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Vários (Chieftains, Bakerswell, Panxty, Whitlebinkies, Alison Kinnaird, Battlefield Band, Gordon Mooney) – «O TEMP(L)O DOS CELTAS» (blitz | artigo de opinião | dossier)

BLITZ 13 FEVEREIRO 1990

O mercado discográfico nacional foi inundado recentemente por uma série de importações de obras relativas à música tradicional de raiz celta. No meio de tanta fartura muito terão ficado confundidos com a profusão de títulos e talvez pelo súbito interesse que este tipo de música volta a suscitar. Sobretudo para estes, que não sabem por onde começar, aqui vai como que um guia orientador das melhores opções de entre a oferta disponível


«O TEMP(L)O DOS CELTAS»

A música tradicional nunca esteve (ou esteve sempre, consoante a perspectiva) na moda. Uma ou outra vez sai um pouco mais da sombra, são referidos alguns nomes e discos (geralmente os piores e menos representativos) por parte de algum crítico entediado e a coisa rapidamente passa de novo à História. Assim, periodicamente, o fenómeno renasce por entre a confusão dos «media» que apressadamente atiram com o rótulo revivalista ao ar e já está.
Quanto à música celta propriamente dita, vai dispensando e desafiando a incompreensão, o desconhecimento e todas as manobras que se vão desenrolando à sua volta. É intemporal, tem quem verdadeiramente a ame e isso basta-lhe. Os discos que agora vão enchendo as prateleiras de algumas das nossas discotecas, chegam-nos do Porto e abrangem unicamente as músicas irlandesa e escocesa. Vejamos então o que sobressai de tanta quantidade que justifique a aquisição ou pelo menos uma audição atenta.
Da Irlanda, através dos selos Claddagh e Tara, eis uma parte do que vale a pena. Tomem nota:
BAKERSWELL – Na linha dos Chieftains, com a encantatória gaita-de-foles, violino e a harpa da senhora que costuma tocar com os Oisin. Verde e água. Irlanda até ao fim.
CHIEFTAINS – O emblema musical irlandês. À disposição dos interessados nada menos que 14 álbuns, desde o primeiro, de 1964, gravado em mono, até ao recente «Ballad of the Irish Horse». Os exagerados não se contentarão com menos do que a totalidade. Em todo o caso, para os mais prudentes e seletivos, aconselho o volume 5 (na altura editado pela Island) e o seguinte, «Bonaparte’s Retreat», este último contando com a voz dessa grande senhora que dá pelo nome de Dolores Keane (posteriormente nos De Dannan a atualmente movendo-se a solo em terrenos menos tradicionalistas). Para além, claro, dos respeitáveis Paddy Moloney, na gaita-de-foles, Sean Keane e Martin Fay, os violinistas de serviço e Derek Bell na harpa. Jigs, reels, airs, hornpipes, é dançar até não se poder mais, de preferência com o bom velho whisky a acompanhar.
PLANXTY – Na minha opinião (e decerto nas de muitos mais), o grupo mais original e inventivo ao nível dos arranjos e interpretações do cancioneiro tradicional irlandês. Por aqui passaram nomes lendários como Christy Moore, Liam O’Flynn, Andy Irvine, Donal Lunny ou Matt Molloy (que também tocou nos Chieftains e nos Bothy Band). Todos os álbuns são indispensáveis mais os mais fáceis de encontrar são «The Woman I Loved so Well» e «After the Break». Corram e não parem até os encontrarem.
WHISTLEBINKIES – Anda por aí o volume 4 que é excelente. Música bastante variada ao nível das combinações instrumentais, servida por intérpretes de primeiríssima qualidade. Ah, é verdade, são escoceses, embora gravem para uma editora rival.
Merecem ainda uma escuta atenta e aquisição por parte dos fanáticos que não deixam escapar nada, os álbuns a solo de Derek Bell («Carolan’s Receipt») e Matt Molloy («Stony Steps»), o quarto discos dos Oisin («The Jeannie C»). Só para os iniciados no grau mais elevado sugiro os discos de John Molineux com música tocada exclusivamente em saltério («Douce Amère») e finalmente temas tradicionais interpretados no cravo por Sean O’Riada («O’Riada’s Farewell»).
E passemos à Escócia.
ALISON KINNAIRD – «The Harper’s Gallery». A harpa escocesa (clarsach) em todo o seu cristalino esplendor. Alison também canta e nalguns temas é ajudada pelos seus amigos da Battlefield Band, em instrumentos variados, e pelo seu marido Robin Morton, patrão e dinamizador da Temple Records, cujo estúdio é mesmo uma antiga abadia perdida algures no meio do nevoeiro.
Exclusivamente de harpa é o álbum que gravou em dueto com Ann Heymann, uma americana de alma celta apaixonada pelas cintilações do instrumento, neste caso na variante irlandesa («The Harper’s Land»).
BATTLEFIELD BAND – Os reis da festa. A Escócia infinitamente recuperada e reinventada. Cada álbum que gravam é uma constante surpresa. Passam dos ambientes mais profundamente tradicionais para um reel baseado em «Bad Moon Rising» (esse mesmo, o dos Creedence) sem nunca perderem o pé nem o toque característico da música celta. Juntam descaradamente o som da gaita-de-foles ou de instrumentos medievais ao computador de ritmos. Sabem ser sérios e divertidos nas alturas certas. Retiram da música tradicional aquilo que ela tem de essencial e acrescentam-lhe a sua própria inspiração. São brilhantes. Adquiram sobretudo os álbuns «Home is Where the Van is», «There’s a Buzz», «Anthem for the Common Man», «On the Rise» e «Celtic Hotel». Excelente é também o disco a solo do multi-instrumentista da banda, Brian McNeill, «Unstrung Hero», com temas da sua autoria mas totalmente imbuídos do espírito antigo. Uma referência final para mais alguns discos, digamos que para especialistas: «O’er the Border» de GORDON MOONEY, o paraíso para os amantes das sonoridades das diversas gaitas-de-foles (no caso as variantes escocesas das Highlands e as «cauld Wind»), «Fonn is Furan» pela voz de FINLAY MACNEILL, inteiramente cantado em gaélico, os dois volumes de «Music in Trust», uma colaboração de Alison Kinnaird com os Battlefield Band para uma série televisiva dedicada aos monumentos e zonas históricas nacionais e mais um disco dedicado à harpa de MAIRE NI CHATHASAIGH («The new strung harp»).
Há pois muito por onde escolher e para complicar ainda mais a coisa, ainda por aí andam espalhadas algumas pedras preciosas, álbuns absolutamente indispensáveis para um «folkie» que se preze. São eles:
Ashley Hutchings/John Kirkpatrick: «The Compleat Dancing Master», Boys Of The Lough: «Farewell and remember me» e «Sweet Rural Shade», Blowzabella: «A Richer Dust», Cock & Bull: «Sacred Cows and concrete routs»; House Band: «The House Band», John Kirkpatrick/Sue Harris: «Stolen Ground», June Tabor: «Ashes and Diamonds», Late Night Band: «Kings of the Baroque’a’Billy», Martin Carthy: «Out of the Cut» e «Right of Passage», Roger Watson: «Chequered Roots», Richard Thompson: «In Strict Tempo», Shirley & Dolly Collins: «Love, Dead and the Lady» e Silly Sisters: «No More to the Dance», para além de tudo o que por cá existe de Stivell, claro.
… E depois o Universo imenso que falta: da Bretanha, da Galiza, da Provença, do resto da França, do Minho e Trás-os-Montes continuam a chegar os novos bardos e trovadores. An Triskell, Tri Yann, Malicorne, Mélusine, La Bamboche, Doa, Milladoiro, Pablo Quintana, Amancio Prada, Mont-Jòia, Le Bardon, Emilio Cao, Ronda dos Quatro Caminhos, Maio Moço e mais algumas boas dezenas de nomes mas para já estes chegam.
A Chama e Alma Celtas continuarão eternamente a brilhar.

Vários – “Nova Tradição” (a discoteca | world | artigo de opinião)

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 9 MAIO 1990 >> Videodiscos >> Pop

A DISCOTECA

NOVA TRADIÇÃO

A música folk parece ter vindo para ficar. Depois do trabalho de sapa empreendido pelos Nébula, responsável pela importação de algumas pérolas dos catálogos Topic e Plant Life, chegou a vez de novas editoras apostarem nas sonoridades tradicionais de origem celta.



Embora com as inerentes características comuns, a música popular tradicional de raiz celta é bastante rica e diversificada, consoante a região específica donde provém. Assim, Reino Unido e Irlanda, França, Espanha e Portugal, são as fontes donde incessantemente jorra e flui a torrente secular dos sons tradicionais, permanentemente recuperados e reformulados em novos contextos pelas gerações mais jovens. Dentro de cada país a música difere de região para região, de acordo com a especificidade das culturas respetivas. Entre Trás-os-Montes e o Alentejo, a Galiza e a Andaluzia, a Bretanha e a Provença, existe todo um manancial riquíssimo de sons e histórias ancestrais, de instrumentos e modos de os tocar, aberto a múltiplas perspetivas necessariamente ancoradas ao veio original.
O denominado “folk revival” arrancou em força em Inglaterra, nos finais da década de 60, graças ao esforço e originalidade pioneiros de grupos como Fairport Convention e Steeleye Span, que tiveram a ousadia de acrescentar a eletricidade à tradição. Na Irlanda, os Chieftains, Planxty e Bothy Band foram os primeiros expoentes do movimento. Em França, os Malicorne e o bardo bretão Alan Stivell cedo invadiram o resto da Europa com a sua visão especialíssima das origens, seguidos de imediato pelo aparecimento de discípulos como Mélusine, La Chiffonnie ou Maluzerne, entre uma infinidade de novos nomes.

Ibéria

Na Península Ibérica só mais tarde o fenómeno atingiu a importância e popularidade de que goza no presente. O GAC (Grupo de Acção Cultural) foi o responsável pelo nascimento do principal grupo português de recolha e adaptação do nosso cancioneiro, a Ronda dos Quatro Caminhos, de Vítor Reino, agora nos Maio Moço, cujo recente “Cantigas de Marear”, dedicado aos Descobrimentos portugueses, passou injustamente despercebido. Em Espanha, os galegos Milladoiro pegaram nas sanfonas e “gaitas” do bocado de Portugal que nos falta e gravaram obras belíssimas como “O Berro Seco” ou “Galicia de Maeloc”.
A nova editora Etnia, sediada em Caminha, parece apostada na divulgação da música tradicional dos nossos vizinhos, tendo lançado para já o fenomenal “El Paso De La Estantigua” dos La Musgana (que tocaram há bem pouco tempo em Lisboa, sem ninguém dar por isso), uma inspirada recriação do folclore de Castela, Andaluzia e Astúrias, recorrendo a instrumentos como o albogue ou o rabel, de nomes tão belos como as sonoridades que produzem. Rosa Zaragoza é outro dos nomes importantes da folk espanhola, tendo para já gravado dois discos, “Cançons de Bressol del Mediterrani”, recolha de músicas de embalar de zonas do Mediterrâneo como a árabe, a grega ou a da Occitânia, e outro dedicado à música sefardita dos judeus espanhóis do Sul do país. Da Galiza chegaram alguns discos de Amancio Prada, entre os quais a obra-prima “Caravel de Caravelles”.

Britânia

A Escócia, para além da Irlanda, é outro filão inesgotável da alma musical celta. Depois da Mundo da Canção, do Porto, espalhar pelas discotecas da capital obras de nomes fundamentais, como Battlefield Band ou o da harpista Alison Kinnaird, é a vez da VGM se lançar na descoberta das sonoridades ancestrais do país dos castelos e fantasmas, através de distribuição dos catálogos Iona e Springthyme. No primeiro avulta o grupo Ossian, intérprete de álbuns importantes como “St. Kilda Wedding” ou “Light On A Distant Shore”, além de discos a solo de alguns dos seus membros, como Billy Jackson (“The Wellpark Suite”, “Heart Music” e “The Misty Mountain”) e George Jackson (“Cairistiona”, auxiliado pela voz maravilhosa de Maggie MacInnes). Da Springthyme assinalem-se a inovadora técnica harpística de Savourna Stevenson, em “Ticked Pink”, o tradicionalismo militante dos Mirk, em “Tak A Dram Afore Ye Go”, em que não se coíbem de utilizar uma gaita-de-foles eletrificada, e o disco do grupo feminino Sprangeen, prova evidente de que afinal as fadas sempre existem.
Provado fica também que há um mercado nacional para este género de música. Numa época em que o caos vai progressivamente confundindo e baralhando os espíritos, talvez faça sentido que olhemos por fim para o berço comum e para a Terra que nos deu origem.