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Vários (Uxia, Sétima Legião, …) – “Festival Intercéltico Do Porto – Pomba Branca, Pomba Branca” (festivais / concertos)

cultura >> domingo, 04.04.1993


Festival Intercéltico Do Porto
Pomba Branca, Pomba Branca


Intercéltico, noite ibérica. Uxia e Sétima Legião, os celtas de serviço. A cantora galega voltou a mostrar que tem uma voz maravilhosa, mas faltam-lhe canções. Com os portugueses da Sétima Legião passa-se o contrário – boas canções mal servidas por um vocalista a necessitar de revisão. Dá Deus nozes a quem não tem dentes e dentes a quem não tem nozes…



Vestida de branco, figura franzina, voz enorme, Uxia encantou o auditório que no sábado à noite esgotou a lotação do Teatro Rivoli, no Porto, na segunda etapa do Festival Intercéltico. A ex-vocalista dos Na Lua esvoaçou como uma pomba pelas canções do seu trabalho a solo de 1991, “Entre Cidades”. O problema, o único problema que até agora tem impedido que o seu nome se projecte além fronteiras está precisamente nas canções. Faltam canções do tamanho – é uma metáfora – de Uxia. Os músicos que a acompanharam no Rivoli também não ajudaram, sobretudo Xosé Paz Antón, sempre na lua, martelando quadrados após quadrados na bateria. E parece tão simples o melhor caminho a seguir… O fundo de teclados aquáticos de Nacho Munoz e uma “gaita”, cheia de sentimento, de Cândido Lorenzo chegaram para a voz levantar voo e se recortar com limpidez, como ela merece e deve ser, em três temas de pura magia: “Cantar Galego”, o tradicional “Cancíon de Florencio” e já em “encore”, a revisão sentida nas alturas de “Verdes são os campos”, de José Afonso.
O resto foram cantigas e a voz de Uxia a arrancar-lhes o pouco que algumas delas lhe podiam dar. Ficaram apesar de tudo ainda na memória “Em Lisboa” (“Sei que estou no Porto, mas sou galega e estou longe das vossas ‘disputaciones’…), com letra de Eugénio de Andrade e “Aquela Nuvem”, de Júlio Pereira. Esqueçam-se depressa um “reel” (um “reel” naquele compasso, Antón?) irlandês e a Galiza em ritmo de “reggae” de “Túa nai é meiga”. Com esta disparidade entre intéprete e reportório é caso para dizer, não exactamente como Max: Pomba branca, pomba branca, onde vai o teu voar…

Sétima Aumentada

Os Sétima Legião atacaram em força mas perderam-se pelo caminho. Vinte e uma canções selecionadas dos seus quatro álbuns, mais cinco “encores”, foi dose excessiva para alguma (pouca) gente. Uma “Abertura” seguida de “Baile” em tons tradicionais prometeram logo de início uma actuação memorável, dando a ouvir um Paulo Marinho confiante e cada vez melhor na gaita-de-foles. Mas depois a Sétima entrou “Noutro Lugar”, na voragem dos decibéis, do rock e do “feedback” – que conseguiu estragar mais do que um tema – e algo se perdeu. Sobretudo a energia, nas vocalizações fúnebres e desmaiadas de Pedro Oliveira. Instrumentalmente a banda é competente, conseguindo ser demolidora em temas que a assistência do Rivoli recebeu em apoteose, dançando e gritando. Tal aconteceu em “Sete Mares” (tocado duas vezes), “Por quem não esquece” e na bombástica – não, neste caso não é metáfora, Paulo Abelho, o percussionista, batucou e levantou no ar um bombo monstruoso – “Reconquista” final, em que os Sétima Legião mostraram ser uma das grandes bandas portuguesas da actualidade. Curiosamente, o vocalista impressionou, já em tempo de “encores”, numa pungente e solitária interpretação, à beira da tragédia, de “Guerras de Ninguém”. Uxia (“uma fada que passou…”) subiu ao palco para acompanhar na pandeireta duas boas prestações de Paulo Marinho na gaita-de-foles, “Caminhos de Santiago” e o tradicional galego “Aires de Pontevedra”.
Longe, às vezes bastante longe, da perfeição, a actuação dos Sétima Legião conseguiu mesmo assim ser aquela que em dois dias de festival conquistou maior adesão do público. Um público talvez diferente do dos outros dias, mais sensibilizado para sonoridades que numa ou noutra vez fizeram o favor de ser tradicionais.
Em jeito de “post-scriptum”: fala-se, à boca pequena, de um projecto vocal feminino que, a ir avante, dará muito que falar. Nada mais nada menos que Uxia, Teresa Salgueiro (as duas, aqui no Porto, não confirmam nem desmentem…), Filipa Pais e Minela, juntas e afinadas num coro de bradar aos céus.

Vários (Barzaz, Battlefield Band, Uxia, Sétima Legião, Barabàn, Chieftains) 4º Festival Intercéltico – “Peregrinos”

pop rock >> quarta-feira, 31.03.1993


PEREGRINOS

O Festival Intercéltico do Porto, chegado à quarta edição, tornou-se uma instituição. Mais do que uma série de espectáculos musicais de música tradicional, o Intercéltico é um local de peregrinação onde, no princípio da Primavera, arribam os apreciadores e amantes destas música com raiz na eternidade. São três dias de festa no verdadeiro sentido da palavra: de celebração, de “diálogo e convívio entre as diferentes músicas e tradições de povos com um passado comum”, como afirma a organização. Os concertos podem ser melhores ou piores, mas o ambiente é único. Come-se bem, bebe-se melhor, ouve-se música, mergulha-se no âmago de uma cultura que também é a nossa. “Celta”, ou “céltico”, o termo está hoje na moda. Mas por detrás do folclore e das imagens que vão formando o “puzzle” de uma Europa genuína, está o amor a uma causa e muito trabalho. Porque nem só de música vive um festival, a organização (desde a primeira hora da responsabilidade da equipa da MC-Mundo da Canção) compreendeu a necessidade de um enquadramento à altura. É assim que, uma vez mais, o Intercéltico apresenta uma lista de actividades paralelas que neste ano incluem conferências, exposições, videorama, artesanato, banca de discos e revistas e a iniciação ao vidicuestla, o antigo jogo de xadrez celta.
Para completar o círculo (ou a espiral…), refira-se ainda a publicação, à semelhança do que aconteceu nos anos transactos, de um livro-programa de 160 páginas sobre o festival, com informação detalhada sobre a programação, incluindo textos e discografias dos artistas presentes, uma “bibliografia céltica”, uma compilação das leis (delirantes) dos Brehons, ou seja, as leis antigas da Irlanda, e até esquemas pormenorizados de algumas jogadas de vidicuestla…
Um elogio especial para Mário Correis, da organização, pelo notável trabalho de investigação e divulgação levado a cabo. Agora é tempo de fazer as malas, rumar ao Porto e viver um fim-de-semana diferente. Num tempo e num local que parecem ter sido tocados pela magia de Merlin. Na companhia das fadas, duendes e elfos que existem, porque a imaginação os materializa. O Festival Intercéltico é essa teia cruzada do mito com a actualidade, do ancestral com o moderno. Ritual de comunhão com a nossa identidade mais profunda.

O DESPERTAR DOS MÁGICOS



Barzaz e Battlefield Band preenchem o cartaz musical do primeiro dia do festival. Vibrantes os primeiros, transportam consigo a força dos rochedos e das ondas do mar que esculpe as costas da Bretanha. Mais serenos os segundos, abrigados de momento na calma enseada de um lago escocês.
Inseridos no movimento de renovação da tradição musical bretã encetada nos anos 70 por Alan Stivell, os Barzaz resultam da confluência de projectos anteriores dos seus membros, investidos da missão de levar a música da Bretanha aos círculos exteriores do mundo celta. Assim, na árvore genealógica do grupo descobrem-se os ramos Skolvan, Galorn, Kornog e La Mirlintantouille. Os Barraz fazem da beleza, por vezes rude, da música bretã uma arma contra aqueles a quem a história da Bretanha, “secreta e controversa”, incomoda, os mesmos que “ocupam os lugares do poder” e que interpretam essa História “de forma a melhor poderem dispor das suas gentes e do seu tempo”.
Os Battlefield Band são a instituição folk por excelência da Escócia. “Forward with Scotland’s Past” é o seu lema. Existem há décadas e passaram incólumes pelas tempestades. Da formação original resta o vocalista e teclista Alan Reid. O espírito, esse, manteve-se. Traçaram ao longo de uma vasta discografia os contornos da tradição escocesa sem nunca voltarem costas aos problemas sociais do presente. Juntam o canto da tragédia à dança e aos ritos da terra. O novo álbum, “Quiet Days”, é mais intimista que os anteriores. Uma pausa e um segredo entre o clamor da batalha.

A Voz E O Fogo

Sexta-feira é dia ibérico. Actuam Uxia e os Sétima Legião. Para a cantora galega Uxia significa o regresso ao Intercéltico, depois da sua aclamada participação, no ano passado, no projecto “Bailia das Flores” de Tentúgal. Uma voz, belíssima, com frequência desaproveitada. Esteve ligada ao grupo Na Lua onde a sua luz depressa começou a ofuscar os restantes músicos. Disse uma vez numa entrevista: “o importante nun cantor ou cantora é que prevaleza a voz; caquera instrumento que a oculte dificulta a sua comprénsion.” Não por acaso, o melhor trabalho dos Na Lua, “Estrela de Maio”, é aquele em que as vocalizações de Uxia surgem com maior proeminência. Abandonou entretanto o grupo para gravar um álbum algo incaracterístico, “Entre Cidades”, onde é sensível a falta de uma direcção definida. Porque não reatar as maravilhas do seu primeiro trabalho a solo, “Foliada de Marzo”?
Quanto aos Sétima Legião, cujo último álbum, “O Fogo”, foi mal recebido por alguma crítica, vão apresentar no Intercéltico um espectáculo especialmente concebido para o efeito que privilegiará as conotações célticas da sua música. Ao vivo, costumam criar um ambiente festivo, bastante diferente da melancolia que caracteriza os trabalhos discográficos da banda. Veremos se é desta que acendem o fogo.

Celebração

Absolutamente a não perder, o terceiro e último dia do Intercéltico. Com dosi grupos de passdo diferente mas ambos de qualidade musical fora de série: Barabàn, de Itália, e Chieftains, os reis magos da folk irlandesa.
Formados em Milão em 1982, os Barabàn dedicam-se ao estudo e interpretação da música do Norte de Itália, em particular da Lombardia e do Piemonte. Em disco, assemelham-se em sonoridade aos La Ciapa Rusa, seus vizinhos piemonteses. Baladas, canções de embalar, cantos satíricos e militares ou de protesto, cantigas de jograis e outros modos característicos da tradição (jigas, valsas, alessandrinas, monferrinas, curentas, sestrinas, “carmagnolas”, tuninas, “saltarelos”, …), recolhidos, na maioria, por Aurelio Citelli e Giuliano Graso, compõem o reportório básico dos Barabàn, servido pela utilização de instrumentos típicos da região: o “organetto” diatónico, flautas, ocarinas, sanfona e, claro, o “piffero” e a “musa” (incluindo a variante solista, a “piva”), a gaita-de-foles do Piemonte. Vão ser decerto, a par dos Barzaz, uma das revelações do festival.
Finalmente, os Chieftains encerram em glória o festival. Já não há palavras que cheguem para traduzir a importância desta banda lendária. Hoje, os Chieftains, como se tivessem uma varinha mágica, transformam em ouro tudo em que tocam. Depois de anos e anos a levarem ao mundo a música da Irlanda, passaram a trazer a música do mundo para a Irlanda. E a transformá-la por dentro. Levaram os caminhos da Irlanda ao encontro da China (“The Chieftains in China”), da Bretanha (“Celtic Wedding”) e dos Estados Unidos (“Another Country”). Cumpriram o ciclo nesse ritual apolíneo de convergência dos povos celtas que é “Celebration”.
Autêntica universidade da tradição onde leccionam alguns dos melhores instrumentistas da Irlanda, os Chieftains iluminaram diversos aspectos da cultura e da História desta nação onde ainda habitam as divindades antigas. O rock presta-lhes actualmente vassalagem. Eles retribuem e convidam músicos dessa área para participar nos seus álbuns, mantendo intacta a originalidade e a magia. Mas acabam sempre por regressar ao altar verde da única religião que professam – a música da ilha que lhes é exterior e interior, a Irlanda. O novo álbum, “The Celtic Harp”, tem a participação da Belfast Harp Orchestra. Nesta segunda vinda dos Chieftains a Portugal, ouçam-nos com os sentidos alerta, mas também com o coração.

Todos os espectáculos no Teatro Rivoli, com início às 21h30.

ACTIVIDADES PARALELAS

CONFERÊNCIAS: “L’Art des Celtes”, 1 de Abril, no Institut Français do Porto, e “L’Europe des celtes, V ème-Ier siècle a, C.”, dia 2, na Faculdade de Letras do Porto, ambas por Venceslas Kruta.

EXPOSIÇÕES: “Instrumentos Populares Portugueses”, 26 de Março a 18 de Abril, na Rua da Reboleira, Ribeira.
“Suonatori e Strumanti Popolari de’llApenninni”, 30 de Março a 3 de Abril, no Teatro Rivoli.

ARTESANATO: “Pablo Leal – um artesão galego”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

VIDEORAMA: “Imagens Musicais Intercélticas”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

DISCOS / REVISTAS: “A música celta e a folk europeia”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

TEMPO LIVRE: “Vidicuestla – o jogo de xadrez celta”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

Sétima Legião – “O Fogo”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 04.11.1992


AS CINZAS

SÉTIMA LEGIÃO
O Fogo
LP / MC / CD EMI- Valentim de Carvalho



A expressão “nada se perde, tudo se transforma” só em parte se aplica aos Sétima Legião. No seu caso, seria mais correcto dizer que “nada se perde e nada se transforma”. De facto, apesar de um título que de imediato remate para a temática da mudança, esta só é perceptível em termos de pormenor e nunca de fundo. Desde o álbum de estreia, “A Um Deus Desconhecido”, os Sétima Legião criaram uma imagem, razoavelmente desfocada, que oscilava entre uma certa tradição portuguesa e influências externas localizáveis no eixo de Manchester, protagonizado, na transição dos anos 70 para os 80, pelos Joy Division e New Order. Ao contrário dos Heróis do Mar, que partiram de uma ideologia e de um conceito estético explícitos, e dos Madredeus, nacionalistas de outra forma, na assimilação da religiosidade que preside à alma portuguesa, os Sétima Legião têm sempre vivido em mais do que um mundo simultaneamente. Aí reside o seu apelo, mas também a sua perdição.
A subjectividade que os seus membros defendem está na base de toda uma estratégia que, em última análise, corre o perido de ser confundida com ambiguidade. Percebe-se em “O Fogo” esse desejo de nada dizer de forma definitiva. Compreende-se uma dialéctica de tensões que procura harmonizar um tom de festa (presente nas prestações ao vivo da banda) e um lado funéreo, sombrio, de luto. Dialéctica que a capa do disco ilustra de modo exemplar. Infelizmente, a música manter essa tensão, remetendo-se ao lado nocturno e triste, tão triste que nem a inspiração parece ter encontrado motivação para visitar os elementos da Sétima Legião. A fuga para a frente dá-se pelo lado étnico, aqui reforçado nos ambientalismos árabes de “A voz do deserto” ou pela presença da harpa céltica da convidada Leonor Leiria. Mas o que ressalata da totalidade de “O Fogo” é que este se encontra apagado, arrastando-se cada canção como se não existisse a vontade de dizer alguma coisa. A subjectividade tem destes perigos, de se diluir no vazio. Se, como os Sétima Legião dizem, “é o tempo do passado arder”, conve´m sempre, nestes casos, preparar primeiro o futuro. Sob pena de não restar nada sob as cinzas. (4)