Arquivo mensal: Novembro 2020

Hector Zazou – “Sahara Blue”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 04.11.1992


PREGAR NO DESERTO

HECTOR ZAZOU
Sahara Blue
CD Made to Measure, distri. Contraverso


Muita parra e pouca uva. “Sahara Blue” está longe de ser um deserto de ideias, mas essas ideias surgem dispersas, faltando a cola que transforma o agregado num todo. “Sahara Blue” não é sintético, é sincrético. Os textos do poeta simbolista francês Arthur Rimbaud são o fio da meada e pau para toda a obra. É esse o universo poético que Hector Zazou e o seu séquito impressionante de estrelas procuram recriar. Neste aspecto, a lista de participantes é de tirar o fôlego, sendo ainda mais extensa que a do anterior “Les Nouvelles Polyphonies Corses”: John Cale, Gérard Dépardieu (sim, o actor) Cheb Khaled, Anneli Drecker, Bill Laswell, Tim Simenon (Bomb the Bass), Barbara Gogan (dos Passions, há alguém que se lembre?), Ryuchi Sakamoto, Sammy Birnbach e Malka Spigel (Minimal Compact), Sussan Deihim, Lightwave, Steve Shehan, Keith LeBlanc, Ketema Mekonn e David Sylvian (que aparece referido como Mr. X, por razões contratuais), entre outros…
“Sahara Blue” explode em múltiplas direcções, deixando estilhaços por todo o lado. A unidade que preside aos anteriores trabalhos deste músico argelino radicado em França desapareceu, substituída por um caleidoscópio de referências e estilos. Recordem-se os passos prévios. “Noir et Blanc”, que alguém definiu como o “encontro imaginário de Fela Kuti com os Kraftwerk”, é a electrónica e o étnico em harmonia perfeita, em ritmo de locomotiva. “Reivax au Bongo” consegue a improvável junção da tradição romântica com a África, em recipientes de canção pop, versão anos 60. “Géographies” e “Géologies” são estranhos objectos pós-modernistas que recuperam as formas do classicismo para lhes conferir a dimensão de mutantes deformados. “Mr. Manager” e “Guilty” orientam os carris de “Noir et Blanc” na direcção das pistas de dança.
Em “Sahara Blue” sobressai uma impressão de novo-riquismo, traduzido num excesso de meios e de músicos que se acotovelam entre si, acabando por não haver espaço suficiente para cada um se exprimir convenientemente. O disco começa em ritmo de dança, com um recitativo de Dépardieu, para de seguida irradiar sem quaisquer preocupações de unidade formal. Há ambientalismos étnicos escondidos a cada canto, o piano satiano de Sakamoto lutando contra as vagas digitais, a pop inocente de Barbara Gogan, cruzamentos culturais de passagem e vocalizações exóticas que são o melhor que o disco tem para apresentar. E algumas canções verdadeiramente boas: “Hunger”, cantado por um John Cale ameaçador, entre um órgão Hammond e arranjos que vão do “filme negro” de Barry Adamson a uma falsa “brass band” na boa tradição de New Orleans. Cheb Khaled e Malka Spigel swingam de forma brilhante no deserto, em “Amdyaz”, Richard Bihringer e Sussan Deihim lêemem diagonal uma carta do poeta. Ketema Mekonn inventa novas formas de diálogo com o saxofone. É assim: “Sahara Blue” vale pelas partes em separado, histórias que se contam a si próprias, reivindicando regras exclusivas. Síncrese de sons, sob o comando das palavras. (7)

Sétima Legião – “O Fogo”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 04.11.1992


AS CINZAS

SÉTIMA LEGIÃO
O Fogo
LP / MC / CD EMI- Valentim de Carvalho



A expressão “nada se perde, tudo se transforma” só em parte se aplica aos Sétima Legião. No seu caso, seria mais correcto dizer que “nada se perde e nada se transforma”. De facto, apesar de um título que de imediato remate para a temática da mudança, esta só é perceptível em termos de pormenor e nunca de fundo. Desde o álbum de estreia, “A Um Deus Desconhecido”, os Sétima Legião criaram uma imagem, razoavelmente desfocada, que oscilava entre uma certa tradição portuguesa e influências externas localizáveis no eixo de Manchester, protagonizado, na transição dos anos 70 para os 80, pelos Joy Division e New Order. Ao contrário dos Heróis do Mar, que partiram de uma ideologia e de um conceito estético explícitos, e dos Madredeus, nacionalistas de outra forma, na assimilação da religiosidade que preside à alma portuguesa, os Sétima Legião têm sempre vivido em mais do que um mundo simultaneamente. Aí reside o seu apelo, mas também a sua perdição.
A subjectividade que os seus membros defendem está na base de toda uma estratégia que, em última análise, corre o perido de ser confundida com ambiguidade. Percebe-se em “O Fogo” esse desejo de nada dizer de forma definitiva. Compreende-se uma dialéctica de tensões que procura harmonizar um tom de festa (presente nas prestações ao vivo da banda) e um lado funéreo, sombrio, de luto. Dialéctica que a capa do disco ilustra de modo exemplar. Infelizmente, a música manter essa tensão, remetendo-se ao lado nocturno e triste, tão triste que nem a inspiração parece ter encontrado motivação para visitar os elementos da Sétima Legião. A fuga para a frente dá-se pelo lado étnico, aqui reforçado nos ambientalismos árabes de “A voz do deserto” ou pela presença da harpa céltica da convidada Leonor Leiria. Mas o que ressalata da totalidade de “O Fogo” é que este se encontra apagado, arrastando-se cada canção como se não existisse a vontade de dizer alguma coisa. A subjectividade tem destes perigos, de se diluir no vazio. Se, como os Sétima Legião dizem, “é o tempo do passado arder”, conve´m sempre, nestes casos, preparar primeiro o futuro. Sob pena de não restar nada sob as cinzas. (4)

Sétima Legião – “Fogo Que Arde Sem Se Ver” (artigo)

Pop Rock >> Quarta-Feira, 04.11.1992

FOGO QUE ARDE SEM SE VER

Quem brinca com o fogo queima-se, costuma-se dizer. Os Sétima Legião tiveram o atrevimento. “O Fogo”, quarto álbum da sua discografia, acabado de editar, não faz contudo justiça ao título. Se o fogo é símbolo de mudança, não foi por causa disso que os Sétima Legião se afastaram da linha que sempre caracterizou a sua música: um misto do Portugal mítico e de sons urbanos. Música do mundo. É uma tristeza que não se sabe de onde vem.



Ricardo Camacho, co-produtor e teclista, e Pedro Oliveira, vocalista, puseram as mãos no fogo, nas chamas frias de um disco que sugere tons funéreos, marcando o ponto de encontro entre a festa e a morte. Mudança, “a herança de mudar” de que fala a letra de uma canção dos Sétima Legião, a existir neste álbum, não é muito perceptível, a não ser talvez no título. “Depois dos três álbuns anteriores, ‘A Um Deus Desconhecido’, ‘Mar de Outubro’ e ‘De Um Tempo Ausente’, quando se encontra um título com apenas uma palavra, é óbvio que está implícita uma intenção de mudar” – diz Ricardo Camacho, para quem “essa intenção encontra correspondência no conteúdo do disco”.
Mas a que nível se localiza tal mudança? Ricardo Camacho brinca: “Estivemos para colocar um carimbo a dizer ‘este disco não contém a palavra mar’. “ Percebe-se a intenção. Os Sétima Legião nunca foram nem pretendem ser heróis do mar português. Se algo mudou, foram “processos de trabalho e aproximações de composição”. Camacho dá exemplos: “No álbum anterior [‘De Um Tempo Ausente’] não se ouve uma única bateria, é tudo programado. Neste, seguimos uma aproximação totalmente diferente, embora tenhamos utilizado ‘samplers’ e composto sobre ‘loops’, deixámos ficar apenas o trabalho posterior efectuado sobre as primeiras gravações, que foram apagadas.”

Recusar O Óbvio

Em “O Fogo”, são evidentes os elementos conotáveis com a “world music”, na linha do que já acontecera nos álbuns anteriores, só que, desta vez, projectados para a frente das misturas. Ricardo Camacho, numa alusão ao tema “A Voz do Deserto”, árabe sem disfarces, afirma não ter problemas em trabalhar, como é o caso, “em fórmulas fora da sonoridade habitual” dos Sétima Legião. Na altura em que o tema foi composto, há dois anos, o termo “world music” mal começara o seu assalto em força aos “media”. Agora a excepção tornou-se a regra: “Irritou-me ouvir o Jah Wobble ou a Anne Dudley com o Jaz Coleman a fazerem coisas semelhantes.”
O importante é, acima de tudo, para os Sétima Legião, “nunca fazer nada que seja completamente óbvio”. Segundo Ricardo Camacho, a banda “nunca teve uma letra que fosse totalmente explícita ou música que revelasse uma influência maioritária”. “Odeio o explícito!”, diz o produtor e teclista.
Há quem veja o som dos Sétima Legião subjugado à vontade omnipotente do produtor. O próprio reconhece que “existe um som Ricardo Camacho de tal forma vincado e viciado” que, ao fim de dez anos, houve, aqui sim, necessidade de mudança: “Chegámos à conclusão de que, se queríamos mudar métodos de trabalho, não poderia ser só eu o produtor [‘O Fogo’ é co-produzido por Amândio Bastos], teria de haver uma influência externa.”
Resultaram desta opção situações engraçadfas. “Uma coisa que é notória no disco é o erro, erros técnicos. Há pormenores que, do ponto de vista técnico, estão errados, por exemplo, as guitarras estão nalguns casos obviamente desafinadas.”
“Em circunstâncias normais”, continua Ricardo Camacho, “a primeira tendência seria dizer ‘pára, desgrava e vamos fazer outra vez’. Mas depois fui forçado a confrontar-me com a situação e a perguntar-me: ‘OK, isto não está inteiramente correcto, mas soa mal?’ Fui obrigado a reconhecer que não.”
Brian Eno ficaria contente se ouvisse o músico português. “O Eno era mais radical, honra lhe seja feita. Ele compõe a partir do erro, coisa que nós, aliás, também já fizemos.” Quando? “Às vezes estamos a tentar uma coisa qualquer e acontece uma daquelas grandes broncas que afinal acabam por soar extraordinariamente bem e que obrigam a abandonar tudo e a seguir noutra direcção.”

As Piores Vozes Do Mundo

À música portuguesa tradicional, que desde “A Um Deus Desconhecido” as pessoas se habituaram a associar aos Sétima Legião, não é dada grande importância, pelo menos “a priori”. “Tem que ver com a utilização da gaita-de-foles. Mas, se em vez de uma gaita-de-foles tivéssemos usado outros instrumento qualquer, sei lá, um clarinete, se calhar teríamos feito uma aproximação à música dos Balcãs…” Neste aspecto, como em quase tudo, a banda diz-se “intuitiva” e “instintiva”, recusando-se a ser considerada como uma banda cerebral, de estúdio.
Não tanto, pelo menos, como os Guns’n’Roses que, segundo Camacho, é um grupo “muito mais cerebral. O alvo era o número um do ‘top’ americano. Âpontaram e acertaram em cheio”. No caso dos Sétima Legião, é mais uma questão de “rigor” e a “necessidade de racionalizar os poucos meios” disponíveis – “em 22 dias de estúdio [tantos quantos demoraram a gravar ‘O Fogo’}, a disciplina tem de ser grande”.
As vocalizações são, para alguns, um dos pontos fracos dos Sétima Legião. Para Pedro Oliveira, o principal visado, “é uma história antiga”. Segundo ele, a banda sempre “aproveitou a voz como mais umj instrumento, com a mesma importância da gaita-de-foles ou das teclas”. Assume que os Sétima Legião nunca tiveram “uma imagem forte de vocalista, mesmo ao vivo”.
Ricardo Camacho não vê nisso qualquer problema: “No nosso primeiro álbum, a voz era um dos elementos mais emblemáticos. O disco apareceu na ressaca do rock português, numa época de recessão, era uma voz que não gritava, uma voz contra a corrente.” Avança na teoria: “até ouvi dizer que a Teresa Maiuko tem a melhor voz de Portugal. A Dulce também. Provavelmente têm… Tecnicamente irrepreensíveis… Mas será isso o mais importante?” Claro que não. “O Lou Reed tem a pior voz do mundo. O Bob Dylan ‘idem’. Suzanne Veja não tem voz, ela própria a define como um ‘useful instrument’.”

Privilégios

Os Sétima Legião, é forçoso reconhecê-lo, são um grupo difícil de catalogar. Eles não renegam as influências, que são várias, mas procuram seguir em frente sem qualquer tipo de pressões. De resto, acreditam que é difícil ser-se completamente original. Nem isso é para para eles de primordial importância. Acreditam que “a cultura portuguesa leva com todas as influências mais uma em cima”.
Apesar do embate, continuam a achar que a música portuguesa sobreviveu como “entidade própria”. O teclista é mesmo de opinião que “a música portuguesa nunca andou tanto nas ruas da amargura como durante os 40 e tal anos em que esteve confinada ao “ghetto” do nacionalismo provinciano”.
Banda pouco dada aos prazeres das actuações ao vivo, os Sétima Legião preparam-se para levar “O Fogo” Às diversas regiões do país numa digressão de promoção ao álbum. Mas evitam o excesso de concertos, numa atitude que contrasta com a de muitos grupos nacionais. Ricardo Camacho vai ao ponto de se recusar “terminantemente a fazer concertos quando não há “nada de novo para apresentar”. Tocar por tocar é, segundo ele, “uma atitude desonesta – fazer o mesmo concerto dutante anos é arrastar-se pelos palcos do país a requentar músicas que toda a gente conhece”.
Neste aspecto, os Sétima Legião podem considerar-se um grupo privilegiado. “Felizmente, temos condições que a maioria das bandas portuguesas não tem”, reconhece Pedro Oliveira, “e desde o princípio definimos que a nossa sobrevivência nunca iria depender do grupo.” Os Sétima Legião, grupo elitista? “Não. As eleites socio-económicas, em Portugal, ouvem Júlio Iglésias…”