PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 1 AGOSTO 1990 >> Videodiscos >> Pop
A DISCOTECA
SINFONIAS ELETRÓNICAS
Chamam-lhe o papa da música eletrónica. Começou por tocar bateria num grupo de rock. Depois descobriu umas máquinas em que bastava ligar o interruptor para sair música. Acabara de inventar a “Kosmische Musik”. Ainda hoje não desistiu de ser o novo Wagner.
Em finais da década de 60, decorria do escaldo do “fogo” ateado pela geração da paz e do amor. Na Europa e nos Estados Unidos, os “hippies” principiavam a tirar os enfeites e a meter as violas no saco. A ingenuidade era substituída pelas grandes conceptualizações intelectuais. Era a época da música progressiva que desprezava as singelas canções pop do passado para só se satisfazer com longas “suítes” instrumentais de pelo menos vinte minutos de duração. A ambição era fazer frente aos compositores clássicos, compondo obras de grande envergadura, cheias de pompa e circunstância.
Na Alemanha, sociedade altamente industrializada e, além disso, cujos membros são totalmente destituídos de sentido de humor, a ideia ganhou raízes, deslocando-se, contudo, a ênfase temática para um contexto mais desumanizado e recorrendo-se a meios exclusivamente eletrónicos na tentativa de criar uma música grandiosa e de ressonâncias cósmicas.
Berlim Planante
O mote fora dado pelos Pink Floyd do período compreendido entre “Ummagumma” e “Meddle”. Tratava-se de isolar a componente abstrata e eletrónica, acentuando a sua dimensão intemporal. A nova tecnologia eletrónica dos sintetizadores Moog, ARP e VCS3 permitia materializar as fantasias emergentes, avançando com novas sonoridades que, como resposta, exigiam do músico e do auditor um novo tipo de sensibilidade.
Em Berlim, o núcleo determinante da eclosão do movimento gravava os primeiros discos nas editoras pioneiras Ohm e Cosmic Music, logo seguidas pela Brain. Os seus heróis eram Nietzsche e os poetas e compositores do Romantismo: Holderlin, Novalis, Rilke, Schubert e principalmente Wagner. Nova oportunidade para relançar a cultura germânica, desta vez em direção ao infinito. Os seus seguidores davam pelos nomes de Popol Vuh, Cluster, Wallenstein, Ashra, Guru Guru, Grobschnitt e Neu.
Klaus Schulze, depois de uma breve passagem pelo rock, passou a integrar duas das bandas míticas do “boom” berlinense: os Tangerine Dream, ao lado de Edgar Froese e Chris Franke, e os Ash Ra Tempel, de Manuel Gottsching. O primeiro álbum dos T. Dream chamava-se “Electronic Meditation”, título emblemático do mundo em que se movimentava a nova geração. As vibrações eletrónicas juntavam-se às mentais, ecoando em concertos realizados no interior de igrejas, numa comunhão extasiada com o universo.
Novo Wagner
Em 1972 grava para a Brain o seu primeiro álbum a solo, “Irrlicht”, com um tema de cada lado, como de resto viria a acontecer ao longo de quase toda a sua discografia. Disco planante, naipes sintetizados preenchendo totalmente o palco sonoro. Homenagem a Franz Schubert em “Exil Sils Maria”. “Cyborg”, duplo de 1973, enuncia os métodos e obsessões que nunca mais o abandonariam: o primado da harmonia sobre o ritmo e a melodia, esta reduzida ao desenhar de arabescos modais, quase sempre improvisados e delineados pela mão direita do intérprete. Vêm estes preciosismos técnicos a propósito das manifestas limitações de Schulze enquanto teclista convencional. A sua arte revela-se principalmente no gosto pelas combinações tímbricas e na utilização dos sintetizadores como intermediários de conceções formais essencialmente sinfónicas.
Os álbuns a partir de “Picture Music” viriam a ser distribuídos no resto da Europa pela Virgin, na altura apostada da divulgação das novas propostas afastadas das correntes pop e rock. “Picture Music” e “Black Dance” dão a conhecer o músico num dos seus momentos menos inspirados. Com “Timewind” (1975) assina a primeira obra-prima. Álbum wagneriano, na grandiosidade e profundidade dos arranjos, no dramatismo, na abordagem totalitária da massa sonora e até nos títulos, “Bayreuth Return” e “Wahnfried 1883”, referências diretas ao grande mestre alemão. Richard Wahnfried, pseudónimo sob o qual grava esporadicamente, revela até que ponto Schulze se considera o continuador e herdeiro espiritual do autor do “Anel dos Nibelungos”.
O Crepúsculo dos Deuses
“Moondawn” (1976) repete a fórmula do disco anterior, revelando, todavia, um maior apuro técnico na utilização do sequenciador. Como convidado especial na percussão, Harald Großkopf, dos Wallenstein, chamado sempre que eram necessários os tambores “reais”. “Mirage” é outro dos pontos altos da carreira discográfica de Schulze, o segundo lado, “Crystal Lake”, cintilação hipnótica indutora de sonhos e viagens interiores.
Colabora no projeto “Go”, ao lado de Stomu Yamashta e Steve Winwood, iniciando-se como compositor de bandas sonoras em “Body Love”. “X”, décimo da discografia, é a sua obra-chave, cujos títulos são dedicatórias a alguns dos seus heróis: Friedrich Nietzsche, Georg Tackl, Frank Herbert, Friedmann Bach, Ludwig II da Baviera e Heinrich von Kleist. A música de Klaus Schulze eleva-se aqui ao máximo expoente, numa sinfonia a quatro movimentos, digna de ombrear com as dos seus heróis. “Dune” (1979) sonoriza os mundos irreais de Frank Herbert e “Dig it” marca a entrada no universo dos dígitos. Preocupa-se com os labirintos da personalidade e da psicanálise em “Trancefer” (1981) e no duplo “Audentity” (1983), este manifesto derradeiro de uma música entretanto esgotada na repetição de fórmulas que não souberam evoluir. “Dziekuje Poland” (gravado ao vivo na Polónia), “Angst”, “Inter-Face”, “Dreams” e os recentes “En=Trance” e, já deste ano, “Mediterranean Pads” giram em círculos avançando para lado nenhum. Interessante a sua “Babel”, composta e tocada a meias com Andreas Gosser.
Klaus Schulze suscita grandes ódios e incondicionais amores. Construiu uma obra única e original no campo, hoje inflacionado, da música eletrónica. Influenciou um número incontável de outros praticantes. A História decidirá qual o lugar a que tem direito no panteão dos heróis.