Né Ladeiras – Entrevista – “Invocação Dos Mestres”

Pop Rock

2 Abril 1997

Né Ladeiras canta Fausto com dedicatória ao lobo

INVOCAÇÃO DOS MESTRES

Fausto. Né Ladeiras. Dois representantes de uma espécie em vias de extinção, a dos criadores solitários que invocam os génios à luz da lua. Em “Todo Este Céu”, a cantora de “Traz-os-Montes” escolheu preencher a totalidade da voz com as canções do navegante de “Por Este Rio Acima”, a quem chama “mestre”. Sob a égide do lobo, “um animal com códigos muito especiais” – “ponte entre a terra e o céu”.


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Né Ladeiras cresceu e aprendeu a ouvir a música de Fausto. Os anos passaram. Os astros actuaram. Ultrapassada a cordilheira da música tradicional de Trás-os-Montes, a cantora pôs, finalmente, em prática, um projecto há muito acalentado: um álbum de canções de Fausto. Dívida – ou dádiva – interior, da discípula ao mestre. Segue-se a crónica de uma relação ardente. Entre lobos.
PÚBLICO – O lobo é o tema central de “Todo Este Céu”. Por que razão o escolheu?
Né Ladeiras – O lobo é a ponte entre a terra e o céu, entre o microcosmos e o macrocosmos, pela forma como invoca, através do uvio…
P. – Além dessa conotação mística, há também uma componente ecológica?
R. – Sim. Quis igualmente chamar a atenção para a existência do grupo “Lobo” e para o Centro de Recuperação do Lobo Ibérico. Quem pertencer ao primeiro pode, se quiser, adoptar lobos. Não se trata de levar lobos para casa, claro, mas de dar uma contribuição para a manutenção deles naquele centro que é o único em Portugal e luta para que a espécie não se extinga de vez. Presentemente, pensa-se que existam apenas cerca de 200 lobos no nosso território.
P. – À primeira vista, não se percebe muito bem qual a ligação entre o lobo e a obra de Fausto…
R. – O lobo é um animal com códigos muito especiais, códigos de honra, uma forma de vida em alcateia, faz as coisas sozinho. Penso que o trabalho do Fausto tem sido um trabalho bem solitário.
P. – Quando é que decidiu fazer este álbum?
R. – Há muito tempo que andava na minha cabeça. Mas achava que não tinha crescido o suficiente para interiorizar as músicas do Fausto. Ouvi-o pela primeira vez em 1969, na rádio, num tema chamado “Oh pastor porque choras”. A letra falava de um pastor com cerejas nas orelhas, uma linguagem que, para uma criança, representava a abertura de todo um imaginário. E a música acompanhava esse imaginário. Comprei logo o “single”, pedi à minha mãe dinheiro. Mais tarde conheci Fausto, pessoalmente, na altura do filme “As Guerras do Mirandum”, do Fernando Matos Silva, e em que eu fazia parte dos Trovante. Gravámos dois temas juntos, “Os mandamentos do vinho” e “Eu casei com a bonita”. A partir daí fui acompanhando sempre os concertos dele.
P. – Em “Todo Este Céu” pediu conselhos ao compositor? Ele fez-lhe sugestões?
R. – Opiniões e conselhos. Nós, os discípulos, pedimos sempre conselhos aos mestres. Durante dois anos encontrámo-nos muitas vezes, sempre que eu vinha a Lisboa, para falar única e exclusivamente deste trabalho. A primeira vez aconteceu no estúdio, quando ele gravou comigo “A linda pastorica”. Nessa altura disse-lhe que estava cheia de vontade de fazer este trabalho. Ele olhou para mim, sem dizer nada. Passados uns tempos, voltei ao assunto e ele, aí, percebeu que eu estava a falar a sério. A obra do Fausto é imensa e eu achava que podia fazer um CD duplo. Tinha trinta e tal temas. Não queria deixar nada de fora. O Fausto fez-me ver que tinha que ser mais realista e que este meu entusiasmo pela obra dele teria que ser bem planeado. Acabei por fazer uma selecção, explicando-lhe as razões da escolha de cada tema. Descobri e revelei-lhe que a incidência recaiu nos temas em que ele era mais místico.
P. – Como definiria esse lado místico de Fausto?
R. – Está presente em temas como “Diluídos numa luz” ou “O despertar dos alquimistas”, que por acaso não aparece neste álbum, mas que passará a fazer parte do espectáculo. É uma espiritualidade que entendo à minha maneira. Não sei como é que ele compõe, que fontes de inspiração é que tem… Agora, aquilo que ele transmite aos outros, aquilo que ele me deu a mim, durante este anos todos, foi um encontro com o transcendente, com o que está “para além das cordilheiras”, o que está “Por Este Rio Acima”. Apercebi-me de que não falava só da matéria. Comparando com outros grandes compositores, como o Zeca Afonso, o José Mário Branco ou o Sérgio Godinho, o Fausto foi o único a falar de coisas das quais mais ninguém falava. Coisas menos óbvias.
P. – É difícil dissociar, em Fausto, a composição da interpretação. Procurou imprimir um cunho pessoal às canções ou, pelo contrário, seguir certas regras codificadas pelo compositor?
R. – O que me preocupou mesmo foi interiorizar cada palavra. Claro que é a minha forma de cantar, mas talvez se note mais neste trabalho a minha proximidade de Fausto, sempre são 20 anos a ouvi-lo, é óbvio que se apanha sempre coisas das pessoas de quem gostamos muito. Às vezes até se diz que as pessoas que se amam ficam parecidas. É natural que tenha alguns requebros e acentuações semelhantes aos dele.
P. – De toda a discografia de Fausto, há algum disco com particular significado para si?
R. – Amo-os a todos. Toda a gente fala do “Por Este Rio Acima” como a sua obra máxima, mas depois, e antes, há outros discos magistrais. A “Madrugada dos Trapeiros”, “História de Viajeiros”, mesmo o próprio “Beco com Saída” e o primeiro, simplesmente “Fausto”, de 1969. E “Para Além das Cordilheiras”, outro trabalho magistral, e “A Preto e Branco”, que foi recebido e tratado de forma um bocado injusta, onde ele apresenta duas coisas importantes, a forma de compor quando tinha 18 anos e os grandes poetas africanos. Daí eu ter escolhido “Flagelados do vento Leste”, de Ovídio Martins, para o meu disco. Estou ligada misticamente a África, pela minha própria corrente de canbomblé. Mas a maior percentagem vem das “Crónicas da Terra Ardente”. Vi-me lá dentro, dentro daquela viagem. Senti-me como a ama que tinha o menino nos braços e via o barco a afundar-se. Entrei dentro daquele filme.
P. – No seu caso, como no de Fausto, a espiritualidade co-habita com uma postura de esquerda, a qual, por essência, é materialista…
R. – É uma pergunta que tenho feito a mim mesma nos últimos 20 anos! Sou, de facto, uma pessoa de esquerda… As pessoas torcem o nariz e atiram-me com aquilo a que chamam “as minhas crendices”… A espiritualidade está intimamente ligada a uma visão de esquerda do mundo, porque tem a ver com a justiça feita aqui. Para além de tudo o que possa acontecer do lado de lá, as coisas têm que acontecer aqui. Esta desigualdade social, esta violência, estas injustiças cometidas pelos homens, ainda estou para ver uma atitude da direita em relação a estes problemas. No plano espiritual, trabalhamos para isso. Preocupamo-nos em termos ecológicos, com as pessoas, com as desigualdades, não temos é, de facto, um discurso materialista. Apelamos àqueles que reagem, que nos ajudam de vários pontos do Cosmos.
P. – Um partido político fundado por si, seria fantástico!
R. – Não sei se teria jeito para isso. Só tenho jeito mesmo é para colaborar nos meus rituais, que são os Nação Nagô, o candomblé originário do Congo e de Angola. É aí que apelo aos meus orixás, que nos ajudem. O mundo está a escurecer.
P. – No meio dessa escuridão crescente, ainda é possível ver “Todo Este Céu”?
R. – Tem que haver olhos para atingir esses céus e esses céus só podem existir, só têm razão de existir, se os olhos estiverem abertos. Os olhos e o coração. “Todo Este Céu” é o título de um tema das “Crónicas da Terra Ardente”, do Fausto, e o meu firmamento. Foi como se ele me tivesse aberto uma janela e eu, pela primeira vez, tivesse visto um céu.
P. – Este disco é também um acto de gratidão?
R. – Era uma coisa que tinha de acontecer neste tempo. Não podia adiar mais nem poderia ser antecipado. O meu próximo passo é um disco sobre o paganismo e a religiosidade – onde existe um existe a outra – de três regiões portuguesas: Beira Baixa, Beira Alta e Trás-os-Montes. Vou andar pelo menos um ano e meio no campo, a percorrer esses lugares. É preciso viver, para se transportar e transmitir o que são a religiosidade e o paganismo, ir ao congresso de Vilar de Perdizes, às procissões, falar com a mulher das ervas que faz as mezinhas, ouvir cantar…
P. – Essa deambulação remete-nos de novo para o tema do início da conversa. A Né é uma loba solitária?
R. – Sou. Estou sempre a magicar. Sou uma pessoa de projectos. Gosto muito de trabalhar com outras pessoas, com outros músicos, de ter gente à minha volta, mas talvez seja o meu feitio, ter ideias que num grupo eram capazes de chocar ou de não ser bem entendidas.



José Peixoto – Entrevista – “Um ‘Artigo Para O Espírito'”

Pop Rock

19 Fevereiro 1997

José Peixoto lança, a solo, “As Vozes dos Passos”

UM “ARTIGO PARA O ESPÍRITO”

Ao cabo de três anos de viagem constante com os Madredeus, José Peixoto encontrou o espírito da paz. Em “As Vozes dos Passos”, o seu novo álbum, há uma guitarra acústica, um som solitário e uma procura. A voz dos passos é a voz do silêncio.


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José Peixoto, guitarrista dos Madredeus, é um nómada da música. Um espírito livre, em trânsito entre o redemoinho das digressões com o grupo e as longas praias do seu Sul. Parou no intervalo desse percurso para falar ao PÚBLICO.
PÚBLICO – “As Vozes dos Passos” refere-se mais do que uma vez ao tempo e à viagem. Quando e onde se processou a sua gestação?
José Peixoto – A ideia foi concebida ao longo da série de viagens que integraram a última digressão dos Madredeus, três anos, desde que entrei no grupo, de viagem permanente.
P. – É um disco de depuração máxima. Uma guitarra acústica e uma solidão.
R. – É capaz de ser a expressão mais íntima. Ter um instrumento só, capaz de veicular todas as ideias num universo monotímbrico.
P. – O risco não é maior?
R. – Em termos comerciais, é mais arriscado. Só que nunca coloquei, em relação à música que faço, o problema nesses termos. Não vivo nem nunca dependi da música que faço. Assim, sinto que gozo de toda a liberdade para explorar o que me apetecer. Sem quaisquer pressões.
P. – O álbum pode ser um escape à rotina dos Madredeus?
R. – Sim, é verdade. A viagem deu-me o tempo e o isolamento necessários. Durante a viagem, em que se não é o aeroporto é o hotel, ou o carro, ou o camarim, estabelece-se uma rotina que, se não é combatida com uma postura criativa permanente, pode levar a uma cristalização. Andar de um sítio para o outro sem aproveitar, sem viver o tempo.
P. – Esse isolamento é um refúgio?
R. – Sobretudo é haver tempo para poder estar comigo mesmo. São viagens de 500, 600 quilómetros sentado num autocarro, durante os quais se pode ler ou ouvir música, ou, pura e simplesmente, penar, ir aprofundando certas ideias.
P. – Anotava essas ideias, tocava, como é que fazia?
R. – Sobretudo quando podia estar num sítio sentado, para poder tocar. As viagens em si, em autocarros ou aviões, podem definir certos estados mentais que posteriormente, sozinho, posso materializar, dar-lhes uma expressão sonora. Não quer dizer que ande a escrever as partituras nos autocarros ou nos aviões…
P. – Há alguma razão especial para ter dividido o disco em duas partes distintas?
R. – Os “Apontamentos de Viagem” foram feitos mesmo nesse período de viagem. O segundo capítulo, “Das Vozes”, é música cujo miolo já estava definido, embora a arte final também fosse feita em viagem.
P. – O epílogo tem um título enigmático, “A espera”. Espera de quê?
R. – A espera em si. A espera, não como uma atitude passiva, mas como uma atitude expectante.
P. – Já falou em viagens exteriores. E a interior?
R. – É uma viagem interior permanente. Se partirmos do princípio que a vida pode ser encarada com um processo de auto-consciência, da pessoa se ir encontrando, essa procura de uma voz interior, é uma procura permanente. Vivida segundo a segundo. Tento aproveitar o mais possível o privilégio de estar vivo.
P. – Orienta-se por um Sul espiritual?
R. – O Sul é onde me sinto em casa. Tem a ver com luz, temperatura, com uma certa vibração das pessoas e da Natureza.
P. – Não receia que este disco possa ser ouvido um pouco pela superfície, como música de fundo, embrulhado na seda da “new age”?
R. – É algo que já me escapa. O disco já não me pertence. O que lhe vai acontecer escapa-me. Preocupa-me mais a intemporalidade do que a modernidade, no sentido de estar na vanguarda. É mais importante que esta música possa ser ouvida com a mesma validade daqui a 50 ou 100 anos, sem estar sujeita ás modas.
P. – Não conseguiu encontrar o espírito da paz nos Madredeus?
R. – Isto é a minha música, que já existia antes dos Madredeus. O grupo tem outras referências, é formado por outras pessoas, é uma cabeça colectiva. Nunca poderia estar cem por cento satisfeito, no sentido de não ter que fazer esta música. “A Voz dos Passos” é um artigo para o espírito.
P. – “As Vozes dos Passos” demora-se em que ponto da viagem?
R. – Um disco é sempre um ponto de partida, funcionando como o registo no tempo de uma determinada fase ou de um determinado estado de espírito. Nunca é um ponto final, mas uma vírgula. Agora, que surpresas é que vou ter de mim mesmo, no futuro, isso não sei. Não sei se será uma orquestra, se irá ser um disco de silêncios. A porta está aberta.



Jorge Lima Barreto – Entrevista – “Tive Uma Colisão Muito Grande Com As Pessoas Do Jazz”

Pop Rock

22 Janeiro 1997

Jorge Lima Barreto lança um álbum novo e reedita dois antigos

“TIVE UMA COLISÃO MUITO
GRANDE COM AS PESSOAS DO JAZZ”

No seu novo disco, mais um, dos Telectu, intitulado “À Lagardère”, a banda de Jorge Lima Barreto e Vítor Rua conta com a participação do trompetista Jac Berrocal. Em paralelo, acabam de ser reeditados os dois primeiros álbuns da Anar Band, entre os quais “Encounters”, com Saheb Sarbib. Para ler, há também um novo livro, “Musa Lusa”. Um período em cheio para Jorge Lima Barreto que continua imparável na sua marcha em direcção a uma utopia.


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“À Lagardère”, “Anar Band” mais “Encounters”. 20 anos separam as duas edições. 20 anos separam o tempo em que Jorge Lima Barreto martelava as teclas de um piano em Cascais, dos dias de hoje, em que o músico musicólogo do Porto atrai para a música dos Telectu a nata dos improvisadores da cena internacional. No fundo, trata-se apenas de pôr em prática a “capilaridade” que existe entre estes sons e estes músicos. Como o próprio explica em entrevista ao PÚBLICO.
PÚBLICO – Depois de Elliott Sharp e Chris Cutler, os Telectu voltaram a gravar com outro nome importante da música improvisada, desta feita o trompetista Jac Berrocal. Como surgiu esta colaboração?
Jorge Lima Barreto – O Berrocal é um músico francês que trabalhou com o Daunik Lazro que, por sua vez, fazia parte do grupo de Saheb Sarbib quando este vivia em França. Daí que eu tenha mantido sempre uma relação estreita com esse círculo musical. Por outro lado, o Berrocal está muito ligado à “performance”, esteve nas Caldas da Rainha, num certame de música alternativa, ao lado do Jorge Peixinho, entre outros músicos. Quando nos foi propiciado convidar um músico para trabalhar connosco num concerto na Casa de Serralves, no Porto, ele veio, sentimos que a coisa era conciliável do ponto de vista do estilo e a partir daí ele já fez uns sete ou oito concertos connosco. Para este disco, preparámos, no Festival de Guimarães, um quarteto com ele e com o Louis Sclavis. O Jac ficou cá mais uns dias, o que nos proporcionou seguirmos para Espinho para gravar na Numérica.
P. – Esta estratégia de intercâmbio com músicos convidados não obriga à modificação constante de estilo dos Telectu?
R. – Neste tipo de música, improvisada, existe uma capilaridade muito grande, uma troca constante entre as figuras musicais. O Zíngaro, por exemplo, toca e grava com diversos músicos. Por outro lado, vão-se criando afinidades, uma troca de situações que é muito importante. Tocar com um baterista como o Cutler é diferente de tocar com outro, como o Paul Lytton. Para nós é um engrandecimento da nossa própria experiência.
P. – Mas não existe o perigo de as pessoas não conseguirem reconhecer aquilo que pertence intrinsecamente aos Telectu?
R. – Respondo com outra colaboração. O Daniel Kientzy estava para vir tocar com o Jorge Peixinho. O Jorge Peixinho morreu e eu fui falar com ele, aliás ele é que se dirigiu a mim, porque queria fazer a divulgação do disco dele com o Peixinho. Veio cá a casa, conversámos e disse-lhe que estávamos para ter um concerto de música improvisada nas Festas da Cidade. Foi ele mesmo que disse que queria improvisar connosco. Tocámos, ele gostou, e criou-se um núcleo Kientzy/Telectu para a realização de vários concertos. E convidou-nos para gravar em Paris com ele. Do nosso lado procurámos criar um tipo de situação sonora a pensar num homem que é multi-instrumentista de sopros. Mas quando é com o Cutler, um baterista, a coisa é completamente diferente. Exige outro tipo de planificação. Mas se reparar, há da nossa parte um trabalho de composição em que estabelecemos um determinado número de premissas para as coisas se realizarem. Nunca é improvisação absoluta. Depois, repare, um compositor contemporâneo pode compor para quarteto de cordas, para percussão, para sopros, para electrónica, situações que levam quase a uma mudança de identidade. Mas, por outro lado, sentimos que há qualquer coisa, talvez indefinível, uma coerência nas várias situações que descrevi.
P. – Os últimos álbuns, e o novo, em particular, denotam uma certa fixação no ambientalismo…
R. – … Um lado mais modal, sim…
P. – Um tema como “Baccarah caril” lembra fortemente a estética de Brian Eno, em “On Land”…
R. – Sim, pode haver uma relação. No novo disco houve uma escolha de escalas, uma espécie de fórmula modal, a partir da qual se desenvolveu uma temática que, por outro lado, depende da instrumentação, umas vezes do sintetizador, outras do piano, daí que tenham resultado estruturas muito mais melódicas. Mas não fazemos isso no sentido de uma imitação.
P. – Em paralelo com a edição do novo disco com Jac Berrocal, foram reeditados, num compacto simples, os dois primeiros trabalhos da Anar Band, o segundo deles, “Encounters”, em colaboração com Saheb Sarbib. Há aqui o desejo de uma reapreciação estética destes discos ou, simplesmente, a perspectiva do arquivista histórico?
R. – Nos anos 70 estes dois discos foram os únicos que existiram neste tipo de música, improvisada. O disco com o Sarbib, por exemplo, era para ser gravado com o quarteto do Pinho Vargas. Foi na época em que Rão Kyao costumava vir a minha casa e em que gravou o “Goa”. Nessa altura eu tinha tocado em Cascais, em 1974, em piano e banda magnética, um tipo de propostas absolutamente iconoclastas. Quando sugeri ao Sarbib fazermos um “replay” dos temas, tocar por cima do que já estava tocado, foi a primeira vez que aqui se fazia esse tipo de experiência, embora Bill Evans já o tivesse feito lá fora. Era um tabu para as pessoas do “jazz”. Nesse tempo estavam a “rebentar” as músicas improvisadas, as quais estavam a divergir do “jazz”.
P. – Passados 20 anos, como é que ouve estes dois discos?
R. – É complicado. Não vou falar em sentimentalismo… No caso do disco só da Anar Band, ouço, embora haja coisas que até passo à frente, mas, de resto, foi muito gratificante, em particular o trabalho no piano, nas cordas do piano, que julgo ter sido bastante original. No caso do “Encounters”, é completamente diferente, uma vez que se tratava de um grande músico, como é o Sarbib, que na altura estava na pujança do seu estilo, em particular com aquele som do contrabaixo, semi-amplificado, que, além deste, só se encontra em mais dois ou três discos dele. Ainda em relação ao “Anar Band”, está dividido em dois lados. O primeiro acho-o marcante, em termos de intervenção de um estilo de piano que ainda hoje pratico nos concertos. No outro lado, só com o sintetizador, aí é que ponho certas reticências, já que algumas abordagens parecem pretender insinuar coisas que depois se desenvolver muito. Por exemplo, o minimalismo, ou certo tipo de automatismos que teriam, então, paralelo com o rock alemão. A estratégia de divisão em temas separados é que não terá sido a mais correcta, já que ao vivo eu costumava tocar apenas uma longa composição electrónica. Mas existia o prazer da manipulação do sintetizador analógico, o A.R.P. Odyssey. Agora há aí o “hip hop” em que se está de novo a utilizar o analógico e as mesmas marcas… Com os Anar Band utilizava uns painéis que recortava e sobrepunha, em cada composição, numa espécie de palimpsesto.
P. – A provocação era parte integrante da proposta estética dos Anar Band?
R. – Lembra-se daquele festival em Sintra, em que fizemos a primeira parte do concerto do Michel Portal? [N. R. : Lembramo-nos, e de que maneira! A actuação do grupo de Portal permanece na nossa memória como a mais extraordinária assunção de “música total” a que alguma vez assistimos.] A nossa proposta foi, nessa ocasião, extremamente provocadora. Quanto ao disco, é difícil compará-lo com qualquer outro tipo de realidade. Não são visíveis influências.
P. – Por último, mais um livro, “Musa Lusa”, no qual, mais do que dissertar sobre música, analisa os seus meios de produção e divulgação…
R. – É um livro mais de consulta. Também vou editar proximamente um outro, “O Siamês Telefax Stradivarius”, na Campo de Letras, do Porto, que é um desenvolvimento deste, sobre aquilo que eu considero ser a cultura dos “media”. Hoje temos uma cultura que nos é fornecida pelos “media”. A música está inclusa nesse tipo de cultura.
P. – Os seus trabalhos no domínio da escrita têm, por norma, causado uma certa polémica. Isso deve-se à manutenção de um estatuto de “marginalidade” no interior do sistema ou a um menor rigor no tratamento dos assuntos abordados?
R. – No caso da minha escrita, ou da minha atitude perante a música e da sua situação social, tem existido uma relação bastante desgastante com alguma crítica, mas isso acontece em todos os lugares. No meu caso, tive uma colisão muito grande com as pessoas do “jazz”, porque, na altura, tentava impor o “free jazz”. Depois veio a música minimal, da qual também fiz uma grande divulgação, e essas posições originam sempre uma reacção. Entra-se em confronto com essa reacção.
P. – Mas não reconhece haver um certo fundamentalismo no modo como expõe as matérias?
R. – Se não fosse assim, ninguém fazia nada. Por exemplo, um actor de teatro que queira desenvolver uma nova linguagem ou alguém, do cinema, que queira mostrar cinema experimental. Alguém, ainda, das artes plásticas, que pretenda mostrar o novo subjectivismo na pintura, tudo situações de hoje. Ou a divulgação da pós-modernidade, que agora acontece na música, a explicação dos seus fenómenos, cada vez mais complexos, labirínticos. Está-se a explicar aquilo que nos rodeia. E o que nos rodeia é uma cultura mediática, que nos é inculcada pelos “media” e leva as pessoas a estarem atrasadas. No sentido em que não têm sequer contacto ao que se faz de novo. As massas, o grande público, estão acantonadas, isoladas, das coisas novas que aparecem. Devido a esse isolamento, quando elas aparecem, não as compreendem.