. Aí sim, é pior.

Como se explica que o Toque de Caixa seja um dos grupos portugueses ligados à música tradicional que mais actua nos estrangeiro?
A Etnia tem sido até agora uma das vias que nos tem permitido chegar mais facilmente ao estrangeiro. Mas temos tocado bastante em Espanha, ou em França, sem termos nada que ver com a Etnia. Temos os nossos canais privados e enviamos discos a pessoas que conhecemos e estão bem colocadas ao nível da organização de concertos e festivais. O facto de o Toque de Caixa ter uma postura agradável em palco talvez também ajude.

Depois de “Histórias de Som” têm já algum novo projecto em perspectiva?
Estamos a pensar muito seriamente em começar a gravar o segundo disco no início do ano que vem. Já estamos a fazer ensaios, a trabalhar nos arranjos. Só estamos à espera que a editora [Numérica, do Porto] em Janeiro dê o sim ou não.

* Director musical e multi-instrumentista dos Toque de Caixa que recentemente editaram o álbum “Histórias do Som” e actuaram com sucesso no Festival Intercéltico do Porto.

GNR – “GNR Apresentam Novo Guitarrista E Rui Reininho Mostra Nova Vocação – A Revelação De Um Guarda-Redes”

cultura >> sábado >> 11.06.1994

GNR Apresentam Novo Guitarrista E Rui Reininho Mostra Nova Vocação
A Revelação De Um Guarda-Redes

A juntar ao disco novo, “Sob Escuta”, os GNR têm também um novo guitarrista. Cantanhede foi o lugar escolhido para estrear a nova formação – que esteve para não se realizar – revelou uns GNR em forma, com o recém-chegado a dar cartas e Rui Reininho a somar aos seus dotes vocais os de guarda-redes.



Alexandre Manaia é o novo guitarrista dos GNR, entrando para o lugar de Zezé Garcia. Por este motivo, era aguardada com uma certa expectativa a estreia ao vivo do grupo com o novo recruta. Ela aconteceu na quinta-feira e a honra coube a Cantanhede e ao Clube de Futebol “Os Marialvas”, entidade promotora do concerto.
Quinta-feira (ou talvez seja mais correcto dizer, sexta), por volta da meia-noite, hora a que se iniciou a actuação do grupo, poucos seriam, dos cerca de três mil jovens presentes no campo de terra batida de “Os Marialvas”, aqueles que sabiam como se chamava o novo guitarrista. Num passatempo realizado de tarde por uma rádio local de Cantanhede, ninguém acertou o nome.
Com bilhetes a 1750 escudos, o espectáculo esteve quase para não acontecer. “Problemas técnicos”, segundo explicou um elemento da organização, motivaram o atraso. “Problemas de alimentação eléctrica”: um gerador que não funciona, lá se conseguiu arranjar um em bom estado, mas que também não funcionava porque não tinha gasóleo. E toda a gente sabe que um gerador sem gasóleo não gera. A coisa estava para demorar. Os músicos? Ainda iam jantar. Mais problemas de alimentação.
Cerca da meia-noite, com a chegada do gasóleo, tudo se resolveu e os GNR, pese embora a noite amena, foram recebidos com pouco entusiasmo por uma assistência constituída quase exclusivamente por adolescentes. Arranque em força com “Las Vagas”, logo seguido de “Dominó”, ambos os temas do novo álbum “Sob Escuta” que o grupo apresentou em Cantanhede, aos quais se viriam a juntar “Ciclones”, “+ vale nunca”, “Música de Ligeia”, “O costume” e “Costa Atlântica inevitável”, alternando com êxitos como “Efectivamente”, “Morte ao Sol” e “Pronúncia do Norte”.
Ficou a confirmação de que os GNR estão cada vez mais Pop “mastiga e deita fora” e profissionais. Por vezes, a música aproxima-se dos Supertramp (nas ocasiões em que é dominada pelo piano eléctrico de Telmo Marques), noutras sobressai o lado “kitsch” e melodramático, com Reininho a vestir a pele do “crooner” espremendo-se em romantismo, noutras ainda joga-se com a fonética do gozo e das letras, como aconteceu em “Homem mau”, a adaptação dos GNR de “All right now”, um tema dos anos 70 dos Free. Quanto a Alexandre Manaia, teve tempo e motivos de sobra para se divertir e executar sem constrangimentos solos na guitarra. O som actual dos GNR passa em grande parte por ele.
Rui Reininho assumiu-se em definitivo como um “entertainer”. Entre Bryan Ferry e Tony Silva (“obrigados, obrigados!”, repetiu por várias vezes no final das canções). Em Cantanhede, embora não estivesse propriamente esfuziante, mostrou o humor do costume, do subtil ao espalhafatoso. Durante “Música de Ligeia”, uma canção “triste”, como anunciou, sugeriu que se formassem pares de dança de meninos com meninas, ou outros, a partir de “desvios freudianos”. Apresentou Jorge Romão no “cabisbaixo eléctrico” e o teclista convidado, Telmo Marques, como eu “guru espiritual”. A dada altura, numa antecipação improvisada do próximo “Mundial” de futebol, lançou-se para o chão em espectaculares defesas a balões lançados para o palco pela assistência.
Outro momento interessante ocorreu durante a interpretação de “Vídeo-Maria” (com “Valsa dos detectives” e “Dunas”, um dos três “encores” da noite). Na parte em que Reininho cantava “atirem-me água fria”, o público respondeu à letra, esguichando sobre o vocalista garrafas de água mineral. Finalmente, a despedida com um “hare-krishna” cheio de devoção.
Passavam 20 minutos da uma da manhã quando os GNR puseram uma pedra sobre o assunto. Pouco mais de uma hora de concerto que, se não encheu as expectativas de ninguém – é preciso não esquecer que se tratava do início de rodagem – também não as defraudou. Quem pairava nas estrelas, findo o concerto, eram a Inês, 18 anos: “Adoro os GNR, adoro, adoro, adoro! Era capaz de ficar aqui dias.” E a Iolanda, 19: “Já vou há muitos anos a concertos do grupo, a vários sítios.” Ambas estudantes, esperaram mais de meia hora à porta dos camarins pelos autógrafos dos seus ídolos.
Já de madrugada, as atenções voltaram-se para um segundo palco instalado no recinto onde actuaram a Fan-farra Académica de Coimbra e os Omega, de Mourelos, Vil de Matos, estes ansiosos por estrearem o seu novo sistema de iluminação e tocarem as suas versões de canções de Fausto, Quim Barreiros e Soul Asylum.

(caixa)
“Parece O Sporting, O Benfica E O João Pinto”

ALEXANDRE MANAIA, é ponto assente, trocou de funções com Zezé Garcia, como guitarrista dos GNR. Até aqui nada de novo. Só que Manaia deixou a banda de Rui Veloso em vésperas de uma digressão deste músico. António Pinho, empresário de Veloso, já ameaçou com um processo, que não nos foi confirmado, dado que, por enquanto, prefere “não tecer mais comentários”. Por seu lado, Manaia, contactado pelo PÚBLICO no final da actuação dos GNR em Cantanhede, declarou que “obviamente tinha um compromisso com o Rui “, mas que, também “obviamente”, se pretendeu “desvincular dele”, embora “sempre cumprindo até à data todas as coisas”. “Sinto-me comprometido é com Rui Veloso e não com António Pinho”, disse o guitarrista, que garantiu ter tentado “fazer as coisas de maneira a que o Rui tivesse um mês ou mais para tentar arranjar outro músico”.
Certo é que Manaia se integrou perfeitamente nos GNR, tendo para tal ensaiado com os outros músicos “todos os dias durante duas semanas”. O músico até já faz comparações entre as suas novas funções e as que desempenhava com Rui Veloso: “Gosto de tocar guitarra como gostava de tocar piano com o Rui. Tenho imenso prazer em tocar o que quer que seja. Lembro-me de, com o Rui, numa digressão há três ou quatro anos, ter tocado chocalho nalgumas músicas. O prazer era o mesmo. O espectáculo actual dos GNR tem um ritmo mais acelerado, enquanto o Rui tem neste momento um concerto mais íntimo, menos volumoso em termos de som, com timbres mais acústicos, tudo mais “jazzy”. São prazeres diferentes.”
Também para Rui Reininho, igualmente contactado pelo PÚBLICO, a mudança de guitarristas foi “uma coisa espontânea, sem razões de fundo”: “Achámos que precisávamos de mudar.” Não por motivos ligados ao visual, ou à falta dele, do antigo guitarrista, hipótese que fora avançada anteriormente, mas por “uma questão de som”. “Hoje divertimo-nos como já não nos divertíamos há muito tempo.”
Sobre os eventuais procedimentos legais contra Manaia, Reininho é claro: “São problemas que nos ultrapassam. Acho muito chato ameaçar um puto que quer tocar e não o deixar fazer o que quer. Se foi ou não a altura ideal, não sei. Já parece o Sporting, o Benfica e o João Pinto.”
E, numa alusão à sua actuação como guarda-redes: “Foram duas boas defesas. Para canto.”

Nick Cave + The Cruel Sea – “O Poeta Carrasco” (concerto – perspectiva)

pop rock >> quarta-feira >> 08.06.1994


O POETA CARRASCO

O “cabaret” tem agora sessões regulares, mas a experiência continua a ser única. Deixe-se entrar o amor ou o que quer que seja que queima. E dói. Nick Cave e os Bad Seeds vêm de novo atormentar Portugal.

Com certeza que não vão aparecer o Pedro, nem a Madalena, alguns dos amigos brasileiros de São Paulo, mas vão estar o compincha de Berlim, Blixa Bargeld, das demolições Neubauten, e Mick Harvey, representante dos Crime & City Solution. Senhoras e senhores amantes dos divertimentos decrépitos, aí está de regresso Nick Cave, o “entertainer” decadente, o diabo atrás da porta, o exemplo do que não queremos que sejam os nossos filhos.
Sim, Nick Cave vem de novo espalhar as suas sementes do mal a Portugal. Dois anos depois dos coliseus de Lisboa e do Porto, o “cabaret” da infâmia volta a abrir portas a este anjo do bizarro que ainda há pouco lançou no mercado nacional um novo álbum de canções, “Let Love In”. Que são “de amor”, diz ele.
Assegura quem já o viu actuar nos últimos tempos que cada espectáculo actual de Nick Cave é uma fotocópia do anterior. Segundo parece, o circo de aberrações tornou-se uma mistura inteligente de simulação e profissionalismo. Os alinhamentos, as poses, as provocações, reproduzem com minúcia um plano previamente delineado. Mas que importa, se o resultado continua a compensar o investimento emocional e a encenação da festa do horror funciona ainda como moeda de troca para mil fúrias e revoltas contidas.
Concedamos, Nick Cave também já não é o mesmo que era nos anos de fogo dos Birthday Party. O australiano intelectualizou-se, como se costuma dizer. Andou a ver bons filmes, de preferência de Wim Wenders, que até lhe arranjou trabalho, a ler bons livros, e chegou mesmo a escrever um, “And the Ass Saw the Angel”, que é como quem diz, na tradução portuguesa, “E o Burro viu o Anjo”. O carrasco virou poeta.
Depois, Cave viajou muito. Descobriu outros cenários desolados. Outros desertos além dos da Austrália e dos seus próprios interiores. Dos lugares por onde passou, Nick Cave reteve sobretudo Berlim. A sua tradição do “cabaret”, as suas ruínas e memórias de destruição, o seu passado cortado ao meio e finalmente reunificado num mutante monstruoso e sedento de Ocidente. Em São Paulo, encontrou Cave uma espécie de paz podre, a sintonia tropical com as forças da Natureza, a sensualidade hedonista sem culpa nem pecado, à flor da pele.
Nick Cave forjou então novas máscaras e envergou trajes elegantes. Tornou-se evangelista e pregador, um moralista em que não custa muito não acreditar. O sussurro abraçou o grito. Para trás, não tanto como possa parecer à primeira vista, ficaram as labaredas do inferno dos Birthday Party, substituídas por uma nova consciência e maneira de cantar as coisas. Nascia o “crooner”, o contador de histórias cheias de ambiguidade, o existencialista pós-moderno que cultiva com requinte a autodestruição, mas apenas no papel. Antes a vida doía a Nick Cave. Agora compete-lhe descrever com toda a arte que for possível os princípios metafísicos da dor.
Não que isso seja o mais importante. Nick Cave pode até transformar-se, o que decerto não é o caso, no rei dos hipócritas que tal não anula que “Let Love In” seja um álbum magnífico, talvez um dos seus melhores de sempre. Digamos antes que, pese embora a queimadura imediata provocada pelo metal em brasa de algumas faixas do novo álbum, a idade ensinou a este fabricante de sonhos empestados ema forma mais melíflua e insinuante de fazer passar o niilismo da mensagem.
O diabo, já tivemos oportunidade de o dizer várias vezes, é inteligente e sabe adaptar-se com rapidez à alteração das situações. Essa é de resto uma das suas maiores aptidões. Nada melhor então do que acenar com uma carta de amor na mão ou soltar um lancinante “perdoa-me!” para nos convencer de que o demónio se transfigurou num anjo. Mas que ninguém se iluda. Ontem como hoje, ouve-se Nick Cave por própria conta e risco.



NICK CAVE + THE CRUEL SEA
10 de Junho, Coliseu dos Recreios, Lisboa
11 de Junho, Coliseu do Porto