Arquivo mensal: Julho 2025

Júlio Pereira – “Acústico”

pop rock >> quarta-feira >> 09.11.1994


Feitiço Da Maré
O Cântico Dos Átomos

Júlio Pereira
Acústico
Columbia, distri. Sony Música



Reconhecido como um dos poucos “virtuose” da música portuguesa, Júlio Pereira encontrou sempre como principal obstáculo o desequilíbrio entre as suas facetas de instrumentista, compositor e produtor. Se em relação à primeira há que louvar-lhe o trabalho que levou a efeito de recuperação e popularização de instrumentos tradicionais como o cavaquinho, a braguesa e o bandolim, já em relação à sua actividade nas outras duas áreas nem sempre as soluções encontradas revelaram ser as mais felizes. “Acústico”, o mais recente trabalho deste músico que no passado fim-de-semana actuou em Portugal ao lado dos Chieftains, vem de certa forma alterar este estado de coisas e instaurar na sua obra algo que esta há muito exigia: o espaço e o silêncio necessários para a afirmação, sem artifícios, dos instrumentos de corda em que Júlio Pereira é mestre. É uma lógica de contenção e despojamento que em “Acústico” se exprime, sem rede, em sete temas que são outros tantos solos absolutos no cavaquinho, na braguesa, no bandolim e na guitarra, nos quais Júlio Pereira explora toda a gama de possibilidades tímbricas, melódicas, harmónicas e rítmicas daqueles instrumentos,
Logo no primeiro tema, “Afroriente”, a braguesa desdobra-se em pulsações africanas, fazendo passar para segundo plano o coro feminino constituído por Minela, Maria João e Filipa Pais. Em “Festa do sol”, o cavaquinho fala com a voz de percussões orientais e, em “Amanhecer”, a guitarra move-se nas ondulações graves de umas “tablas”, enquanto em “Tarde quente”, um dos dois temas em que participa Maria João, é a vez de o bandolim se submeter à dolência sensual provocada pela raspagem dos dedos nas cordas. “Ilha inquieta”, um dos temas mais belos de “Acústico” e um dos vários que falam do fascínio pela ilha de Santa Maria, nos Açores, sustenta a sua beleza na arte do contraponto e no domínio dos harmónicos. “Floresta dos espelhos”, num registo mais tradicional, faz a clássica homenagem a José Afonso e “Fado” viaja na descoberta das fontes do Oriente, no estilo rasgado do cavaquinho. “Bandolinata” – celta, indiana, portuguesa? – e “Ecos”, um improviso, enfeitado com respostas “delay”, sobre um excerto do Coral, opus 10, de Bach, pedem por seu lado para a vertente clássica e para o exercício de estilo. Do par de participações vocais de Maria João, a nota mais positiva vai para o diálogo solto da voz – percorrendo uma gama de alturas e emoções que corre da estridência para a surdina – com o bandolim, em “Tarde quente”, sendo menos feliz um “Feitiço da maré”, onde a cantora se acomoda a um tipo de ornamentações que recordam Janita Salomé. Se ao longo do disco são detectáveis ecos remotos dos Genesis, de Steve Hackett, em “Maré de Agosto”, ou dos Penguin Café Orchestra, em “Amanhecer” e “Aguardente de cana”, é porém na assimilação da estética minimal, presente nas repetições cíclicas que vão cavando em cada tema a sua própria verdade, que o discurso global e 2Acústico” encerra motivos de maior interesse. “Acústico” exige do ouvinte um investimento e uma atenção maiores do que o habitual. A compensação é gratificante. (7)

Telectu – “Biombos”

pop rock >> quarta-feira >> 09.11.1994
portugueses


Telectu
Biombos
China Record co., distri. Instituto Português do Oriente



Jorge Lima Barreto e Vítor Rua prosseguem a sua viagem pelos mares da marginalidade, leia-se marginalidade dentro do estreito meio musical português, onde sempre que alguém procura arranjar um bocadinho mais de espaço há outro alguém ao lado que se sente empurrado e outro alguém ainda acaba por ser atirado para fora. Os Telectu lá vão produzindo, nas margens do sistema. Umas vezes teria sido preferível nem sequer levantar a âncora. Noutras, pelo contrário, a aventura valeu bem a pena, como no excelente “Evil Metal” ou no disco ao vivo gravado na mítica Knitting Factory. O problema é que os Telectu parecem ter uma sofreguidão que os leva a editar com uma frequência maior do que seria desejável e se calhar, para eles, mais favorável.
“Biombos”, gravado na China, apresenta propostas que vão do ambientalismo falsamente naturalista ao jazz de plástico que poderia ser ouvido na metrópole de “Blade Runner”. O tema que abre o CD é uma “suite” de 20 minutos onde Lima Barreto e Rua operam a metamorfose de sons ambiente – desde ruídos de rua até rituais religiosos – recolhidos no próprio local, num híbrido que recoloca sob novos parâmetros a teoria musical desenvolvida por Brian Eno em “Discreet Music”, neste caso acrescentada de um factor “humano” e um lado cinemático de todo alheios ao criador da “música discreta”. Músicos como Steve Moore, Philip Perkins ou Bruno Heuzé (já para não referir Cage, pai de todos os ambientalismos) movem-se nesta mesma área mas não é por isso que “Beijing suite” perde o seu interesse.
As restantes peças, duas valsas e cinco variações sobre um ritmo de “foxtrot”, perdem em unidade o que ganham na obliquidade de um humor que as leva a incorporar citações de “Twin Peaks” e John Coltrane. Algo perras de movimento e demasiado dependentes de automatismos – das máquinas e dos músicos -, têm contudo a dose de diferença suficiente para passarem por um oásis no meio do deserto de ideias onde ressaca Portugal das chamadas músicas não eruditas. Nem vale a pena lembrar que em terra de cegos… (6)

Janita Salomé – “Raiano”

pop rock >> quarta-feira >> 09.11.1994
portugueses


Janita Salomé
Raiano
Farol, distri. BMG



Alguém me explique, para ver se compreendo: um disco centrado numa voz, ainda por cima tratando-se da voz excelente de Janita Salomé, deve ter uma produção que valoriza o quê? A voz, talvez?… A resposta parece óbvia e no entanto a prática, como acontece com frequência em produções nacionais, desmente essa evidência. O objectivo parece ser, em casos como o deste “Raiano”, fazer uma ostentação exaustiva dos meios postos à disposição do estúdio e encher cada segundo da música com toda a espécie de instrumentos e efeitos. O resultado é que a voz, que deveria ser a protagonista, passa a figura secundária num enredo com excesso de personagens. Poderia ser a voz de Janita como poderia ser a voz de outro cantor qualquer, de tal forma esta quase parece pedir licença para encontrar um bocadinho de espaço no meio do novo-riquismo dos arranjos. O exemplo do recente “Todos os dias…” de Amélia Muge, ou a obra de autores como Vitorino, Sérgio Godinho ou Jorge Palma são exemplos que mostram à saciedade que um disco, para resultar, deve potenciar aquilo que de melhor possuir como matéria-prima.
As canções de “Raiano” são, na sua estrutura, em geral boas canções. Mas eis a prova de que, por vezes, as boas canções não chegam para fazer um bom álbum. É preciso escavar com força por entre as guitarras eléctricas saturadas, os violinos, as cascatas de percussões provenientes de todas as partes do mundo, os coros, o baixo, o acordeão, programações várias, sopros, tudo o que estiver à mão e faça som, para se conseguir descortinar o diamante oculto sob as camadas sobrepostas de canga.
Assim como foi feito, perde a voz de Janita, perdem os poemas de Natália Correia, Carlos Mota de Oliveira, Manuel Alegre e Manuel da Fonseca e perdemos nós a paciência, massacrados pela barragem sonora que não deixa perceber o essencial. O barulho, por mais bem feito e sofisticado que seja, não deixa de ser barulho. Uma interferência que entope os canais de comunicação. Janita Salomé, devemos repeti-lo tem na voz a força e a claridade de um sol. Que razões justificam então tamanho eclipse? (5)