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Vários – “Nova Tradição” (a discoteca | world | artigo de opinião)

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 9 MAIO 1990 >> Videodiscos >> Pop

A DISCOTECA

NOVA TRADIÇÃO

A música folk parece ter vindo para ficar. Depois do trabalho de sapa empreendido pelos Nébula, responsável pela importação de algumas pérolas dos catálogos Topic e Plant Life, chegou a vez de novas editoras apostarem nas sonoridades tradicionais de origem celta.



Embora com as inerentes características comuns, a música popular tradicional de raiz celta é bastante rica e diversificada, consoante a região específica donde provém. Assim, Reino Unido e Irlanda, França, Espanha e Portugal, são as fontes donde incessantemente jorra e flui a torrente secular dos sons tradicionais, permanentemente recuperados e reformulados em novos contextos pelas gerações mais jovens. Dentro de cada país a música difere de região para região, de acordo com a especificidade das culturas respetivas. Entre Trás-os-Montes e o Alentejo, a Galiza e a Andaluzia, a Bretanha e a Provença, existe todo um manancial riquíssimo de sons e histórias ancestrais, de instrumentos e modos de os tocar, aberto a múltiplas perspetivas necessariamente ancoradas ao veio original.
O denominado “folk revival” arrancou em força em Inglaterra, nos finais da década de 60, graças ao esforço e originalidade pioneiros de grupos como Fairport Convention e Steeleye Span, que tiveram a ousadia de acrescentar a eletricidade à tradição. Na Irlanda, os Chieftains, Planxty e Bothy Band foram os primeiros expoentes do movimento. Em França, os Malicorne e o bardo bretão Alan Stivell cedo invadiram o resto da Europa com a sua visão especialíssima das origens, seguidos de imediato pelo aparecimento de discípulos como Mélusine, La Chiffonnie ou Maluzerne, entre uma infinidade de novos nomes.

Ibéria

Na Península Ibérica só mais tarde o fenómeno atingiu a importância e popularidade de que goza no presente. O GAC (Grupo de Acção Cultural) foi o responsável pelo nascimento do principal grupo português de recolha e adaptação do nosso cancioneiro, a Ronda dos Quatro Caminhos, de Vítor Reino, agora nos Maio Moço, cujo recente “Cantigas de Marear”, dedicado aos Descobrimentos portugueses, passou injustamente despercebido. Em Espanha, os galegos Milladoiro pegaram nas sanfonas e “gaitas” do bocado de Portugal que nos falta e gravaram obras belíssimas como “O Berro Seco” ou “Galicia de Maeloc”.
A nova editora Etnia, sediada em Caminha, parece apostada na divulgação da música tradicional dos nossos vizinhos, tendo lançado para já o fenomenal “El Paso De La Estantigua” dos La Musgana (que tocaram há bem pouco tempo em Lisboa, sem ninguém dar por isso), uma inspirada recriação do folclore de Castela, Andaluzia e Astúrias, recorrendo a instrumentos como o albogue ou o rabel, de nomes tão belos como as sonoridades que produzem. Rosa Zaragoza é outro dos nomes importantes da folk espanhola, tendo para já gravado dois discos, “Cançons de Bressol del Mediterrani”, recolha de músicas de embalar de zonas do Mediterrâneo como a árabe, a grega ou a da Occitânia, e outro dedicado à música sefardita dos judeus espanhóis do Sul do país. Da Galiza chegaram alguns discos de Amancio Prada, entre os quais a obra-prima “Caravel de Caravelles”.

Britânia

A Escócia, para além da Irlanda, é outro filão inesgotável da alma musical celta. Depois da Mundo da Canção, do Porto, espalhar pelas discotecas da capital obras de nomes fundamentais, como Battlefield Band ou o da harpista Alison Kinnaird, é a vez da VGM se lançar na descoberta das sonoridades ancestrais do país dos castelos e fantasmas, através de distribuição dos catálogos Iona e Springthyme. No primeiro avulta o grupo Ossian, intérprete de álbuns importantes como “St. Kilda Wedding” ou “Light On A Distant Shore”, além de discos a solo de alguns dos seus membros, como Billy Jackson (“The Wellpark Suite”, “Heart Music” e “The Misty Mountain”) e George Jackson (“Cairistiona”, auxiliado pela voz maravilhosa de Maggie MacInnes). Da Springthyme assinalem-se a inovadora técnica harpística de Savourna Stevenson, em “Ticked Pink”, o tradicionalismo militante dos Mirk, em “Tak A Dram Afore Ye Go”, em que não se coíbem de utilizar uma gaita-de-foles eletrificada, e o disco do grupo feminino Sprangeen, prova evidente de que afinal as fadas sempre existem.
Provado fica também que há um mercado nacional para este género de música. Numa época em que o caos vai progressivamente confundindo e baralhando os espíritos, talvez faça sentido que olhemos por fim para o berço comum e para a Terra que nos deu origem.

GAC – “Pois Canté!” – Série:”Os Melhores De Sempre – Música Portuguesa”

Pop Rock

6 de Dezembro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

GAC
“Pois Canté!”


gac

Como foi

O GAC-Grupo de Acção Cultural, nasceu das cinzas do CAC-Colectivo de Acção Cultural. O CAC formou-se seis dias depois do golpe de Estado do 25 de Abril, mais precisamente na madrugada do 1º de Maio. Ou, mais precisamente, “no dia 30 de Abril, à noite, no dia em que cheguei de França, na casa, salvo erro, do José Jorge Letria” – recorda José Mário Branco. O antifascismo estava na ordem do dia, do minuto, do segundo. Um primeiro manifesto foi subscrito por todos os que se situavam à esquerda do antigo regime. Mas as divergências surgiram cedo – por razões ideológicas. “Entre os PC e a extrema-esquerda e mesmo alguns PS como o Manuel Alegre”. O GAC, desde o início, assumiu-se como frente musical da UDP. José Mário Branco, maoísta e militante do partido, foi o seu mentor, no período anterior a “E Vira Bom” e “Ronda da Alegria”. Era ele o mais velho, comparado com “a malta que viera da Juventude Musical Portuguesa”.
“Pois Canté!” aparece dois anos depois do conflito ideológico que determinou a extinção do CAC. Antes fora já editada a colectânea de “singles” dispersos, “A Cantiga é uma Arma”, composta por “cantigas essencialmente heróicas, hinos…” Em relação a “Pois Cante!” (o título original leva dois pontos de exclamação, mas optámos pela poupança de caracteres), José Mário Branco fala em “fusão”: “Devido à nossa própria formação musical, às nossas origens e à influência dos mentores do que foi a resistência do canto popular em Portugal. Além da linha do José Afonso, o que havia era a linha do Lopes Graça e do Giacometti. Acontece que esse canto ideológico – que está nos primórdios do GAC no ‘A Cantiga é uma Arma’ – é muito marcado por toda a tradição do canto ideológico, com as cantigas heróicas do Graça mas também pela experiência que terá havido em mim, fruto do contacto com o Eisler, o Kurt Weill e o canto heróico brechtiano.”
Mas “Pois Canté!” transcende a simples afirmação ideológica. A presença da música tradicional já se fazia sentir: “Alguns de nós, como o Luís Pedro [Luís Pedro Faro, actual director musical do grupo coral feminino Cramol], tinham uma formação nesse campo, da etnomusicologia.” Estavam criadas as condições para se criar a tal “fusão”: “Dá-se um encontro entre uma atitude que se poderia dizer ‘de canção’, que era a minha, do Sérgio Godinho ou do Zeca, com uma atitude de ‘canto heróico’ e uma atitude de ‘canto etnográfico’, imitativo, reprodutor de técnicas tradicionais de canto e toque de instrumentos.”
Encontros que José Mário Branco define como “um correr de risco”: “Não queríamos cometer leviandades, encarar levianamente a fusão desses elementos.” Este respeito estendia-se “à ideologia, aos princípios revolucionários perfilhados”. Para ele, “a situação social portuguesa obrigou, serviu de motivação, para experimentar coisas extremamente diferentes do que era habitual”. “Fomos para a rua, para as fábricas, para os campos, pusemos a questão da utilidade, da eficácia imediata do canto para fins sociais.”
Mais pessimista, ou realista, o autor de “Ser Solidário” acaba por reconhecer que “a própria indisciplina do movimento social”, que motivava o grupo e sobre o qual “tudo se apoiava” – uma indisciplina “se traduzia também nas estruturas políticas” e, forçosamente, “no grupo” – “levou a que certos objectivos não tivesse dado resultado, aliás, como tudo o resto da revolução, que também não deu resultado”.
“Pois Canté!” foi um álbum revolucionário até no sistema de produção (própria) e distribuição: “Uma distribuição paralela por vias das organizações das colectividades, dos sindicatos e da organização política a que o GAC esteve ligado, a UDP.” A seguir, vem a parte pior: “Mas depois ficámos sem o dinheiro, nunca mais vinha, era uma indisciplina total. Tudo faliu por esse lado.”
José Mário Branco, enquanto homem político – “havia uma consciência do movimento social que tomou totalmente conta de mim” -, não impediu a afirmação de José Mário Branco enquanto músico. O que significa que a arte não ficou assim tão desvalorizada, por oposição à política, como as afirmações públicas do grupo quiseram fazer crer. “Pois, o que nos separava não era a questão artística, mas sim a de estarmos ao ‘serviço de quê’. O GAC definiu-se completamente de uma forma partidária, ao contrário, por exemplo, do Zeca, que nunca se definiu como tal.”
Neste ponto José Mário Branco embrenhou-se na evocação das diferenças ideológicas que o separaram, na altura, de José Afonso e de Fausto, nomeadamente a propósito do problema de Angola e dos partidos angolanos na luta anticolonial e pós-independência daquele território. “Comissário político do GAC”, ao serviço da UDP, como a si próprio se definia nessa altura, do mesmo modo que os Almanaque eram a extensão musical do MRPP, reconheceu por fim o carácter da música propriamente dita, tão ou mais revolucionária, para a época, que a mensagem ideológica e partidária. “Pois Canté!”, explica, é uma expressão beirã, trazida para o grupo por Fernando Laranjeira, que significa ‘Então não há-de ser?!’. Afirmação forte. Sem maneiras.
Como a “Cantiga sem maneiras”, na voz feminina de Toinas (Maria Antónia Vasconcelos), a propósito da qual José Mário Branco recordou a presença, em 1975, do GAC no Festival da Canção, com “Alerta!”: “Fizemos uma declaração de voto a dizer que não participaríamos na palhaçada de Estocolmo. Como, nessa altura, o júri do festival eram os próprios autores e compositores, demos zero a todas as cantigas concorrentes e a nós a pontuação máxima [risos]. O Sérgio nunca me perdoou. Ele estava lá, a concorrer com uma canção, ‘A boca do lobo’. Nem o Tinoco, que também concorreu. Foi uma declaração de voto completamente marxista-leninista!”

Como é

“No calor da luta, forja-se a união, rebenta a fúria de esmagar as cadeias para sempre…” É o “leitmotiv” deste manifesto marxista-leninista-maoísta que, dois anos após o golpe de Abril, abalou a música popular portuguesa e permitiu a explosão de projectos como Almanaque, Raízes e Brigada Victor Jara. No interior da capa, a toda a largura, o grafito “Liberdade, paz, pão, terra, independência” sintetiza a mensagem política veiculada por este projecto nascido das cinzas do anterior e efémero Colectivo de Acção Cultural (CAC). José Mário Branco, o seu mentor, assumia-se então como “comissário político do GAC”, representante da UDP, numa altura em que a política se sobrepunha à estética nos objectivos do grupo. Mas se “mais política e menos arte” era o mote, tal não impediu que “Pois Canté!” se preocupasse com o rigor formal, resultado, aliás, de centenas de sessões de “canto livre” realizadas ao vivo logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. Ombreando com os corais colectivos onde o mais importante era o grito de alerta ao povo, destacam-se temas como “Pois canté!”, com sopros arranjados por Luís Pedro Faro e voz de José Mário Branco, “Cantiga sem maneiras”, vocalizado por Toinas sobre um “ronco” de gaita-de-foles, “Cantiga do trabalho” e “Coro dos trabalhadores emigrados”, todos da lavra de J.M.B., e o belíssimo “Ir e vir”, composto e vocalizado por João Lóio. “Pois Canté!” abriu ainda o caminho para a integração da música tradicional num contexto mais socializado, de braço dado com o canto revolucionário. O álbum sucede a “A Cantiga é uma Arma”, primeiro disco de longa duração do grupo, onde estão recolhidos todos os temas dispersos até essa altura em “singles”. E se disparos poéticos como “Casas sim! Barracas não! As casas são do povo! Abaixo a exploração!” dificilmente atingem hoje o alvo, não é menos verdade que nenhum outro grupo, antes e depois do GAC, teve a coragem e a frontalidade de o dizer.