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Roy Harper – “Once”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 1 AGOSTO 1990 >> Videodiscos >> Pop

A SOMBRA DO GUERREIRO


ROY HARPER
ONCE
LP e CD, Awareness


A época da canção de intervenção atingiu o auge na década de 60. Bob Dylan foi o seu profeta e teve seguidores. Em Inglaterra, Billy Bragg não se cala e espeta o dedo em todas as feridas. Roy Harper é um senhor já de certa idade, mas nem por isso deixa de incomodar o “establishment”. “Once” é daqueles discos em que as palavras valem mais do que a música. Há uma mensagem a propagar, valores a defender, podres a denunciar.
Segue um esquema simples, mas eficaz. O habitual neste campo de guerrilha musical: voz, guitarra a acompanhar, e os arranjos para lembrar que o artista também não descura o aspeto formal da embalagem. Roy Harper não é um cantor qualquer. O seu nome é respeitado, tem currículo. Apesar disso, e de ter já gravado qualquer coisa como vinte álbuns (entre os quais os clássicos “Folkjokeopus”, “Flat, Baroque and Bersek” e “Stormcock”, ou o mais tardio “Bullinamingvase”), afirma que se lhe torna “cada vez mais difícil reconciliar-se com o negócio”. Insistiu em que este disco não fosse gravado nem distribuído por qualquer das grandes companhias.
Das dez canções que o integram, só três não criticam qualquer coisa. A questão que à partida se levanta é a mesma de sempre: até que ponto funciona e vale a pena uma atitude deste tipo, em que a música popular se arvora como arma, quando as pessoas o que procuram cada vez mais é a evasão. Roy Harper, idealista, acha que sim e que “por vezes é importante ser guerreiro”. Está farto de “assistir ao espetáculo da megalomania fascista” e de “respirar o mesmo ar que o dos políticos, que condenam os desprotegidos, exploram os necessitados e poluem tudo aquilo em que tocam”. Há uma fúria sincera neste disparar de acusações. Vê-se pela cara de mau que ostenta na capa.
Coloca-se o problema de que, concorde-se ou não com as posições assumidas, se é confrontado com a evidência de que, para além das palavras, o álbum não é particularmente exaltante. Limita-se, na maioria dos temas, ao acompanhamento da guitarra e, nalguns deles, os nomes de David Gilmour e Kate Bush funcionam como chamariz.
Os poemas são duros, claro, as palavras incisivas e agrestes. Referem-se explicitamente os nomes de Dung, Margaret, Helmut e Mikhail. Em “The Black Cloud of Islam”, o mais violento de todos, que o próprio Harper hesitou em gravar, temendo ser acusado de racista e anti-islâmico, a metáfora em que se tornou hoje a condenação de Salman Rushdie serve como ponto de partida para a denúncia radical das atrocidades cometidas no seio da sociedade dirigida pelo Ayatollah, em nome de uma divindade sanguinária.
A acusação contra o fanatismo e a intolerância religiosa constitui, de resto, a pedra de toque do disco. Encontra o seu contraponto na homenagem, em “Berliners”, a todos aqueles que, nos últimos 50 anos, combateram em prol da construção da paz e do definitivo irradiar das guerras civis no Velho Continente. E aproveita, como já era de esperar, a deixa que agora a queda do Muro sempre proporciona, para celebrar “a demolição de todas as barreiras e a passagem pacífica dos tempos escuros para um futuro brilhante”. Não há dúvida de que o homem, além de idealista, é ingénuo. Aplauda-se, no entanto, o otimismo e o empenhamento que denota em ajudar a construir um mundo melhor. Se não fossem os discos, o que seria de nós?

Roy Harper – Thedreamsociety

24.07.1998
Roy Harper
Thedreamsociety (6)
ed. Science Friction

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“Thedreamsociety”, tudo junto, como já acontecera, muitos anos antes, em “Bullinamingvase”. A conotação de palavras num conceito unitário. Uma questão de estilo? Mera bizarria? Senhores, Roy Harper é um senhor! Um Dylan britâncio que vem produzindo álbuns desde 1967 com uma regularidade impressionante. Talvez por os terrenos em que se movimentou terem fronteiras pouco precisas, nunca gozou do reconhecimento público merecido. Entre uma certa folk contestatária, pulsões progressivas e um gosto pronunciado por longos (e, para alguns, entediantes) manifestos semideclamados, Harper tornou-se, mesmo assim, um herói para muita gente. Para alguns, por, ainda nos anos 50, ter abandonado a força aérea inglesa, onde se alistara, alegando insanidade mental, o que o levou, primeiro, a um tratamento psiquiátrico e, a seguir, à prisão. Para outros, pela qualidade e originalidade de álbuns como “Return of the Sophisticated Beggar”, “Flat, Baroque and Berserk”, “Stormcock” e “Lifemask” (ambos com a participação de Jimmy Page), “H.Q.” ou o citado “Bullinamingvase”, gravado em plena era “punk” e o único a ter, na altura, edição portuguesa. Outros ainda reconhecerão a voz principal que canta em “Have a Cigar”, uma faixa do álbum “Wish You Were Here”, dos Pink Floyd (os Floyd retribuíram, tocando um tema de “H.Q.”).
Nos anos 80 e 90, a estrela de Roy Harper apagou-se um pouco. Mas não a criatividade. Até chegar a esta “dream society”, onde recupera parte da antiga “verve”. Inspirado em certas sociedades, ditas “primitivas”, cujos sistemas sociais se organizam em torno dos sonhos, Harper parte para um emaranhado filosófico que junta o misticismo, a crítica e o paralelismo entre essas sociedades de sonhos (para ele, uma sociedade de sonho) e a sociedade contemporânea, e a difícil arte de relacionamento erótico e espiritual entre os dois sexos (tema, aliás, recorrente na sua discografia, e de forma marcante em “Stormcock”).
O resultado soa a uma mistura do passado (temas longos, longas introduções de guitarra, progressões melódicas que começam calminhas até chegarem a grandes descargas emocionais) com uma tentaiva, em parte conseguida, de regeneração, através de uma produção sofisticada, canções “mainstream” algo deslocadas como “Psycopath” e a intervenção vocal de um elemento feminino e adequadamente étnico, de Misumi, escolhida em primeiro lugar para interpretar a velha temática do “boy meets girl”. Só que, para Roy Harper, nada pode ser tão simples como uma vulgar canção de amor. Há sempre uma simbólica e uma loucura subjacentes na forma como transforma qualquer assunto numa questão de vida ou de morte. O mais engraçado é que, analisando bem, é, de facto, essa a questão. Quando, logo no início do tema de abertura, escutamos a forma como Misumi canta “My man” e Roy Harper responde exclamando “Woman!” como se acabssse de ler a obra completa de Kant, sentimo-nos na obrigação de acompanhar o enredo, necessariamente dramático, até ao fim. Mesmo que tudo acabe num “make love to me!” não necessariamente filosófico. O curioso é que a tarefa não é desgastante. Sobretudo para quem sente uma certa nostalgia pelos anos 70, época que, afinal, parece não estar tão distante assim da fase actual de Roy Harper. A propósito, informa-se que Ian Anderson, dos Jethro Tull, faz aqui uma perninha, na flauta (já agora, para manter ainda mais forte a ilusão, literalmente em equilíbrio numa perninha só), bem como Ric Sanders, o violinista exibicionista dos mais recentes Fairport Convention e Soft Machine. Faz sentido, hoje, compor e cantar canções assim? Pelos vistos sim. Quando, como é o caso, são feitas com a convicção do verdadeiro louco iluminado que é Roy Harper. Canções que, de tão antigas, quase soam a novidade.