Carlos Maria Trindade & Nuno Canavarro – “Mr. Wollogallu”

Pop-Rock Quarta-Feira, 18.12.1991


CARLOS MARIA TRINDADE & NUNO CANAVARRO
Mr. Wollogallu
LP / CD, União Lisboa / Polygram



O género a que se convencionou chamar “new age” tem as costas largas. Editoras pioneiras como a Windham Hill e a Coda contribuíram para dar à expressão o sentido depreciativo de que geralmente goza, através da edição em série de objectos vinílicos consistindo, na maior parte dos casos, em pianos bucólicos, um toque de flauta e sons de vento e água por trás. Em suma, “new age” costuma ser sinónimo de “chato”.
Por outro lado, há a tendência para utilizar o termo para catalogar toda a música electrónica de carácter mais intimista, esteja ou não impregnada dos sinais prenunciadores de uma nova idade cósmica. “Mr. Wollogallu”, para além de quaisquer tentativas de classificação, é um objecto fascinante e uma tentativa bem sucedida de dar um rosto humano à música elaborada em computador.
Carlos Maria Trindade e Nuno Canavarro tomam como ponto de partida o som como estímulo sensorial. A música de “Mr. Wollogallu” (nome de um tambor primitivo), ao contrário de outras propostas de música “de computador” que jogam na exploração formal ou nas matemáticas digitais, resultando quase sempre em exercícios “frios”, passíveis de fruição exclusivamente racional (Morton Subotnick, Conrad Schnitzler, Emanuel Dimas Pimenta ou Tó Zé Ferreira), liga-se antes às correntes étnicas e a uma concepção dos sons como vibrações afectivas.
Neste aspecto, “Mr. Wollogallu” pode considerar-se parente próximo dos universos luxuriantes criados pelos italianos Roberto Musci e Giovanni Vennosta, nos clássicos “Water Messages in Desert Sand” e “Urban and Tribal Portraits”, por Steve Shehan, em “Arrows”, ou na forma de progressão sonora, por ciclos, com os alemães Cluster e Manuel Göttsching.
Dividido em dois blocos, compostos por cada um dos músicos, “Mr Wollogallu” passa do pendor classicista e da maior linearidade do traço melódico de Carlos Maria Trindade, brilhantes no tema de abertura “The Truth” ou na peça para piano “West”, para as explanações fusionistas de “Blu Terra” e “Antica / Burun” ou as abstracções de cristal de “Vem 5” e “Segredos M.”, já antes esboçados no anterior álbum a solo “Plux-Quba – Música para 70 serpentes”, sem perder a sedução nem o espírito de aventura.
Música aérea, contemplativa, para saborear como um “refresco de chá num zeppelin à deriva”. Um dos melhores discos do ano de música electrónica. (9)

Herman José – “Na Telefonia (Sem Fios)”

Pop-Rock Quarta-Feira, 18.12.1991


O RISO ESSENCIAL

HERMAN JOSÉ
Na Telefonia (Sem Fios)
LP, Emi – Valentim de Carvalho



Considerar Herman José um génio não é piada. O humor é coisa séria e Herman não brinca em serviço. No seu caso, ter graça é uma forma de vida, uma maneira de ser e de observar a realidade pelo lado em que esta quebra e se revela ridícula. A piada de Herman José não está (só) na anedota, na explosão final, mas no processo intermédio, na construção de um ambiente ou de uma situação, na exploração delirante de um tique, de uma inflexão vocal, de uma parcela de vida arrancada ao quotidiano. Humor latyeral, de pormenores, com sabor a iguaria.
Ao contrário da chalaça burocrática, piadista e populista dos Parodiantes de Lisboa, instituição do humor radiofónico nacional, Herman José inventa e improvisa sem cessar a partir de situações particulares, espremendo de cada uma a essência do cómico. As suas estratégias de desconstrução conceptual e linguística são em parte devedoras dos Monty Python, sacerdotes-mor do humor mais inteligente do mundo actual, não por acaso, a maioria dos portugueses permanece indiferente, chamando-lhe “estúpido” ou “sem pés nem cabeça”, sem perceber que o humor é isso mesmo – uma anatomia do absurdo. Os incondicionais, esses veneram John Cleese e co. Como figuras de culto. Nessa medida as subtilezas da comicidade de Herman apenas podem ser apreciadas até ao tutano por uma minoria.rista bem sabe as linhas com que se cose o riso dos portugueses, conferindo em paralelo ao seu trabalho, na televisão ou na rádio, uma veia mais popular e picaresca, quando no disco incarna as figuras de Ivette Marise (“Os tamanhos” e “A fertilidade”) ou do Estebes (“Entrevista a Rosa Mota”, “A vida de um desportista”). Mas os momentos de antologia desta selecção de “sketches” retirados das sessões diárias na TSF acabam por ser aqueles em que o humor fia mais fino: “Guerra do Golfo”, “Lição de Inglês”, “Pedro Almodovar ao telefone” (que ao lado de “Frank Sinatra ao telefone” recuperam os monólogos de Raul Solnado nos anos 60) e sobretudo nos magistrais “Entrevista a John Majors”, “Donald e o ventríloquo” e “Espanha homenageia Amália”, portentos de capacidade histriónica, caricatura e espírito de observação. Com Herman José, com ou sem fios, “é só rir, é só rir”. (8)

David Sylvian & Russell Mills – “Ember Glance”

Pop-Rock Quarta-Feira, 18.12.1991


POR QUEM OS SINOS DOBRAM

DAVID SYLVIAN & RUSSELL MILLS
Ember Glance
CD, Virgin, distri. Edisom



Subintitulado “The Permanence of Memory”, o trabalho em questão é o tipo de “bibelot” cultural destinado a alimentar polémicas mais ou menos estéreis sobre o esteticismo, o classicismo das formas, os novos estilistas e o próximo Wenders. De preferência no Bairro Alto. “Ember Glance” ilustra de forma exemplar uma das facetas da arte actual que tende a valorizar o formato, o primado do aleatório, a ambivalência das formas abertas à informação, a aparência, em detrimento do universal.
Trata-se, se não perceberam já, de uma “instalação de escultura, som e luz” montada no “Temporary Museum” de Tóquio, que faz parte de uma série de “exposições, instalações e ‘performances’ experimentais”. Arte, enfim. Esse mundo maravilhoso que ajuda a fazer deste mundo um mundo melhor. Ao folhear o livro profusamente ilustrado (97 pp.), ao passar os dedos pela embalagem, ao puxar a fitinha (sim, há uma fitinha roxa para puxar) somos siderados com tanta coisa bonita, tanta cor, tantos grafismos pós-modernos, tanta fotografia neoclássica, com luzes, contraluzes, desficagens, recortes de folhas, tubos, manchas, anotações à margem, “ready-mades” maricas, enfim, por mil e uma variações sobre a aparência das coisas.
A obra abre (a verdadeira obra de arte é a que abre) com uma citação do Dalai Lama (David Sylvian é muito dado às coisas do Oriente, fundou os Japan, pisca os olhos ao Zen, eu sei lá…): “A qualidade da arte é que faz com que as pessoas que geralmente olham para fora passem a olhar para dentro.” Escutado o CD de ponta a ponta, permanecemos quietos e expectantes à escuta, de ouvidos e olhos em bico, ansiosos para coscuvilhar o lado de dentro, de preferência debaixo do vestido do borracho do lado. Nada aconteceu. O raio X não acendeu. Os cerca de 30 minutos de “música” de fundo, meio restolhar de metais, meio ruído branco, atravessados de 15 em 15 segundos pelo repicar de sinos não foram suficientes. Voltámos a ler o manual: “A estrada que conduz ao aperfeiçoamento de níveis mais altos de consciência alcança-se em parte através de um processo de autoquestionamento.”
Então era isso! Redobrámos a concentração e escutámos o repicar dos sinos, ao mesmo tempo que nos autoquestionávamos, enquanto não fôssemos acusados de descurar algum aspecto, passávamos os olhos pelos bonecos. Em vão. Nenhuns “níveis subtis de percepção” por aí além, nada de ver os acontecimentos de um ponto de vista interior, mais consciente e unificado”. Permanecemos broncos.
“Ember Glance” examina as “ideias de espaço, tempo e memória”, através da utilização de sons, luzes e objectos” deslocados do seu contexto natural e dispostos segundo um espaço teatral, libertos das associações vulgares”. E por aí fora, num tratado de filosofia que procura a todo o custo validar o vazio. No fim de contas, não é o vazio o centro de que falam os budistas? A ideia de “música para instalações” não é nova. Dos Velvet Underground e Andy Warhol e a sua “Exploding Plastic Inevitable”, a Laurie Anderson e Brian Eno, que a música popular (já não falando da infinidade de experiências levadas a cabo no campo das “novas músicas”) tem procurado a todo o custo essa síntese utópica entre as diversas formas de expressão artística, em projectos “multimédia” de menor ou maior dimensão.
Lembremos, por exemplo, alguns projectos de Brian Eno, como o das esculturas-vídeo, o “muzak” ambiental do CD “Thirsty Afternoon”, para citar um nome com o qual Sylvian e Mills (pintor, “designer” e ilustrador que já havia trabalhado nas “esculturas de luz” de vários artistas da Land, editora de Brian Eno, ou no “show” de luzes de um espectáculo de Graham Lewis e Bruce Gilbert, dos Wire) mantêm pontos de contacto. Tudo isto é verdade, interessante e digno de especulação. Sylvian e Mills são artistas respeitados, com um currículo de prestígio. O que não impede que “Ember Glance” seja chato do princípio ao fim. Há ruído e ruído, e não faltam, na música actual, registos cuja audição pode provocar de facto transformações nos hábitos de escuta do auditor, senão mesmo na sua estrutura orgânica, para o melhor e para o pior. “Ember Glance” fica-se pelos sinos e pelas intenções. (4)