Junte-se uns pós de perlimpimpim “celta” e uma cosmética “new age” com uma produção asseada e uma voz brilhante como um azulejo de cozinha – e está encontrada a panaceia musical para todos os males do mundo. Versão feminina de Vangelis, Enya veste-se de fada em cada novo disco, envolvendo-se em brumas e estrelas cuidadosamente fabricadas em estúdio na criação de uma imagem de desenho animado em aventuras medievais. “The Celts”, estreia discográfica de Enya, composto para a série da BBC com o mesmo nome, consegue mesmo assim ser o seu melhor disco. Talvez porque, nesta altura, a senhora ainda mantinha um gosto real pela tradição da Irlanda, fruto da sua estada nos Clannad, nos álbuns “Crann Ull” e “Fuaim”. A voz rompe a camada de verniz, num par de temas enquanto as presenças de Liam O’ Flynn, na gaita de foles, e Arty McGlynn, na guitarra, garantem a credibilidade do projecto. Mais tarde, o excesso de doces causaria a indigestão. (6)
Como é bom viver num mundo assim! O mundo de Enya é um mundo de fadas (ela própria deve ter asinhas) oculto entre as brumas de Avalon. Enya canta com voz de anjo, coros celestiais, arco-íris de bons sentimentos, algodão-doce para saborear nos momentos agradáveis da vida. O dia é cinzento, Enya é azul e dourado. “Shepherds Moon” não é muito diferente de “Watermark”, o seu antecessor: melodias etéreas, a mesma linguagem inspirada na mitologia celta, onde não falta sequer desta vez um título como “Lothlorien” e, em “Smaointe”, cantado em gaélico, um solo de gaita-de-foles de Lyam O’Flynn, dos Planxty.
Faz pena ver uma voz como a de Enya, plena de potencialidades para o canto tradicional, perder-se entre tanta futilidade. “Shepherds Moon” é um disco bonitinho, não conseguindo nunca ultrapassar a beleza de superfície, desinteressado das raízes profundas que, afinal, lhe servem de inspiração. Enya, como a fada Sininho, sobrevoa a “Terra do Nunca”, sem mácula de dor nem de pecado. É bom viver num mundo assim! (5)
14.11.1997
Reedições
O Céu Pintado De Estrelas
Talvez porque o Natal está à porta, o mercado português está a ser inundado por uma quantidade de colectâneas e redições das chamadas “estrelas”. É uma boa oportunidade para decorar a estante com caixas de êxitos que, na maior parte dos casos, já toda a gente conhece.
Do monte de colectâneas e reedições que chegam ao mercado nesta altura, a caixa mais importante é, sem dúvida, a dupla correspondente à reedição de “200 Motels”, de Frank Zappa, obra de fôlego composta pelo génio entre 1967 e 1971 para a banda-sonora do mesmo nome. O álbum faz parte de uma nova série de “OST” (“Original Soundtrack”, “soundtrack”, em português, “som de traque”), da Rykodisc, cujo primeiro pacote inclui ainda as bandas-sonoras de “Carrie”, “Chitty, Chitty, Bang, Bang”, “It’s a Mad, Mad, Mad, Mad World” e “Octopussy” (da série James Bond), todas em “Deluxe Edition”, com apresentações impecáveis e uma reprodução dos “posters” de lançamento originais. Inexplicavelmente, estou a usar uma quantidade absurda de termos estrangeiros. Mas voltemos a Zappa. “200 Motels” não é o melhor álbum, longe disso, do homem dos bigodes. Mistura, em doses desiquilibradas, mas sem dúvida capazes de impressionar o desprevenido consumidor de pop no ingénuo ano da graça de 1971, sequências clássicas pela Royal Philharmonic Orchestra, apontamentos humorísticos e “rock ‘n’ roll (“roca e rola”, chega de estrangeirsmos) na veia (na veia?) dos Mothers of Invention (“Matas da Invenção”), como “Magic Fingers”, em duas versões. A reedição inclui ainda quatro “spots” (“potes”) publicitários originais feitos para a rádio e um livrete cheio de informação e fotos da fita. Sendo uma boa amostra da faceta mais erudita de Frank Vincent Zappa, “200 Motels”, não obstante, não se livra de cair ocasionalmente no aborrecimento, o que, sendo o seu autor quem era, não deixa de ser surpreendente. 200 motéis é muito motel. (Rykodisc, distri. MVM, 6)
Outro músico importante que já não petence ao mundo dos viivos é John Lennon, cuja memória volta a ressuscitar através de “Lennon Legend”, subintitulado “The Very Best of John Lennon”. É uma colectânea sem surpresas, que parte da apresentação de alguns dos temas mais famosos do ex-Beatle, como “Imagine”, “Mother”, “Jealous Guy”, sem esquecer a faceta mais politizada dos Plastic Ono Band, de “Instant Karma2 e “Power to the People”, o Lennon “rocker” de “Cold Turkey” e “Whatever gets you thru’ the night”, e o baladeiro romântico, de “Woman”, e esquerdista, de “Working Class hero2, passando pelo “reggae” de “Borrowed time”. O álbum termina, adequadamente, numa nota natalícia, com os manifestos pacifistas “Happy Xmas (war is over)” de “Give peace a chance”. Lennon ficou para a História como o Beatle rebelde, em oposição à imagem de esteta que ficou colada a Paul McCartney. Chamem-me nomes, mas a realidade é que o primeiro nunca chegou aos calcanhares do segundo, em matéria de composição de boas, clássicas canções. Mas é claro que Lennon sempre representou com outra convicção os valores politicamente correctos da sua geração, mesmo que os seus melhores momentos como compositor revelassem, afinal, um incorrigível romântico, capaz de escrever coisas tão belas e tão simples como “Love”, uma das grandes canções desta “Lenda”, que conservou até hoje toda a sua frescura. Só por isso devemos dar algum desconto a Yoko Ono. (Parlophone, distri. EMI-VC, 7).
Avancemos para gente para quem a rebeldia é conceito totalmente desconhecido. Mike Oldfield, menino-prodígio dos anos 70 que encheu os bolsos ao patrão da Virgin à custa do megasucesso “Tubular Bells”, transformou-se nos últimos anos num dos gurus da “new age”, ultrapassada a fase criativa que caracteriza os primeiros álbuns, “Tubular Bells”, “Hergest Ridge”, “Ommadawn”, “Incantations” e “Five Miles Out”, regressando ainda no mais tardio “Amarok”, antes de se eclipsar nas traseiras da vulgaridade. Foi então que o multiinstrumentista se lembrou da fábula da galinha dos ovos de ouro, partindo para um “Tubular Bells 2” de má memória que, mesmo assim, lhe terá feito reembolsar mais alguns milhões. A má notícia é que, a julgar pelo último tema desta colectânea, há já um “Tubular Bells 3” no prelo. Mas “XXV – The Essential Mike Oldfield” (XXV porque o velho Mike já leva XXV anos de carreira…) dirige-se, em primeiro lugar, aos saudosistas, reunindo excertos das longas composições que ocupavam invariavelmente lados inteiros dos discos em vinilo, pertencentes aos quatro primeiros álbuns, atrás mencionados, seguidos de uma canção gira de “Crises”, “Moonlight Shadow”, vocalizada por Maggie Reilly, e do “single” “Portsmouth”. Depois vem o pior, dois temas de “Tubular Bells 2” juntos com nacos de “Songs of Distant Earth” de “Voyager”, típicos da fase “tecno prog” do músico. Informa-se ainda V. Excªs que Mike Oldfield era o extraordinário guitarrista que acompanhava Kevin Ayers, no não menos extraordinário grupo The Whole World. Mudam-se os tempos… (Warner Bros., distri. Warner Music, 5).
Podia perfeitamente ter pertencido ao grupo de cantoras que, ao longo dos anos, foram dando voz feminina à música de Mike Oldfield, como Maggie Reilly e Sally Oldfield. Só não aconteceu porque não calhou. Para Enya, o destino foi outro. Depois de abandonar os Clannad em 1982, para onde entrara já na fase descendente do grupo, Enya criou o seu estilo pessoal, tirando partido de uma voz incomparavelmente doce e de um tipo de produção dirigido ao mercado “new age” de influência “celta” (a “celtic ambient”, como já lhe chamam na “Folk Roots”…), o que lhe valeu a conquista do prémio de “melhor álbum” nesta categoria, em 1995, com “The Memory of Trees”, e de um “Grammy”, quatro anos antes, com “Sheperd Moons”. “Paint the Sky with Stars: The Best of Enya” passa em revista alguns dos melhores momentos da cantora, incluindo, a abrir, o altamente trauteável “Orinoco Flow” e “The Celts”, título-tema do álbum que melhor soube recriar as envolvências celtas que sempre a inspiraram. Os indefectíveis têma ainda ao seu dispor um par de inéditos, “Only if…” e “Paint the sky with stars”, um belo título, ao nível do cuidado extremo posto na embalagem, jogando nas cores e nas texturas de uma proposta musical e de um rosto que, goste-se ou não, possuem um incomparável poder de sedução. (Warner Bros. distri. Warner Music, 6)
Mais uma senhora, a terminar. Esta mais recente e cultivadora de outro tipo de imagem. Falamos de Sheryl Crow, que em “Special Edition” (o álbum editado recentemente, “Sheryl Crow”, acrescentado de um segundo CD com actuações ao vivo) confirma estar alguns furos acima da chusma de candidatas a estrelas que todos os dias vão aparecendo com o fito de tentar chegar aos “tops”. Feita a aposta numa produção seca e numa criteriosa selecção de canções, tudo se conjuga para fazer brilhar ao máximo a voz de Sheryl, que aqui se revela capaz, tanto de recriar o neo-country, em “Redemption Day”, como de fazer a evocação de John Lennon, em “Ordinary Morning”, ou de se afirmar como veículo de uma “rocker” de cabelos ao vento. Para os registos, fica uma canção absolutamente a guardar no cofre das excepções, a belíssima e interiorizada “The Book”, virando as mesmas folhas de Suzanne Vega, e a ideia de que um corte no alinhamento poderia valorizar ainda mais um álbum onde o sentido comercial não dispensa um elevado nível de exigência. (A&M, dustri. Polygram, 6).