PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 3 OUTUBRO 1990 >> Cultura
Concerto de Elliott Sharp e Telectu na Gulbenkian
Sementes de violência
FOI O concerto da brutalidade. Elliott Sharp e os Telectu iam rebentando os tímpanos a uma assistência que encheu, segunda-feira, por completo a sala polivalente do CAM, siderada pela violência sonora e pelo inusitado da combinação.
As notas da guitarra e do saxofone soprano de Sharp e a panóplia eletrónica dos Telectu explodiram literalmente num caos apocalíptico que teve entre outras a virtude de fazer pensar sobre algumas das vias encetadas pela chamada “nova música”, designação demasiado lata que não chega para abarcar a pluralidade de correntes que em comum apenas têm a repulsa nutrida em relação às “mafias” para as quais a música não passa de negócio.
Mestre da guitarra
A primeira parte do programa foi preenchida por Elliott Sharp em solo absoluto. Uma guitarra de dois braços e um saxofone bastaram-lhe para produzir um caudal de sons violentíssimos, para muitos insuportável logo alguns segundos após a vibração da primeira corda, para a maioria um excitante delírio virtuosístico, com o guitarrista a dar mostras de um domínio absoluto do instrumento. Sonoridades distorcidas até ao limite do tolerável, as notas e ruídos entrechocando-se num combate monstruoso, em “clímaxes” criados com a ajuda de pedais de efeitos, mas sobretudo graças ao modo superior como o músico consegue dominar a massa sonora, domando-a como se de uma fera se tratasse.
Solou indiscriminadamente com as duas mãos e com uma terceira feita em arame, raspou as cordas, agrediu a caixa do instrumento, pôs os olhos e ouvidos em bico a quem estivesse à espera de uma prestação convencional. Explosões, ruído branco, sequências e automatismo rítmicos complexos, sobreposição de frases melódicas e soluções tímbricas arrojadas, mostraram à saciedade por que razão Sharp é hoje considerado um dos grandes mestres contemporâneos da guitarra elétrica. Durante os 45 minutos ininterruptos de risco e provocação auditiva em que Sharp atuou só, ruíram os alicerces do velho mundo.
Subversão a três
Os Telectu entraram a seguir, acrescentando uma dose extra de agressividade ao tom orgiástico da noite. Jorge Lima Barreto percutia o seu DX7, criando uma selva digital entre a qual gritavam as guitarras desvairadas do nova-iorquino e de Vítor Rua. Por trás do palco eram projetadas imagens vídeo computorizadas acrescentando à “performance” o estímulo visual. Onde se esperaria talvez que os Telectu se espraiassem pelas paisagens mais rigorosas de “Digital Buiça”, como ponto de apoio para as intervenções de Elliott Sharp, aconteceu ao invés uma improvisação a três, um pouco à maneira da praticada pelo coletivo AMM, na mesma tentativa de subversão e reconversão dos códigos estéticos e pressupostos éticos subjacentes ao jazz e à música contemporânea. A um espetáculo que se anunciava integrado nas celebrações do Dia Mundial da Música, não se podia pedir melhor.