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Hexagone – Vários – “Divulgados Segredos Do Hexágono”

Pop-Rock, Quarta-Feira, 03.07.1991


DIVULGADOS SEGREDOS DO HEXAGONO

A Hexagone foi a principal editora francesa dos anos 70, na área da música folk. Contando com o grupo Malicorne como cartão de visita, foi alargando o catálogo até albergar no seu seio tendências tão diversas como as experiências de renovação da música tradicional, de expressão francesa, a ortodoxia militante do tango de Juan José Mosalini, ou o genuíno reggae dos Steel Pulse. As capas, do tempo em que não era necessário poupar cartão, são pequenas maravilhas. Mas a mudança dos tempos implicou a reconversão para o formato CD de, para já, dez títulos deste catálogo, em boa hora distribuído entre nós pela MC-Mundo da Canção.



Surgidos na primeira metade dos anos 70, na altura em que, do outro lado da Mancha, o “folk revival” britânico atingia o apogeu, e em Frnaça, seguindo o exemplo do bretão Alan Stivell, se davam passos semelhantes, os Malicorne constituem, para muitos, o expoente máximo daquilo que é possível fazer de novo, sem atraiçoar o espírito original, a partir da infinita matriz da música tradicional.
Datado de 1974, “Malicorne” irrompe na cena folk com a imponência e majestade de um monarca que, por direito divino, se prepara para tomar posse do seu reino. Clássico nas premissas, o álbum evidencia já o leque de estímulos estéticos e a fabulosa capacidade geradora de imaginários luxuriantes fundados e forjados nas lendas e rituais celtas, de que a banda se viria a revelar formidável cultora.
Entre as rondas, “bourrées” e “branles” gaulesas, avultam as baladas divinamente interpretadas pelos irmãos Yacoub, Gabriel e Marie, e as sonoridades de ressonâncias medievais, arrancadas aos céus e aos abismos por uma instrumentação rica e diversificada, onde pontificavam o violino, “bouzouki”, saltério, bandolim, órgão de foles, cromorna, espineta e sanfona.
Para a história ficariam este e os álbuns seguintes, anteriores à decadência: “Malicorne” (foram editados três discos diferentes com a mesma designação), “Almanach”, “Malicorne”, “L’Extraordinaire Tour de France d’Adélard Rousseau” e “Le Bestiaire”.

Ciclos Mágicos

No ano seguinte, novo disco intitulado “Malicorne”. Histórias de guerras e de amores: a rendição amorosa de Henriette de France ao rei Carlos I de Inglaterra, em “Le mariage anglais”. Os passeios de Marion, “La fille aux chansons”, por um jardim encantado à beira-mar, até ser raptada por piratas. O voyeurismo juvenil do “galante indiscret” que olha a sua “nanette” na penumbra gelada da meia-noite. Motes gregorianos, “andros” bretões, canções nascidas das profundezas do cancioneiro occitano. Mil e uma maneiras de cantar o lado mágico do mundo.
“Almanach”, álbum conceptual, é um “pequeno almanaque das tradições, festas mágicas e procedimentos que devem ser seguidos durante os doze meses do ano”. Para Gabriel Yacoub, só o conhecimento das práticas mágicas e dos ciclos cerimoniais, relacionados com as estações do ano, permite “compreender em profundidade o fundo espiritual dos cantos tradicionais”.
“Malicorne”, álbum número quatro, aprofunda a vertente clássica do grupo: “Nous sommes sonneurs de sornettes”, gavota retirada de “Terpsichore”, recolha de danças antigas compiladas por Michael Pretorius, entre 1571 e 1621, “Daniel mon fils”, inspirada no canto litúrgico das “Vésperas”, ou “La fiancée du timbalier”, escrita com base numa “pastiche” de Victor Hugo sobre a poesia medieval, projectam os Malicorne na busca do alicerce definitivo que sustenta o mundo e fundamenta a liberdade. Histórias sem fim, cíclicas, de transformações, típicas da mitologia celta: “La blanche biche” conta as desventuras da deusa Sarv, meio mulher, meio raposa, numa complexa polifonia vocal, em que a voz de Marie Yacoub se eleva sobre um “órgão de vozes” celestial.
O sonho prosseguiria, já na Elektra, com “L’Extraordinaire Tour de France…” (viagem iniciática de um pedreiro-livre pelo país de França) e “Le Bestiaire”. “Le Balançoir en Feu” e “Les Cathédrales de l’Industrie” pouco ou nada têm que ver com a aventura inicial.

Quintas-essências

De certa forma discípulos dos Malicorne, os La Bamboche constituem outra importante coluna do templo. Com quatro álbuns gravados (dois de título homónimo, “Quitte Paris” e “Née da la Lune”), os La Bamboche, liderados por Jean Blanchard – músico que deverá vir a Portugal, durante os II Encontros da Tradição Europeia, a realizar brevemente -, enveredam, na fase Hexagone, por uma via mais tradicionalista, recorrendo às danças rurais e ao “sabor a terra” da sanfona, do acordeão e da rabeca. A editora optou, para já, pela edição da colectânea “Quintessence” (genérico igualmente utilizado para os Malicorne, num e noutro caso subintitulado “pequeno sumário das suas mais belas cnções…”).
“Le Grand Bal Folk” reúne os Malicorne, La Bamboche, La Chiffonie e Le Grand Rouge na celebração feérica das danças rurais (na capa referem-se as “bourrée”, valsa, polka, mazurka, marcha “scottish”, giga, gavota e “branle”…). Quem, nos tempos de hoje, sabe ainda dançar como mandam as regras?
Grupo emblemático da folk magiar, distante dos códigos enunciados pelos Vosjikas, Sebö Ensemble ou os Muzsikas, de Marta Sebestyen, só para citar alguns nomes editados em Portugal, os Kolinda caracterizam-se por uma aproximação sofisticada (e estilizada) ao folclore húngaro, sem renegarem as “vozes” de instrumentos tão característicos como o “gardon” (espécie de violoncelo esculpido num tronco de árvore), a espineta húngara ou o oboé turco (versão da popular bombarda bretã). Destaque para a voz profunda e misteriosa, de Agnes Zsigmondi e para os arranjos, tradutores da vertente mais soturna e dramática da sensibilidade magiar.
Completam a lista dos compactos agora editados pela Mundo da Canção os tangos de “Don Bandoneón”, superiormente interpretados a solo, no bandónio, por Juan José Mosalini, e a viagem guitarrística pelos universos de fábula de “Douar nevez” (“terra nova”), empreendida com algumas cedências de mau gosto ao rock por Dan Ar Bras, antigo companheiro de Alan Stivell, nos tempos de “Chemins de Terre”.
Do catálogo Hexagone constam ainda (por enquanto só em vinilo) outras obras dos já citados La Chiffonie, Kolinda, La Bamboche e Le Grand Rouge, bem como dos Vielleux du Bourbonnais (quatro sanfonineiros e dois gaiteiros), dos argentinos Lagrima e Tiempo Argentino e dos mexicanos Tequila. Por estas e por outras é que gostamos tanto dos franceses.

Malicorne – L’Extraordinaire Tour de France d’ Adélard Rosseau (conj.)

21.11.1997
FOLK
Pedro de Grenoble e o Companheiro Maçon
Vamos de espírito afiado e alma enamorada. A iniciação espera por nós. Adeptos ou não da escola maçónica, saibamos viajar até onde o fogo e a imaginação nos levar, com Adélard Rousseau, Mestre Carpinteiro e Companheiro do Dever. É a reedição, há muito aguardada, de “L’Extraordinaire Tour de France d’Adélard Rousseau”, álbum de 1978 dos Malicorne e uma das obras-primas da música de raiz tradicional francesa.

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Mas não se esgotam neste disco as novidades. Os fãs do grupo liderado por Gabriel Yacoub passam a partir de agora a ter também à sua disposição, além desta, a reedição do álbum seguinte dos Malicorne, “Le Bestiaire”, outra peça indispensável, o posterior “Le Balançoir en Feu”, “En Public”, uma interessante colecção de registos ao vivo no Canadá, da era dourada, e “Vox”, colectânea de temas vocais “a capella”, que inclui duas composições inéditas. Saúde-se ainda a chegada do álbum de Gabriel e Marie Yacoub, anterior aos Malicorne, “Pierre de Grenoble”, outra jóia de valor inestimável. Quem ainda não tem, pode além disso adquirir os álbuns a solo de Gabriel Yacoub, do acústico e tradicionalíssimo “Trad. Arr.” ao fabuloso “Bel”, passando pelo dispensável “Elementary Level of Faith”, o curioso “Quattre” e o novo “Babel” que já pouco tem a ver com o universo folk mas agradará, decerto, aos apreciadores da “chanson française”. Todas estas reedições, com o selo acousteack”, não têm qualquer relação com as anteriores, dedicadas aos primeiros quatro álbuns dos Malicorne, da responsabilidade da Hexagone.
Mas é “L’Extraordinaire Tour de France d’ Adélard Rosseau” que, em primeiro lugar, se constitui como álbum de aquisição obrigatória dos Malicorne. A começar pela apresentação, que inclui uma reprodução pormenorizada do livro com texto e gravuras narrando a viagem iniciática pelo território francês da personagem principal, passando pela gravação e, claro, terminando numa música sublime que, em França, na época, apenas os Mélusine terão conseguido igualar. Como já acontecera em “Almanach”, outra das obras máximas do grupo, compêndio hermético de rituais agrícolas e religiosos correspondentes aos doze meses do ano, “Adélard Rosseau” é um álbum temático onde a peregrinação física coincide com a iluminação interior. São diversas etapas dessa viagem, em forma de diário, que aqui nos são relatadas, em diversos registos e estados de alma, numa junção de “folk rock” electrificado (“La danse des damnés”, “Si l’amour prenait racine”, “A Paris, la grande ville”, com o convidado Dan Ar Bras na guitarra eléctrica), intricadas harmonias “a capella” (“La Conduite”, “Les Couleurs”) e baladas cuja magia é difícil de descrever. Tudo nos Malicorne batia certo. As polifonias criadas pelas vozes de Gabriel e Marie, como em “La Complainte du coureur de bois”, não têm explicação. a solo, o encantamento não era menor. “Le mari jaloux – La valse druze” e “Une fille dans le désepoir”, por Marie, ou “L’auberge sanglante” e “Compagnons qui roulez en Provence” (um arrasador épico, num tom que viria a ser recuperado, a solo, em “Bel”), por Gabriel, fazem-nos acreditar, por mais dolorosas que sejam as histórias, na felicidade, transportando-nos para outra dimensão na qual todas as fantasias são possíveis. Era ainda uma alquimia instrumental única, na maneira como os Malicorne combinavam as guitarras eléctricas e os sintetizadores com instrumentos antigos como a sanfona, a gaita-de-foles, a viola de amor, o órgão positivo ou a cromorna, para inventar a tradição do Futuro e emoções sem nome. Depois, muitos anos antes dos Hedningarna, já os Malicorne se entregavam à experimentação, com resultados que transcendiam a simples manipulação sonora, como se verifica na evocativa abertura do álbum, “La Conduite”, onde o som de serrotes cortando madeira, sob as indicações do mestre, simboliza a partida e a matéria-prima da obra iniciática. Os Malicorne provaram que a perfeição existe. Bastou seguirem o lema maçónico: “Peçam e recebereis; batam e abrir-vos-ão a porta; Procurem e acharão”. Façam como eles. (Acousteack, distri. MC – Mundo da Canção, 10)

“Le Bestiaire”, o álbum seguinte dos Malicorne, editado originalmente em 1979, é outra obra conceptual, desta feita um bestiário que analisa o aspecto mágico e simbólico dos animais. É um álbum mais “progressivo”, no modo como equilibra a vertente Rock e as raízes Folk acústicas. Logo no tema de abertura, “Les sept jours de Mai”, se percebe que o grupo reforçou a parte dos arranjos, tornando-os mais complexos e estruturando-os em diferentes andamentos. “la Mule”, por seu turno, é uma das típicas polifonias em que todos os elementos do grupo se juntam para criar intricadas catedrais a várias vozes (aqui, a recordar outro grupo progressivo, os Gentle Giant…). “La branle des chevaux” faz a aliança da Música Antiga com a energia dos grupos da actual vaga escandinava. A música medieval, na tónica dos Gryphon, marca presença em “Le ballet des coqs”, aparecendo a veia experimental no bizarro “La chasse gallery”, no qual a voz de Gabriel volta a mostrar toda a sua versatilidade e poder expressivo. Ele e Marie sobem às estrelas montados numa sanfona astral, num dos temas mais misteriosos e de maior beleza de “Le Bestiaire”, “Les transformations”, sobre o poder mágico que permite a um ser humano transformar-se num animal a fim de poder realizar os seus desejos. (Acosuteack, distri. MC – Mundo da Canção, 9).

Em 1973 os Malicorne ainda não eram nascidos, mas no cérebro de Gabriel et Marie Yacoub germinava já a semente do que viria a ser uma das músicas de raiz tradicional mais originais de sempre. Foi nesse ano que o então casal (desgraçado o dia em que o francês se divorciou dela para casar com uma americana…) gravaram “Pierre de Grenoble”, um álbum inteiramente tradicional mas onde já eram perceptíveis algumas das direcções que iriam ser seguidas pelos Malicorne: o gosto e o requinte das vozes (“Le prince d’Orange”, “La fleur de Lys”, para comparar com a versão do mesmo tema incluída em “Le Galant Noyé”, pelo colectivo de músicos do clube Le Bourdon), a exploração dos timbres e das “drones” quentes da sanfona e da gaita-de-foles, e uma percepção clara de um modo de trabalhar sobre o reportório tradicional francês, no sentido de ser criada uma música inteiramente original. Menos sofisticado do que a música dos Malicorne, umbilicalmente ligado às raízes tradicionais (compare-se o modo como Marie usava a voz, aqui e nos Malicorne), “Pierre de Grenoble” constitui outra peça-chave para se perceber a génese de todo o “folk revival” que teve lugar em França nos anos 70, fora da Bretanha, personificado, de forma superlativa, além dos Malicorne, por grupos como os Mélusine, La Bamboche, Maluzerne e Le Grand Rouge. Deleitem-se a ouvir o título-tema e fiquem a saber que o psicadelismo espreita onde menos se espera… (boucherie Productions, distri. MC – Mundo da Canção, 9).

Já nos tempos que correm, continua a haver quem prefira as sonoridades mais profundas e ancestrais das sanfonas e das gaitas-de-foles à futilidade das cordas dedilhadas. É o caso do Trio de Patrick Bouffard – Patrick Bouffard, sanfona, Benoit Mager, gaita-de-foles (“cornemuse”), e Cyril Roche, acordeão diatónico – que em “Revenat de Paris…”, que julgamos ser o seu álbum de estreia, assinam uma música de tonalidades envolventes e de uma sensualidade rítmica e melódica que não deixa de fazer lembrar o primeiro álbum dos Ad Vielle Que Pourra. Inteiramente instrumental e contando com a presença de vários convidados, “Revenat de Paris” esgota praticamente as combinações possíveis entre aqueles três instrumentos, com a vantagem de que em nenhuma ocasião a música soa a exercício de estilo e a garantia de que acima de tudo, para o Trio Patrick Bouffard, está o prazer do diálogo e da descoberta. (Boucherie Productions, distri. MC – Mundo da Canção, 9)