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Vitorino – “Vitorino No Centro Cultural De Belém – Comoções Sob Controlo” (concertos)

cultura >> sábado, 20.11.1993


Vitorino No Centro Cultural De Belém
Comoções Sob Controlo



O CENTRO Cultural de Belém, como o Braz & Braz, tem. Tem montes de modernidade. Tem uma programação cultural. Tem espaço. Tem luz. Tem vista para o mar. Mas não tem telefone. Quem quiser ou precisar de telefonar no intervalo, terá de se deslocar em contra-relógio até uma cabina no exterior (neste caso junto ao planetário), e regressar antes do começo da segunda parte. Senão arrisca-se a que, quando voltar, um arrumador zeloso das suas funções o impeça de reocupar o seu lugar, alegando o desconforto que tal irá causar aos outros espectadores.
Adiante. Vitorino ocupou, quinta à noite, com um concerto sóbrio e intimista, um Grande Auditório que não encheu. Ontem a lotação esgotou. Os nervos da maioria dos participantes eram evidentes, ressalvando-se a mestria do pianista João Paulo Esteves da Silva e o profissionalismo do quarteto de cordas Lusitância. Da primeira parte, que privilegiou as canções do álbum “Eu que me Comovo por tudo e por nada”, com as palavras de António Lobo Antunes, destaque para “Canção prá minha filha” (dedicada pelo escritor à filha, “quando tiver medo do escuro”9, que Vitorino interpretou de forma tocante, e para a canção que dá título ao álbum, em registo de tragédia de costumes.
Filipa Pais entrou super-elegante, em negro e vermelho, e híper-nervosa, para cantar a “Valsa das Viúvas” (da pastelaria Bénard), sozinha e quase angustiada, como se quisesse fugir. No final, valsou com Vitorino pelo palco. Na segunda parte entraram em cena os manos Janita e Carlos da Lua Extravagante. Bom, o dueto em “cante” alentejano travado entre o primeiro e Vitorino, em “Eu hei-de amar uma pedra”. Depois, Vitorino comoveu-se de verdade numa “Laurinda” inesquecível. Entre boleros, dedicatórias e um cheironho de “salsa” (em “Os maridos” – “que são sempre os outros”…) Vitorino e a Lua terminaram a cantar em coro com a assistência. “Queda do império” e o inevitável “Menina estás à janela”. O som, impecável, acabou por falhar já perto do fim, no precisomomento em que Vitorino pronunciava as temíveis palavras “Carbonária” e “anarquismo”. Até um dos holofotes explodiu de raiva…

Vitorino – “Sob O Signo Da Rosa-Cruz” (concerto)

pop rock >> quarta-feira, 17.11.1993


SOB O SIGNO DA ROSA-CRUZ



Vitorino de frente para o mar. Fim de uma viagem, início de outra. Da planície queimada do Alentejo, para a Lisboa Boémia. Da noite de Lisboa do princípio do século, para Lisboa capital do império que há-de vir, ou não vir. Num concerto intimista em que as palavras, dadas as óptimas condições do auditório, não terão dificuldade em se fazer ouvir. Uma acústica “fantástica”, assim define Vitorino o auditório principal do Centro Cultural de Belém. Espaço ideal, portanto, para se ouvir o canto “a capella” que haverá entre ele e o irmão, Janita Salomé. “Um elogio da voz”, diz o intérprete das palavras de Lobo Antunes, no recente “Em Que Me Comovo por tudo e por nada”, a propósito da tónica principal do concerto: “Nós nunca deixámos de ser cantores. Continuamos a pensar que cantar é uma coisa que se deve fazer bem. Os anos 80 foram de desvirtuamento do ‘cante’. O que ficu de reserva foi uma certa música étnica, tradicional, que guardou esse gosto de cantar e que está agora a reviver.”
Mas se o “cante” alentejano estará presente em força, isso não significa a exclusão da vertente urbana da música de Vitorino: “A primeira parte será mesmo com o ‘Eu Que Me Comovo…’, na segunda é que iremos andar para trás na história.”
O cantor alentejano elogia as condições técnicas do auditório, mas não deixa de criticar a sua gestão: “É um espaço que se calhar está mal administrado – vou começar já a levar porrada [risos] -, sente-se pelo menos que é polémica a administração daquilo. Se já se demitiram tantos directores em tão pouco tempo, é porque alguma coisa não está bem…”
Critica que não impede Vitorino de reconhecer no local uma carga mítica importante: “Estão por perto os Jerónimos, há muita simbologia… No outro dia olhei para lá e vi uma Rosa-Cruz. Os mistérios que andam por ali…”
Coincidindo com o concerto de Belém, será editado pela EMI-VC uma antologia de canções do cantor, com o título “As mais Bonitas”. Um lote de canções que o próprio Vitorino escolheu em conjunto com David Ferreira, da editora, e do qual fazem parte um novo arranjo para o já clássico “Menina estás à janela”, uma nova versão de “Laurinda” e, pela primeira vez, “Ó rama, ó que linda rama”.
Fim de um ciclo e início de outro. Pronto a sair já no início do próximo ano, está um duplo-álbum dos Lua Extravagante, assim como discos a solo de três dos seus membros: o próprio Vitorino, Janita Salomé e Filipa Pais. Lua Extravagante que irá participar no concerto de Vitorino, na quinta e sexta-feira próximas. Os restantes músicos presentes serão João Paulo Esteves da Silva, piano e direcção musical, o Quarteto de cordas Lusitânia (Jorge Varcoso, Hilary Harper, Luís Santos e Rogério Gomes), Mário Franco, baixo, Rui Alves, percussões, e Paulo Curado, sopros. “Flor de la Mar”, poder-se-ia dizer. No local próprio.
Centro Cultural de Belém, Lisboa,
18 e 19 de Novembro, 22h.

Lua Extravagante / Vitorino – “O Lado Oculto Da Lua” (entrevista)

Pop-Rock Quarta-Feira, 18.09.1991


O LADO OCULTO DA LUA

Lua Extravagante é a designação bizarra do grupo formado pelos irmãos Vitorino, Janita e Carlos Salomé que, juntamente com a cantora Filipa Pais – “A mulher canta como os anjos”, diz Vitorino -, se propõe cantar o lado mais romântico e melancólico da alma portuguesa, sem descurar, porém, as fundações da terra por baixo da cidade. Histórias da “Nau Catrineta”, da Margarida do Monte “que foi amante do rei D. João V”, ou de um “Adeus à serra da Lapa”, em homenagem ao mestre José Afonso. Histórias da noite e de boémia. Do lado oculto da Lua. O disco sai a 22 de Outubro. O PÚBLICO falou com Vitorino, à procura de luz.



PÚBLICO – Há quanto tempo existe o projecto Lua Extravagante?
VITORINO – Há quase um ano. A Valentim de Carvalho viu o nosso projecto e propôs-nos gravar um disco. Nem sequer estava nos nossos horizontes gravar. O grupo tem um sentido associativo. O disco dá-lhe consistência, mas suponho que será o único que vamos gravar.
P. – Porquê, logo à partida, essa recusa em dar sequência discográfica ao projecto?
R. – Temos todos os nossos projectos pessoais, muito fortes. Gravar um disco e manter ao mesmo tempo o projecto do grupo torna-se muito obsessivo.
P. – Quais são então os seus futuros projectos a solo?
R. – Estou a preparar um álbum duplo, com textos (isto é uma informação inédita) do António Lobo Antunes e música minha. O disco vai ser lançado no final do próximo ano, na mesma altura que o seu novo romance. É uma espécie de “joint-venture” literatura-música, baseada numa colectânea de 19 textos escritos pelo António, alguns muito jocosos, sobre a realidade portuguesa.
P. – Que público pretende atingir a Lua Extravagante?
R. – Vamos procurar alargar o nosso público. Há neste disco uma linguagem que considero moderna, na interpretação e evocação do romantismo português. Temos uma tradição harmónica e melódica forte em Portugal, que nos anos 80 foi desprezada em benfício daquilo a que se chama o “rock português”, em que a prioridade foi dada ao ritmo. Gerlamente, os cantores dos grupos rock não são grandes cantores, são mais “performers”, com um tipo de intervenção mais expectacular, encostado às formas anglo-americanas de fazer espectáculo. Quanto a nós, vamos tentar chamar a atenção para uma tradição mais recuada, expressa no “cante”. Quando falo de romantismo, refiro-me ao romantismo literário e à música romântica, não ao sentido “kitsch” do termo. Esse eleogio do canto e da voz faz parte do romantismo português. Cantava-se muito bem em Portugal.
P. – Canto esse cujas raízes se encontram decerto no canto alentejano…
R. – A nossa aprendizagem fez-se a partir dele. No disco há quase sempre uma voz solista, apoiada pelas outras. A relação com o canto alentejano é sobretudo em termos técnicos e de imaginário. De resto já estamos arredados da música rural. Metade da nossa vida já foi passada nas cidades, afastando-nos culturalmente das nossas origens.
P. – Como explica o interesse crescente do auditor pelas músicas ditas tradicionais.
R. – A “world music”, não é? Acho que estivemos muito afastados do nosso imaginário durante 10 anos. Talvez o interesse que refere não passe de um fenómeno cíclico. Ou talvez haja um cansaço com a música anglo-americana que se ouve em Portugal, que é muito monótona. No meu caso, gosto muito da música negra das Américas, do Norte e do Sul. A grande matriz da música americana está nas músicas de origem negra. Não sei se não sofremos por cá um massacre da chamada ´música de supermercado ou de elevador… Esse massacre, perpetrado pelos “media”, é uma maneira de fazer opinião pública.
P. – Que influência teve o rock ou a pop na sua música?
R. – Gosto muito de rock ‘n’ rol. Passei a minha adolescência com o Elvis Presley, Bill Haley and the Comets… Formei-me com o sentido social que tinha o rock ‘n’ rol e que agora está completamente distorcido e aviltado. O rock ‘n’ rol era contestatário, os americanos chamavam-lhe “música de pretos”. Era um contrapoder. Aquilo a que se chama hoje rock não tem nada que ver com essa atitude. Hoje, em termos gerais, o rock é betinho, do lado do poder. Suponho que a vertente pop, sobretudo inglesa – sou um grande admirador dos Beatles, do seu lado melódico -, aparece, por exemplo, num tema que dediquei especialmente aos Beatles, “Flor de Jacarandá”. No nosso disco há uma canção que lembra um bocado os Mamas and Papas.



P. – Pela amostra musical, o projecto Lua Extravagante funciona como um negativo, ou contraponto, de grupos como os Sétima Legião ou Madredeus. Há um lado negro, de luto…
R. – Mas o interior português é um interior de luto. Tudo o que tem um balanço do coração é triste. Claro que há um ritmo que evoca um pouco esse balanço. É uma forma de cantar do Sul, mediterrânica e peninsular.
P. – No seu caso, prevalece a faceta revivalista, de romântico “fin de siècle”…
R. – Sim, há uma evocação desse ambiente. Foi um tempo muito importante para a humanidade, com o nascer de ideias novas, e depois eu tenho uma grande admiração pelos anarquistas, pela carbonária portuguesa, que deixou muitas ideias. As bandas formadas no fim do século passado, princípio deste, ou as recreativas culturais são um trabalho cultural dos anarco-sindicalistas. Era um tempo de grande felicidade.
P. – Fala em anarquismo, mas grava para uma multinacional. Parece que os ideais se tornaram apenas uma evocação nostálgica…
R. – Os ideais culturais permanecem. Estou a lembrar-me de uma recreativa cultural aqui na Madragoa, o Clube dos Vendedores de Jornais, fundado em 1921. Ainda existe como recreativa, na Rua das Trinas. São coisas que permanecem sempre.
P. – Resta então, ao artista, o papel de observador que está de fora?
R. – Vivo de fora porque a minha realidade passou a ser outra, uma realidade sinistra, a da guerra do Golfo. Realidade essa transmitida nalguma boa música moderna. O pós-modernismo gerou grandes confusões e equívocos. Em Tom Waits, por exemplo, há ainda a elegia de uma certa boémia… Mesmo que, a partir dos 40 anos, seja preciso um pouco de “desporto líquido”…
P. – Que pensa da viabilidade ou não de projectos como a UPAV?
R. – Conheço muito bem o José Mário Branco, já trabalhei com ele, mas tenho uma opinião contrária à dele em relação à divulgação da música. Temos de ter os pés bem assentes no chão. O capitalismo em Portugal é uma realidade, entrámos no Mercado Comum e as leis do mercado são implacáveis. Eu vendo discos e continuarei a gravá-los só enquanto eles venderem. Só assim é possível ter força em termos de opinião pública. É dentro deste mercado selvagem que temos de lutar, resguardando embora sempre a nossa “petite force”.
P. – Não o procupa que a integridade do artista seja prejudicada por essa necessidade de vender?
R. – Não é preciso abdicar dos nossos princípios para fazer produtos de boa qualidade. Mas chegar em boas condições às pessoas só se consegue através do “marketing” e este é implacável. No que nos diz respeito, a nossa imagem nem sequer é muito vendável.
P. – O negro faz parte da sua imagem, até na maneira como se veste…
R. – Vestido de negro, confundo-me mais com a sombra, com o escuro. Isto tem que ver com o Sul, com o interior português. Curiosamente, nas zonas onde há muito sol, há o culto do negro. No Sul da Itália, na Grécia…
P. – Negro somente iluminado pela luz da Lua. A Lua Extravagante cantará esse lado lunar, oceânico, da alma lusitana?
R. – A alma lusa, sim. A Lua, no imaginário popular, é mais importante que o Sol. Repare nos símbolos que punham nos bébés, para dar sorte: uma estrela, um corno, uma Lua e uma mão fechada. Há sempre a presença da Lua.
P. – Que extravagância da Lua é essa que referem?
R. – Há uma moda alentejana, “Chamaste-me extravagante”: “Cahamaste-me extravagante / por eu ter uma noitada / eu sou um rapaz brilhante / recolho de madrugada.” O termo “extravagante”, no Alentejo, refere-se a uma pessoa estranha ao quotidiano, com um convívio diferente do normal, ao homem que canta a noite.