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Jon Hassell – “Dressing For Pleasure”

pop rock >> quarta-feira >> 04.05.1994


Jon Hassell
Dressing For Pleasure
Warner, distri. Warner Music port.



“City: Works of Fiction” e, em particular, o “single” retirado deste trabalho, “Voiceprint”, forneciam já alguns indícios do que poderia vir a tornar-se a música de Jon Hassell. “Dressing For Pleasure”, subintitulado “The Rebirth of the Virtual Cool”, transpõe a música do chamado “quarto mundo” dos anteriores trabalhos do trompetista pára um palco urbano. A selva agora é a cidade, cadinho de um novo tribalismo que nos ritmos de dança encontra os seus cogumelos mágicos de transe colectivo. No fundo, e a dar razão ao subtítulo do disco, Hassell procede aqui de maneira idêntica à de Miles Davis quando este ligou a linguagem do “cool” ao “ghetto” e à negritude. Só que, no caso de Hassell, houve o cuidado de acrescentar ao híbrido o termo “virtual”. De facto “Dressing For Pleasure” é como que um caleidoscópio onde se entrechocam os referentes da cultura “hip-hop”, o “acid-jazz”, o “dub”, o “Space funk”, a música de dança e, nas faixas sinalizadas, o mesmo “rap” alucinogénico que Annette Peacock ensaiou em “Abstract Contact”, um disco cujo título de resto, coincidência ou não, aponta para uma mesma ordem de valores. Síntese global apenas possível pela via da tecnologia e da simulação, o quarto mundo, este ou outro qualquer, nunca existiu senão ao nível do imaginário e de um “ser” e “estar” meramente conceptuais. Afinal, o mesmo que os Yello, de uma forma paródica, têm vindo a fazer desde há mais de uma década. E não é de certeza a imaginação que nos faz reconhecer numa faixa como “The gods, they must be Crazy” mais do que uma semelhança com a música daquele grupo suíço. É assim que, enquanto nos pudermos refastelar nos jogos infinitos de sons e imagens que o final do século colocou ao nosso dispor, objectos de pura luxúria sensual como “Dressing For Pleasure” se erguem tótemes de um comunitarismo renascente. Um aviso para quantos se acostumaram ao percurso prévio deste ex-colaborador de Brian Eno. Tenham cuidado, pois poderão sofrer no processo um forte abalo emocional. (8)

Vários (Marta Sebestyen & Muzsikas – “Blues For Transylvania” + Mari Boine Persen – “Gula Gula” + Vários – “Banda Sonora Do Filme ‘The Mahabharata'” + Mouth Music – “Mouth Music” + Jon Hassell – “City: Works Of Fiction” + Ingram Marshall – “Three Penitential Visions / Hidden Voices” + Steve Shehan – “Arrows” + Ersatz – “Ersatz”) – “O Melhor de 1990″ (world e electro)”

Pop-Rock 02.01.1991


O Melhor de 1990

WORLD


1990 foi sobretudo o ano de todos os encontros, cabendo ao Oriente a parte de leão, desde a enésima versão das vozes búlgaras às divagações eléctricas centradas na Ásia. Em Portugal, o acontecimento do ano, nesta área musical, passou despercebido: numa perspectiva descentralizadora, realizaram-se no passado Verão, em Oeiras, Famalicão e Évora, os primeiros Encontros Musicais da Tradição Europeia, organizados por uma cooperativa nortenha. Foi possível escutar ao vivo a magia musical de regiões culturalmente tão ricas como a Escócia, a Cantábria, o Piemonte e a Ocitânia, trazidas respectivamente por Andrew Cronshaw, Manuel Luna, La Ciapa Rusa e Perlinpinpin Folc. Também no capítulo das edições discográficas, nomeadamente de música celta, os adeptos não se puderam queixar, graças a alguns importadores nacionais que tornaram disponíveis, entre nós, catálogos tão importantes como os da “topic”, da “Iona” ou da “Green Linnet”.

MARTA SEBESTYEN & MUZSIKAS
Blues For Transylvania
Hannibal, distri. Nébula

Foi na Transilvânia que Drácula e Ceaesescu, pela imaginação ou pela revolta verdadeira da população, se viram arrancados dos tronos do poder. Terra de violentos confrontos, telúricos e políticos, cantada pela voz forte e doce de Marta Sebestyen. Como em “The Prisoner’s Song” e “Muzsikas”, de novo se canta a história e o dorido queixume da alma romena, aqui expressos com tanta intensidade, como se do lamento de um “blues” se tratasse. No seio das “Muzsikas”, a tradição é assumida como acto. No ano passado, a banda tocava em homenagem às vítimas de Timisoara, conciliando o inconciliável – tradição e revolução.

MARI BOINE PERSEN
Gula Gula
Real World, distri. Edisom

Mari nasceu em Gamehisnjárga, promontório algures a norte da Escandinávia, atravessado pelo rio Anarjohka e habitado pela etnia Sámi. Os mapas não registam tal local. Nunca é tarde para se aprender geografia. Mari optou pela “civilização”, passando a sentir na carne o confronto entre diferentes culturas. Na escola ensinavam em norueguês. Resolveu mudar o estado das coisas, recuperando a língua e o espírito antigos. “Gula Gula” significa “Escuta a voz dos antepassados – assombrações e melodias estranhas, auroras boreais que esculpem, lentamente, novas maneiras de sentir.

Banda Sonora Do Filme “The Mahabharata”
Real World, distri. Edisom

O princípio do mundo, segundo a lenda hindu, recriado pela inspiração colectiva de um grupo de intérpretes de várias nacionalidades, baseada nos sons tradicionais, nomeadamente do Tibete e da Índia. Música de “fusão”, bem entendido, que combina diferentes sensibilidades e discursos musicais, unificados por uma comum aspiração à beleza absoluta. “Música do mundo” em todo o seu esplendor a que os poemas de Rabindranath Tagore e a voz de Sarmila Roy acrescentam a dimensão do sublime.

MOUTH MUSIC
Mouth Music
Triple Earth, import. Contraverso

Discos de música celta, saídos este ano, ainda cá não chegaram. Este “Mouth Music” (ou “Puirt a Beul”, em gaélico, designando um estilo vocal destinado à dança) acaba por ser um bom substituto, talvez não muito do agrado dos puristas, mas, de qualquer modo, uma entre outras interpretações possíveis da música tradicional escocesa. Os instrumentos de Martin Swan e a voz cristalina de Talitha MacKenzie fazem-nos acreditar que o mundo é uma história de encantar.


ELECTRO

Tornado obsoleto o termo “new age” – por demasiado redutor quando aplicado, na generalidade, a músicas formal e esteticamente assentes no primado da electrónica -, nem por isso estas têm deixado de enveredar por caminhos e “idades” (passadas e futuras) que constantemente procuram actualizar o conceito de “novo”, “Ambiental”, “industrial”, “planante”, “meditativa”, “ritual”, “techno”, são outras categorias abrigando o espírito exploratório dos “malucos” dos computadores, sequenciadores, sintetizadores e máquinas afins, unidos na epopeia de “dar novos mundos” ao mundo da música.
1990 foi o ano da pluralidade e da síntese dos folclores planetários (reais ou imaginários) com a alquimia digital. Nunca como agora soaram tão bem juntos o vento, a água, o canto das vozes e dos instrumentos tradicionais, a electricidade e a imaginação humana. Insustentável beleza do Apocalipse…

JON HASSELL
City: Works Of Fiction

Land, import. Contraverso
O trompete galáctico e tribal, guia condutor das viagens pelos sonhos e lugares luxuriantes do mundo que há de vir, Jon Hassell demanda a totalidade e nunca, como nestas “ficções”, esteve tão próximo de a alcançar. Depois das experiências, em “Flesh Of The Spirit”, com o agrupamento do Burkina Faso, Farafina, e do tropicalismo brasileiro de “Earthquake Island”, o trompetista americano lançado por Brian Eno consegue criar uma espécie de “funky” estratosférico (o temas “Voiceprint” teve mesmo direito a nova mistura, em versão maxi, ainda mais dançável) que actualiza a ideia de “aldeia global)” enunciada por McLuhan.

INGRAM MARSHALL
Three Penitential Visions / Hidden Voices

Elektra Nonesuch, import. VGM e Contraverso
Para Ingram Marshall, todos os sons são matéria susceptível de transmutação. Um computador soletra as sílabas mágicas da natureza, sirenes de nevoeiro vibram como sinfonias. “Abrandamento da percepção temporal” e “evocações encantatórias”, segundo o compositor. Em “Three Penitential Visions” utiliza como matriz sonora o ranger do gigantesco portão em aço da cadeia de Alcatraz. “Hiden Voices” junta “samples” de cânticos fúnebres russos, a uma soprano feminina entoando um hino religioso. Reinvenção do sagrado.

STEVE SHEHAN
Arrows

Made To Measure, distri. Contraverso
Steve Shehan toca neste disco cerca de cinquenta instrumentos diferentes, desde os artefactos étnicos primitivos aos “samplers” mais sofisticados. Na confluência das sínteses festivas da dupla Musci / Venosta com o ascetismo e contenção de Stephan Micus, a música de Steve Shehan cria paisagens de extraordinária serenidade e complexidade, recriando as forças de um mundo ancestral em que “a música existia somente por causa do poder da vibração e do seu efeito, místico e sensível, sobre a condição humana”.

ERSATZ
Ersatz

Pinpoint, import. Contraverso
Dieter Moebius (antigo companheiro de Joachim Roedelius, nos Cluster), e um tal Renziehausen, inventaram a fábrica do futuro. Ambientais, industriais, frios, robóticos, hipnóticos, os Ersatz são tudo o que se lhes quiser chamar. Se Roedelius representava a faceta romântica dos Cluster, Moebius deitou para trás a melodia e carrega com força na tecla do ritmo e dos automatismos electrónicos. Abstracta, terrivelmente sedutora, a música destes alemães prolonga a racionalidade milimétrica dos Kraftwerk até ao limite demoníaco da pura matemática.

Jon Hassell – “City: Works Of Fiction”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 15 AGOSTO 1990 >> Videodiscos >> Pop


O INTRÉPIDO EXPLORADOR

JON HASSELL
City: Works of Fiction
LP e CD, Land



Cada dia que passa, o planeta Terra torna-se mais pequeno. A aldeia global de que falava McLuhan deixou de ser uma utopia (ou antiutopia, consoante a perspetiva…), para se tornar uma realidade insofismável. Apesar disso, permanecem invioláveis (até quando?) culturas e costumes desalinhados da grande metrópole totalitária em que se vai tornando o monstro ocidental. Ao Terceiro Mundo e às regiões exóticas do globo vai uma certa classe de músicos buscar inspiração e orientação para a feitura de complexas síntese formais e conceptuais. Às músicas das diferentes culturas regionais, únicas nas suas particularidades intrínsecas, justapõe-se uma música do mundo, que, justamente, daquelas se serve para a criação de unidades multifacetadas e surreais, o todo transcendendo as partes que o integram. Música universal, juntando na mesma viagem a eletrónica e o artesanato étnico, a emoção primitiva e o racionalismo contemporâneo.
A partir da massa primordial e informe das pesquisas iniciais, surgiu uma elite de compositores, capaz de filtrar a imensidade de influências e fontes sonoras disponíveis e, de uma forma coerente, produzir uma música para a qual a designação de “nova” não soa despropositada. Roberto Musci & Giovanni Venosta, O Yuki Conjugate, Lights in a Fat City e Jon Hassell encontram-se em fase avançada no processo de análise/síntese seguido na concretização dessa “World Music” englobante e planetária.
“City: Works of Fiction” é exemplar quanto às intenções e aos métodos de trabalho. A cidade, lugar de concentração e pluralidade cultural, simboliza neste caso o ponto de convergência, cruzamento, feito de sínteses, deslocamentos e desfocagens, transcendente e imanente na medida em que formaliza um impossível folclore universal, retirando (graças às proezas técnicas do sampler) sons e pormenores de um espaço tempo concretos para os reinserir em novos e diferentes contextos. Trabalho de ficção, como o título alude.
Com este álbum, Jon Hassell aventura-se bem mais longe do que em anteriores trabalhos, por direções e atalhos virgens. Cada tema é acompanhado por um texto, também ele ficcional, inventando história e mitos para uma civilização existente somente nos mapas da imaginação, e desenvolvido musicalmente segundo lógicas que aliam o rigor matemático ao tribalismo tecnológico. O computador surge transfigurado em ícone primitivo, simulando sonoridades étnicas e ambiências naturais traficadas. Mais do que nunca, as sinuosidades em surdina do trompete são uma espécie de vento que passa sobre a selva, visão aérea das cidades dos prodígios. Tal qual a torre de Babel, “Works” combina uma profusão de linguagens díspares, como o funky, a música ambiental, o jazz, a eletrónica, o concretismo e folclores vários, num discurso complexo mas sempre articulado, sem que diversidade das fontes e dos meios resulte qualquer perda de unidade ou coerência. Ao contrário das “Possible Musics” dos primórdios em que o som do quarto mundo se quedava ainda como simples possibilidade, Jon Hassell encontra, com “City: Works of Fiction”, a chave e a passagem que permitem a entrada no novo universo a explorar.