Arquivo mensal: Maio 2009

Jon Hassell – Fascinoma

05.05.2000
Fascínio Pela Luz
Jon Hassell
Fascinoma (8/10)
Water Lily Acoustics, import. Ananana

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Depois das investidas na selva urbana do hip-hop levadas a cabo em “Dressing for Pleasure”, não deixa de ser surpreendente o presente movimento do criador da música do “quarto mundo” numa direcção em tudo divergente da daquele álbum. “Fascinoma”, editado nos Estados Unidos no ano passado mas só agora, por dificuldades de distribuição, disponível no mercado nacional é, neste sentido, sob vários aspectos, um álbum único na carreira do trompetista. Nele, pela primeira vez, ao fim de mais de 20 anos de carreira, Jon Hassell interpreta temas de outros autores (entre os quais Duke Ellington, de parceria com o trombonista da sua orquestra, Juan Tizol, em “Caravanesque” e “Suite de caravan”). Também pela primeira vez foi praticamente dispensada a electrónica, que aqui se resume à manipulação de samples por Rick Cox, um dos oito músicos que acompanham Hassell neste seu último trabalho, de uma lista da qual apenas Ry Cooder figura como nome conhecido.
Em “Fascinoma” a fusão de elementos étnicos, jazz, minimalismo e ambientalismo, dirigidos pelo inconfundível estilo, em surdina, do trompete que, sob diversas combinações e em diferentes formas, resultou na “Fourth world music”, em álbuns como “Eartquake Island”, “Vernal Equinox”, “Ambient #1: Possible Musics”, “Dream Theory in Malaya”, “Aka, Darbari, Java: Magic Realism” ou “Power Spot”, como que se desagregou num paisagismo jazzy e orientalizante de onde, curiosamente, o trompete emerge agora como uma sonoridade menos velada, mais clássica.
Álbum de uma serenidade e despojamento a toda a prova, dedicada ao músico indiano P, venerado pela generalidade dos minimalistas, “Fascinoma” parte de memórias e audições/impressões da infância e juventude, recolhidas da rádio ou do cinema (Ellington, que, além de presente como compositor, é ainda citado em “Mevlana duke”, Ravel, Gil Evans, João Gilberto, mas também os músicos de Joujouka, o raga indiano ou orquestras de gamelão), as quais o trompetista recorda como “um oásis tecnicolor permanente” no seu espírito, para chegar ao limiar da pureza primordial do som à qual o teósofo Dane Rudhyar chama “tone-magic”. O título e o respectivo “lettering” da capa remetem, de resto, para esse fascínio pelo som e pelas luzes e imagens que lhe estão ligadas, na evocação de velhos filmes.
Em conformidade com esta busca do sentido original do som recorreu Jon Hassell a técnicas de gravação o mais “puras” possível, dispensando os habituais processos de equalização e compressão utilizados na maioria das gravações actuais.
Trata-se pois de uma procura da essência, aliás como a totalidade dos álbuns de Hassell, mas que aqui se reveste de uma atitude religiosa e de uma contenção que dispensam a anterior ênfase posta nos arranjos (“City: Works of Fiction”, “Sulla Strada”, “Dressing for Pleasure”). Sobre as “drones” indianas da tampura e de umas “zendrums”, o trompete de água partilha a sua demanda da magia transmutatória do som com o bansuri (flauta) de Ronu Majumdar e o piano, por vezes evocativo do mestre armeno Sahan Azruni, de Jacky Terrason, num álbum tocado pelo sagrado que devia servir de lição a todos os aprendizes de feiticeiro da “new age”. Há muito que Jon Hassell abriu as portas da verdadeira “nova idade” e é já do lado de lá, no seu âmago, que sopra a música flor-de-lótus de “Fascinoma”.

Roxy Music – Avalon (self conj.)

12.05.2000
Reedições
Um Outro Tempo, Um Outro Lugar
Roxy Music
Manifesto (7/10)
Flesh + Blood (7/10)

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Avalon (6/10)
Bryan Ferry
These Foolish Things (8/10)
Another Time, Another Place (8/10)
Let’s Stick Togheter (7/10)
The Bride Stripped Bare (7/10)
Virgin, distri. EMI-VC
Os melómanos / consumidores mais compulsivos não têm mãos a medir, diante da oferta que se lhes depara, apresentando as gravações mais perfeitas ou as capas mais fiéis aos originais, dos discos reeditados dos seus ídolos. Arrumados os vinis na estante, chegou a vez de também os CD rapidamente ganharem poeira, em remasterizações que competem entre si no recorde de bits. Mas com os Roxy Music, à semelhança de outros casos, vale mesmo a pena possuir o “objecto perfeito”. Completa uma primeira fase de remasterizações dos primeiros cinco álbuns do grupo, compreendida entre “Roxy Music”, de 1972, e “Siren”, de 1975, seguiram-se os três álbuns respeitantes à última fase, “Manifesto”, de 1979, de “Flesh + Blood”, de 1980, e “Avalon”, de 1982. Pouco tempo depois chegavam aos escaparates nacionais as remasterizações, embaladas em capas melhoradas, dos cinco primeiros álbuns a solo de Bryan Ferry.
Dos três últimos Roxy Music, “Manifesto” é o trabalho que menos desmerece dos anteriores trabalhos de estúdio do grupo. O cabaré retrofuturista já fechara as portas e o glam fora definitivamente apagado dos rostos dos músicos, mas a festa não tinha ainda terminado. Continuava no casino e nos passos de uma dance music de manequins cortada ainda por alguma decadência, mas com os seus principais intervenientes, a começar por Ferry, a mostrarem-se incapazes de separar a pose da ironia. Dividido entre um “east side” e um “west side”, o som americano impunha-se através de uma soul elegante (Luther Vandross participa nos apoios vocais) que ofuscava a sofisticação e os maneirismos geniais dos cinco primeiros álbuns. “Angel eyes”, “Ain’t that so” e “Dance away” foram passados na rádio até à exaustão.
O álbum seguinte, “Flesh + Blood”, recupera as imagens das amazonas, mas perde na comparação com o seu antecessor. A energia está mais dispersa, a tensão de opostos que sempre servira de carburante para a criatividade do grupo dera lugar a uma máquina bem oleada. Mas, se “Same old scene” ou “My only love” são canções feitas para ficar no ouvido, é difícil resistir ao apelo nocturno de “In the midnight hour” e, sobretudo, à versão estratosférica de “Eight miles high”, dos Byrds.
Previsivelmente, o último capítulo da saga, “Avalon”, capitaliza em exclusivo no enfeite e no luxo dos arranjos e da produção. Álbum limpo, suave ao ouvido como cetim, o seu brilho é o de um pechisbeque bem confeccionado que procura arrancar em força com mais um “hit”, “more than this”, mas rapidamente se esgota em instrumentais de um hedonismo onde a pele dera lugar a uma película de plástico. Ah, é verdade, já circulam por aí as versões cartonadas destes três álbuns…
Bastante mais interessante acabou por ser o percurso a solo de Ferry, também neste caso, com os cinco primeiros álbuns a mostrarem-se os mais pujantes. “These foolish things”, de 1973, confirmava a faceta de “crooner” do cantor, ao mesmo tempo que o impunha como um “gourmet” apto a degustar tanto os “standards” de décadas mais recuadas (de forma infinitamente mais conseguida, diga-se de passagem, do que no recente “As time goes by”), como clássicos pop de Dylan ou dos Rolling Stones. A afectação e o exagero resultavam bem melhor do que a imagem cansada e “snob” que viria a seguir.
“Another Time, Another Place”, editado no ano seguinte, continua a mesma estratégia de versões nas quais se torna difícil distinguir a desmontagem sarcástica e a homenagem devota. Fosse como fosse, ganham colorido e um delicioso desequilíbrio canções como “Help me make it through the night” e a irresistivelmente apaixonada “Smoke gets in your eyes”, dignas de partilharem as imagens de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart.
Em “let’s Stick Togheter”, Bryan Ferry insistiu nas versões, mas desta feita de temas dos Roxy Music, como “Casanova”, “Sea Breezes”, “2HB”, “Chance Meeting” ou “Re-make / Re-model”, as quais, se não fazem esquecer o vigor e a faceta desestabilizadora veiculada pela banda, ganham porém no modo como o cantor extrai delas um licor amargo que, infelizmente, muito em breve iria perder todo o sabor.
Em 1977 o punk era rei e senhor e em “In Your Mind” Ferry não de furta a uma aproximação mais visceral ao rock. Foi o primeiro dos seus álbuns a ter honras de edição portuguesa. Em vez de um cenário de Hollywood e de idílios etílicos à beira de piscinas de champanhe, Ferry compunha agora as suas próprias canções, escudando-se por detrás de uns óculos escuros e transferindo as suas obsessões, em “All night operator”, para uma conversa telefónica – “All night operator, dial me a better line (…) Can’t you hear me talkin’ to you? Do telephones make you cry?” – com chamada a pagar no destino, por um eco de amargura.
Recebido na época como um álbum “surrealista”, “The Bride Stripped Bare” (o título é, aliás, o de uma pintura de Marcel Duchamp), de 1978, é um álbum atravessado por pulsões contraditórias (que era o que distinguia os Roxy Music da primeira fase de todos os outros grupos dos anos 70), onde o gospel, a soul, o sentimento de culpa, a passagem do tempo, a desilusão e – sempre – uma inultrapassável elegância correm por lamentos como “Take me to the river” ou pelo tradicional irlandês “Carrickfergus” antes de desaguarem – “so near, yet so far” -, uma vez mais, na solidão.

Entrevista: Coldfinger Acenam com “Lefthand”

22.09.2000
Coldfinger Acenam com “Lefthand”
Quem é a Favor, Levante a Mão Esquerda

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Mãos ao ar! A esquerda! “Lefthand”. O álbum de estreia dos Coldfinger electrifica filmes negros, comete crimes na noite, faz scratch de sentimentos obscuros e corta à faca versos de Álvaro de Campos. E se entrar para um autocarro a uma hora de ponta e olhar para dentro da cabeça de uma pessoa – isso é drum ‘n’ bass. O PÚBLICO armou-se em detective e foi investigar.

Ele, Miguel Cardona, faz filmes sonoros, sente o poder de tocar na teclas de um piano Fender Rhodes ou de um Mini-Moog, arreganha os dentes a quem ousa proclamar a morte do drum ‘n’ bass e não consegue aguentar até ao fim a beleza excessiva de um filme como “Magnolia”. Ela, Margarida Pinto, veste-se das grandes cantoras clássicas e assume-se como a “face escura” da banda. Em “Lefthand” cada um é o braço do outro.
FM – Como é que Álvaro de Campos aparece metido nesta história, no tema de abertura, “Para um poema”?
Margarida Pinto – Foi um poema que me veio parar Às mãos. Normalmente trago sempre comigo a “Tabacaria” mas neste caso li os versos na casa de um amigo meu e achei-os extremamente musicais. Fiquei com o poema na cabeça. Acabámos por utilizá-lo com uma base musical que também não é nossa, mas do Arkham Hi*Fi.
FM – “Lefthand” junta electrónica, lounge, jazz, bossa-nova… Não se pode dizer que não estejam na crista da onda.
Miguel Cardona – No meu caso, que estou mais ligado à produção, se não estiver a fzer música estou a ouvir. Em minha casa ou na de coleccionadores de discos. Ainda na semana passada comprei o “Room With a View”, que é uma compilação dos Amalgamation of Soundz, que são eles próprios coleccionadores, a colectânea “Jazz in the House 8” do Phil Asher, alguém que passa este tipo de som que agora está na moda, um álbum já antigo de Q-Tip. A verdade é que todas estas modas, como o fat garage, ou o Larry Levan, já me andam a chatear. São cada vez mais rápidas, as pessoas não têm tempo para absorver o que é importante.
Margarida Pinto – Eu ouço Billie Holiday, Nina Simone, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan…
FM – Dizia o Miguel que as pessoas já não absorvem o que é importante?
Miguel Cardona – Às tantas forma-se um bloqueio. De repente gosta-se de bossa e já não se gosta de drum ‘n’ bass, de que se gostava há três meses. Ouvir música torna-se um fenómeno consumista e “racista”. A moda leva as pessoas a terem sensações apenas pelo facto de ser algo que está na moda e não simplesmente pela música em si. Diz-se: “Sinto-me bem porque estou num ambiente lounge a ouvir Masters at Work na versão “Bossa Très Jazz” e pronto, estou bem porque estou com o pessoal, sei que o que está a tocar é a faixa três, sei que isto foi roubado pelos Moloko e que deu milhões de contos em “Sing it Back”, portanto sou uma pessoa especial porque sei isto, porque li numa revista ou um amigo meu ou um jornalista informadíssimo me disse!”…
FM – Mas isso não faz parte da própria natureza do circuito da música de dança, essa socialização? Mesmo a música de “Lefthand” está mais próxima do que nos primórdios da banda, dessa vertente, digamos, mais mundana…
Miguel Cardona – Isso é porque ficámos mais sozinhos a produzir o disco, apenas nós os dois e o Joe Fossard. É um disco mais vasto onde se torna mais fácil darmos largas a todas as nossas ambições musicais e se calhar porque estamos mais perto dessa ideia de contemporaneidade social do que de uma ideia de contemporaneidade intelectual.
FM – E a Margarida, sente o mesmo apelo do gozo directo, de uma música mais conotada com o conceito de diversão?
Margarida Pinto – Não, normalmente sou eu a “face escura”. O Miguel é uma pessoa com mais energia que assume esse lado de provocar uma experiência sensitiva, de provocar nas pessoas uma vontade de dançar. Eu vou menos por aí…

Duke Já Havia

FM – “Duke Interlude” é obviamente uma dedicatória a Duke Ellington, embora pela música ninguém adivinhasse…
Miguel Cardona – Esse tema tem uma história. Ao registar as faixas na SPA, o tema chamava-se “Rude Interlude”. A senhora que lá estava, muito simpática, disse logo “não, não! Esse tema não pode registar com esse nome porque há aqui um senhor que é o (soletra) D-u-k-e E-ll-in-g-ton…”. Já eu me estava a partir a rir. Exactamente, é mesmo o senhor Duke Ellington. Entre gargalhadas acabei por “agradecer” à senhora ter ficado a conhecer um grande vulto da orquestração jazz e um dos músicos do séc. XX. Ficou “Duke Interlude”.
FM – Pelos títulos, percebe-se que gostam de brincar com as palavras…
Miguel Cardona – É uma necessidade. Por exemplo, “B com 1”, que no poema original da Margarida se chama “One Alone”. Mas também tivemos dificuldade com o registo dessa faixa… “Mondo” faz-me lembrar o nome de uma bebida, ou uma paisagem…
FM – Quem são os Lisbon City Rockers que produzem os temas “Criminal Behaviour” e “Trans Interlude”?
Miguel Cardona – É segredo. Também foram eles que produziram o nosso single, “Single plus”. Digamos que são um colectivo cujo anonimato tem a ver com a ideia de criar uma imagem, um espaço lúdico, uma etiqueta que possa incluir Os Faíscas, António Variações ou os Mler Ife Dada, passando pelo Rock Rendez-Vous. Uma ideia de unidade, de movimento e que também tem a ver com o rock fora da sua conotação anglo-saxónica, um “Lisbon rock!”. Mas fazem essencialmente música de dança ligada ao “house” ou um “electro” mais pop, da velha escola. São uma espécie de testemunhas silenciosas.

Condução de Pesados

FM – Foram buscar para a gravação os velhos sintetizador Moog, o órgão Hammond e o piano eléctrico Fender Rhodes.
Miguel Cardona – O que o Fender Rhodes tem de melhor é o peso das teclas. Podes ter um bom som de Fender samplado mas depois não tens a relação com o instrumento, que vibra e é bonito, e em que a sua própria imagem inspira o músico. Quanto ao Moog, assiste-se a um regresso brutal. No analógico, a parte eléctrica é muito mais rica, os componentes, os próprios materiais, permitem ao instrumento ter um som muito mais poderoso. Sente-se que está ali qualquer coisa. É como conduzir um veículo pesado. É diferente teres um tecladozinho Midi onde podes chamar um “som Rhodes” ou um “som Moog”. Perde-se essa relação.
FM – Cada um dos temas de “Lefthand” podia passar por um pequeno filme. Há uma relação directa da música dos Coldfinger com o cinema?
Miguel Cardona – O cinema é algo que transporto comigo. O último filme que vi foi “Magnolia”. Achei-o tão bom, de tal forma intenso, que me levantei e fui-me embora, já não aguentava mais, comecei a ficar transtornado. Deviam parar a meio para as pessoas descansarem. As imagens cinematográficas determinam por um lado o facto de nos expressarmos em inglês e, por outro, a relação com personagens, com heróis, que acabam por influenciar a minha escrita musical. O último tema, por exemplo, “The tree and the bird”, é uma fábula que vejo na minha cabeça como um filme de animação. Sobre um fundo branco, há uma arvora a falar a um pássaro dizendo-lhe “Tu também fazes parte de mim, não vou poder ir contigo, mas se puderes levar um pouco de mim dentro de ti quando te fores embora…”. Claro que há outras imagens bastante mais pesadas…
FM – “Lucky Star” é um dos temas de “Lefthand” mais declaradamente inserido no drum ‘n’ bass. Afinal em que ficamos, o d ‘n’ b morreu ou veio para ficar? Um músico como Amon Tobin enterrou ou salvou o d ‘n’ b?
Miguel Cardona – Não acredito nessas mortes anunciadas. Já quando era miúdo tentaram matar o punk, depois tentaram matar o rock… O Amon Tobin trabalha com o som de uma forma quase dada, cola os elementos, muito na escola dos Coldcut e da Ninja Tune, apesar de ser diferente. Não acho que ele seja um típico autor de drum ‘n’ bass. O James Hardway também fez agora um disco um bocado diferente, mas faltam os gurus… O LTJ Bukem, que seria um dj de d ‘n b, fez um disco que não é de d ‘n’ b. Mas o d ‘n’ b não morreu. É uma ideia que existia já no jazz be-bop, com uma atitude tipicamente humana. Se um gajo apanhar um autocarro numa hora de ponta, lá dentro é um concreto de d ‘n’ b na cabeça das pessoas…