Entrevista: Roger Eno – “Um Mar Que Lhe Deu”

Pop Rock

9 de Outubro de 1996

Irmãos Eno em acção. Roger lança álbum de canções sobre o mar. Brian escreve um diário.

UM MAR QUE LHE DEU

“Swimming”, o novo álbum de Roger Eno, tira o retrato a paisagens sonoras de praias solitárias e ventosas. Histórias de enforcamentos e cantos de embalar, pedaços de esquecimento trazidos pela brisa até à costa. Um álbum de atmosferas marítimas que não se envergonha de citar o irmão mais velho do seu autor, Brian Eno. E de aproveitar as lições da poesia e do cinema.


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Embora igualmente seduzido pelo conceito de “atmosfera”, Roger Eno demarca-se cada vez mais do abstraccionismo do seu irmão, Brian Eno, ganhando uma autoconfiança que, inclusive, o levou a incluir no novo álbum um tema directamente influenciado por este. Mas as semelhanças param aqui. Se Brian é um cirurgião do imaginário e do tempo, Roger Eno viaja através dos elementos e de locais reais como um fotógrafo em busca de uma essência perdida. Tem por hábito tocar piano de frente para um quadro.
PÚBLICO – Em “Swimming” integrou, pela primeira vez, temas tradicionais. Que tipo de relação tem com este género de música?
ROGER ENO – Sempre me interessei pela música tradicional, sobretudo por ser tão personalizada e natural. Além disso, aprecio a maneira como, ao longo dos anos, a mesma canção se metamorfoseia em múltiplas variações, num processo contínuo de subtis transformações. Grande parte da música tradicional é muito poderosa do ponto de vista melódico, o que constitui, ao mesmo tempo, a sua força e uma limitação, se quisermos trabalhá-la ao nível dos arranjos. Frequentemente é tão autónoma que qualquer enfeite ou adição sobre a base melódica se torna supérflua. Todavia, este género de material pode ser trabalhado do ponto de vista da harmonia e da atmosfera e foi o que procurei fazer em “Swimming”.
P. – O primeiro tema, “The Paddington frisk”, não aparece creditado como tradicional, embora soe como tal…
R. – “The Paddington frisk” é uma brincadeira bastante mórbida. A frase “dançar o Paddington frisk” é um eufemismo de “enforcamento”, e “frisk” (“pulo”, “cambalhota”) o esticão do corpo dos condenados quando ficavam pendurados na forca. Compus, com alguma perversidade, uma melodia extremamente alegre para um sentimento de pavor.
P. – “The boatman” foi composto sobre um tema antigo, que nunca chegou a gravar, “The seaside”. Qual foi o contexto original em que o escreveu?
R. – “The seaside” era uma peço simples de piano que costumava tocar em concerto, servindo de base a uma improvisação, um excursão de dez minutos com destino sempre incerto. Um dos meus métodos de trabalho é escolher o nome de uma peça antes mesmo de a escrever, ou de improvisar, funcionando o título como uma espécie de guia para um estado de espírito ou uma atmosfera particulares que, por sua vez, conduzem a evolução da música.
P. – A canção seguinte, “Slow river”, lembra bastante temas do seu irmão, em álbuns como “Taking Tiger Mountain (By Strategy)” ou “Before and after Science”…
R. – Quando escrevi essa canção apercebi-me, de facto, da sua semelhança com dos trabalhos mais antigos de Brian, e de que as pessoas se iriam igualmente aperceber disso. Mas, por uma questão de honestidade, achei que devia incluí-la, sendo aliás uma das minhas preferidas do álbum. De resto, cheguei a pensar dedicá-la a Brian.
P. – Em “Swimming”, fez tudo sozinho, da produção, ao canto, passando pela produção e execução instrumental. É um álbum demasiado pessoal para incluir outras pessoas?
R. – Digamos que não necessitei do “input” de outrem. Pretendi desviar-me da instrumentação mais tradicional, optando por instrumentos que, regra geral, tenho negligenciado – guitarra, bajo, acordeão, etc. -, de maneira a dar um sabor completamente diferente ao álbum. Foi um prazer andar a esgravatar nos armários à procura de sons.
P. – Durante o processo de criação sentiu-se mais como um pianista, um arquitecto de texturas ambientais, um fotógrafo de sons ou um “simples” escritor de canções?
R. – Gosto de uma dessas definições, “fotógrafo de sons”, é bastante apropriada para o que tentei encontrar. De facto, um dos títulos provisórios para o álbum era “Postcards” [“postais”], funcionando cada tema como um instantâneo de um determinado momento. Era isto que tinha em mente quando pus a hipótese de dedicar cada um dos temas a um amigo particular, como se lhe estivesse a enviar um postal. Tentei retratar lugares e estados de espírito… Sim, “fotógrafo de sons” parece-me bastante bem.
P. – de que maneira o lugar onde vive, Woodbridge, no Suffolk, o afectou na composição do álbum?
R. – Um dos aspectos notáveis de se viver num lugar que se conhece bem é a descoberta constante de coisas que antes passavam despercebidas, detalhes, o modo como a luz altera o aspecto de uma rua, adornos num tecto nos quais nunca se tinha reparado… Procuro sobrepor diferentes camadas que estimulem constantemente a curiosidade, de maneira a que cada tema pareça sempre diferente a cada nova audição.
P. – A praia de Dunwich também teve alguma importância no processo. É, aliás, a mesma praia que já inspirara o seu irmão a escrever “Dunwich beach, Autumn 1960”, um canção do álbum “On Land”. É um lugar com uma mística especial?
R. – Dunwich é uma povoação perdida na costa leste de Inglaterra, com uma atmosfera de desolação, constantemente assolada pelos elementos. Afecta-nos de uma maneira especial. Sussurra-nos sobre o efémero, de glórias passadas, de coisas vagamente recordadas… Notam-se constantemente mudanças. Marcas de terra que foram apagadas… Como se, estranhamente, nos encontrássemos num lugar diferente…
P. – “Swimming” evoca igualmente Paris e o Sena, no Outono, fazendo lembrar o interlúdio musical de “Diva”, do realizador francês Jean-Jacques Beineix. Os filmes constituem, para si, uma fonte de inspiração?
R. – Esse filme, “Diva”, serviu de inspiração a “Grey promenade”, um apeça do meu primeiro álbum “Voices”…
P. – E a pintura?
R. – É, sem dúvida, uma grande fonte de inspiração, bem como a poesia. Um dos métodos que uso para improvisar é colocar um quadro no suporte das partituras do piano, tentando retratar a sua atmosfera pictórica em termos musicais. É um processo que pode ajudar a romper padrões vulgares de interpretação. A partir destas improvisações, aproveito alguns bocados e construo com eles novas peças.
P. – Em que língua cantou “Amukidi” e “Hewendaway”?
R. – Estava a cantar para as minhas filhas adormecerem, sem querer construí uma “lullaby” [canção de embalar], tanto a melodia como palavras em sentido. Gravei-a e tornou-se “Hewendaway”. A seguir, o meu produtor quis ouvir como é que ficava ao contrário. Trocou a onda sonora no computador e foi assim que nasceu “Amukidi”. A ideia funcionou e, a partir dela, fiz um arranjo ligeiramente diferente.
P. – Quais são as suas referências literárias?
R. – Dos escritores, Italo Calvino e Grahame Swift são os meus favoritos, também Flann O’ Brien. Regra geral, leio antologias de poesia e aprecio demasiados poetas para os mencionar todos aqui, desde obras anglo-saxónicas de autores anónimos a muitos ainda vivos.
P. – Além do que já mencionou, de que é que necessita para criar uma atmosfera musical específica, no caso de “Swimming”, relacionada com a água e com o mar?
R. – No caso de “Swimming”, viajei ao longo da costa, durante uns quatro meses, para me embeber dos ambientes dos diversos locais. O processo funcionou, penso, pelo menos nalguns temas. Uma vez que apanhava a ideia do percurso que tencionava seguir, continuava na mesma direcção, recolhendo outras ideias pelo caminho. Como um limpador de praias…
P. – “Where the road leads to nowhere” tem uma história. Pode fazer um resumo para os leitores?
R. – Mesmo a norte de Dunwich, fica Covehithe, outra cidade “perdida”. Construíram lá uma estrada que deveria ligar-se a outra localidade mas que, de repente, termina abruptamente numa falésia, apontando para o céu, sobre a praia. É uma imagem que desencadeia uma reacção poética forte e que tinha de ser aproveitada.
P. – “The parting glass” é o lugar, na alma humana, onde o vinho se confunde com a água?
R. – É um dos meus temas favoritos, com palavras e melodia directos e emotivos mas, para falar verdade, não misturo água no meu vinho…



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