Isabel Silvestre – “A Portuguesa”

POP ROCK

13 de Novembro de 1996
portugueses

Miraculosa Rainha dos Céus

ISABEL SILVESTRE
A Portuguesa (8)

Ed. EMI-VC


is

A estreia a solo da solista do Grupo de Cantares de Manhouce vem colocar algumas questões engraçadas à música popular portuguesa. A começar pela própria “desvirtuação”, ou inversão do termo. Quando Isabel Silvestre canta autores urbanos como Rui Veloso, José Mário Branco ou João Gil, com a pronúncia carregada do Norte e a inocência de quem (ainda) vive longe do caos, o que estamos a ouvir é a génese de uma outra música tradicional ou o sortilégio de um encontro do acaso? Quando o hino republicano é cantado como se fosse uma oração, com os canhões trocados pela prece de uma oração e o gemer de uma sanfona, a que mutação assistimos? Como reagir quando “A Portuguesa”, de gritaria republicana, se transmuta em suave invocação monárquica?
Isabel Silvestre será provavelmente alheia a este género de teorizações, sendo suas “apenas” a voz e a pureza de alma que pôs em cada interpretação. Dirija-se então o questionário ao produtor João Gil, decerto consciente dos efeitos de perplexidade que “A Portuguesa” irá provocar. Tradicionais, dos genuínos, há apenas “Miraculosa Rainha dos Céus”, “E lá vem o Maio” (cantado “a capella”), “Santa Combinha” e “Muito lindo é o céu”. Os restantes temas pertencem a António Variações, João Gil, José Mário Branco, José Afonso, Rui Veloso, José Niza e ao brasileiro Luiz Gonzaga, com o clássico “Asa branca”. A todos eles Isabel Silvestre concedeu o dom da transmutação porque a todos eles se entregou sem qualquer tipo de reservas. E se as melodias ganham em singeleza e em diferença (veja-se o caso de “Asa branca”, tornada cadência transmontana, num arranjo que acaba dominada pela caixa e gaita-de-foles) – com a participação discreta da sanfona de Carlos Guerreiro, o violino de Manuel Rocha, a braguesa, bandolim e cavaquinho de José Barros, as percussões de João Nuno Represas, o acordeão e gaita-de-foles de Ricardo Dias e a guitarra acústica de João Gil -, é ainda no modo como as palavras se iluminam na voz da cantora beiroa que “A Portuguesa” se revela um objecto fascinante.
“A ronda do soldadinho”, de José Mário Branco, ou o “Cantar de emigração”, da poetisa galega Rosália de Castro, são dois dos exemplos maiores aos quais a voz confere uma mais-valia aos originais. E se a abertura, “Deolinda de Jesus”, de António Variações, é a única ocasião onde a ligação letra-voz ronda perigosamente o “kitsch”, logo a seguir, essa ligação é redimida em “A gente não lê”, momento verdadeiramente sublime de “A Portuguesa”. Aqui é o Portugal mais profundo, da grande solidão da ilha açoriana que se dá a ouvir. Aqui são a música de Rui Veloso e as palavras de Carlos Tê que tiveram o privilégio de encontrar a interpretação ideal. Aqui é a erupção de tudo o que já esquecêramos do que somos: “Ai Senhor das Furnas/ que escuro vai dentro de nós/ rezar o terço ao fim da tarde/ só para espantar a solidão/ e rogar a Deus que nos guarde/ confiar-lhe o destino na mão/ Que adianta saber as marés/ os frutos e as sementeiras/ tratar por tu os ofícios/ entender o suão e os animais/ falar o dialecto da terra/ conhecer-lhe o corpo pelos sinais/ E do resto entender mal/ soletrar, assinar em cruz/ não ver os vultos furtivos/ que nos tramam por trás da luz (…) Fica-se sentado à soleira/ a ouvir os ruídos do mundo/ e a entendê-los à nossa maneira (…) Carregar a superstição/ de ser pequeno, ser ninguém/ mas não quebrar a tradição.”
Perdoem-nos tão longa citação. Mas é porque poucas vezes um texto potenciou tanto a sua intensidade dramática. Um milagre. Para ouvir sempre. Com devoção.



More República Masónica – “Equalizer”

POP ROCK

6 de Novembro de 1996
portugueses

More República Masónica
Equalizer

EXIT ESTUDIO, DISTRI. MÚSICA ALTERNATIVA


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Um ano depois da edição de “Blow your Mind (with Supersonic Meditation)”, os More República Masónica apuraram o seu gosto de melómanos pelo rock’n’roll das últimas três décadas, recorrendo desta feita aos serviços do produtor Marsten Bailey, na procura de um som mais sofisticado. Ou mais “equalizado”… Agora, por trás da barreira das guitarras eléctricas, tão saturadas de adrenalina e de memórias como no álbum anterior, chegam à superfície da mistura outro tipo de sonoridades, ora acústicas, ora com proveniência exterior, como o violino de Mário Resende, dos Duplex Longa, a conferir a “Bloom” e “Roads” o mesmo tipo de tempero que John Cale adicionava, com a sua viola de arco, à metalomecânica dos Velvet Underground. Rock com cheiro a flores murchas e consistência de óleos pesados continua a ser o domínio preferencial dos More República Masónica, desta feita com abertura ao “reggae”, em “Grounded song”, a inclusão de uma “pastiche” de Frank Black ao volante dos Cars, em “Karaoke nightmare”, e o mesmo ouvido atento às sirenes do som de Detroit, de bandas como os Stooges e MC5. Ou ainda o registo alucinatório-mutante dos Chrome, num tema de violência terminal, como “Parasite”. O que significa que para os MRM psicadelismo é sinónimo de “bad trip”, na equalização psicótica de épocas e registos díspares em que o “speed” e o “riff” recortado a canivete são factores comuns de mais esta sessão de “meditação supersónica” a que a divagação sonambúlica, na versão de “Roads”, dos Portishead, vem pôr termo. (7)



Rodrigo Leão & Vox Ensemble – “Theatrum”

POP ROCK

16 de Outubro de 1996

RODRIGO LEÃO & VOX ENSEMBLE
Theatrum (8)

Columbia, distri. Sony Music


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O maior “pecado” da pop continua a ser o de querer deixar de o ser. Rodrigo Leão insiste na menção a referenciais pop, em relação ao seu trabalho, mas a evidência mostra que a sua alma deriva hoje por outras frequências do espectro musical. “Theatrum”, segundo álbum com os Vox Ensemble, depois de “Ave Mundi Luminar” e do EP “Mysterium”, é o típico objecto que é fácil denegrir, sob as acusações de “pretensiosismo” e de acomodação a uma leitura simplificada da música clássica.
Seria fácil classificar “Theatrum” como a mera procura do bonito e do politicamente correcto, com base em referências que vão de Michael Nyman a Mozart e Górecki. Ao invés, estamos perante algo mais do que simples teatro. Ao contrário de “Ave Mundi Luminar”, onde é por demais óbvia a sedução que a lógica das estruturas formais exerceu sobre Rodrigo Leão, em “Theatrum” percebe-se um arrebatamento e uma interiorização das formas “eruditas” que colocam a sua música acima, ou para além, da descodificação imediata das formas.
A teatralização aqui é da ordem do drama, ou da tragédia, no sentido clássico grego, e de pulsações cuidadosamente revertidas para uma linguagem que se assume como liturgia. Com o Voz Ensemble e a ajuda do coro Ricercare juntou Rodrigo Leão uma tapeçaria de tristeza onde as formas clássicas se fundem com a artilharia gótico-industrial de uns In The Nursery (“Locus secretus”) e a computação tecnológica, aspecto no qual o seu trabalho se revela particularmente notável, seja na sequenciação dos “samples” percussivos ou ambientais, seja na simulação de mil e um arcaísmos, de que são exemplos os excelentes “Dies irae”, “O corredor” e “Contra mundum”.
“Theatrum” despede-se e celebra o luto de uma música, a pop, em agonia. Ou de algo mais, na lamentação final, cantada em russo – “O novo mundo” – tal como no início, “In memoriam”, a bailar no som de sinos que sabemos serem os da loucura…