cultura >> quinta-feira >> 29.04.1994
Cocteau Twins No Coliseu De Lisboa
O Longo Gargarejo
NINGUÉM PERCEBEU nada. Mas toda a gente adorou. Lisa Fraser fez jus à fama que trazia e cantou sons que fizeram as vezes de palavras. A monotonia das canções contrastou com a teatralidade das luzes. Lotação esgotada, três encores, sete temas extras explicam como a passagem dos Cocteau Twins por Lisboa se saldou num sucesso estrondoso.
Sem dúvida, os milhares de pessoas que, na quarta-feira, enchiam por completo o Coliseu dos Recreios adoraram a música dos Cocteau Twins (que actuam hoje no Coliseu do Porto e amanhã no Teatro Circo, em Braga). Como antes odiaram a dos portugueses Cello que optaram, numa primeira parte não anunciada no programa, por imitarem os Cocteau Twins. Um desastre. O público assobiou desde o primeiro tema. Cristina Marques, a vocalista, desafinou e nunca conseguiu encaixar a voz no lugar certo, a música interrompeu-se várias vezes com os elementos da banda a gesticularem entre si. Um desatino triste de se ouvir e de ver.
Depois de um intervalo, que deu para reparar até que ponto as obras recentes ali efectuadas destruíram por completo a fisionomia e traça originais da velha sala das Portas de Santo Antão, os Cocteau Twins encheram o palco de luzes e o enorme salão com o famoso som-pastelão que, esse sim, nenhumas obras foram capazes de derrubar.
A música dos Cocteau Twins é assim uma espécie de resultado de uma má digestão. Lisa Fraser canta num registo algures entre o orgasmo, o gargarejo, o vómito e a sirene de alarme. Banhada num mar de luzes em que as “vari lites” reproduziram por diversas vezes as cores e o ambiente da capa de “Heaven or Las Vegas”, a rapariga de cabelo curto, vestido longo e voz sinusoidal cantou coisas que dificilmente se distinguiam entre si. Canções estranhas como “Loreai iulou niei”, “miuaiou gnool priost”, “Miam miam pst oyoyoy” e “katikatikopnwy bonga djummm” e, já no extenso período de “encores”, uma cantada em inglês, “Pur”, do último álbum “Four-Calendar Café”. Por trás da voz, três guitarras, um baixo, teclados, uma bateria e percussões conseguiram criar uma réplica razoavelmente fiel do som de estúdio dos Twins.
É verdade, mesmo não se percebendo patavina do que ela dizia, o público adorou, delirou, entrou em êxtase, exigindo sucessivos encores que a banda aproveitou para debitar nada mais nada menos do que sete canções. É assim: com bilhetes para cima dos 5000 escudos, o espectáculo (qualquer espectáculo) terá que ser forçosamente magnífico. Entre os dois e os cinco mil, é bom (muito bom se andar na casa dos 3500, 4000 escudos). Foi o caso, já que os bilhetes para a geral, em pé, custavam 3500. Abaixo dos dois contos já dá direito a ser mau e a assobiar a banda principal. Ainda mais abaixo, nos chamados espectáculos baratuchos, já se pode mesmo abandonar o recinto, atirar tomates aos artistas e fazer comentários do tipo “gastei eu mil paus para ouvir esta merda!”. Na música, como em tudo, é preciso seguir as tabelas.