cultura >> quarta-feira >> 28.01.1994
Quim Barreiros Deu “Show” Na Aula Magna
E Lisboa Cheirou O Bacalhau
A cultura portuguesa sofreu na noite de quarta-feira, na Aula Magna, um forte abanão. Nada voltará a ser como dantes. Quim Barreiros, desde anteontem, tornou-se uma lenda viva das artes nacionais. E Lisboa mostrou aquilo que é. Uma grande aldeia de chinela no pé.
Muito antes do espectáculo reinava no templo cultural da Universidade portuguesa um ambiente calmo, distinto mesmo, como se fosse um qualquer concerto da Gulbenkian. Mas os corações saltavam impacientes no peito das senhoras de meia-idade forradas com casacos de peles e nos peitilhos dos senhores de três quartos de idade que as acompanhavam. Adolescentes excitados saboreavam com antecipação as sugestões de ordinarice. Estudantes, muitos, divertiam-se à grande, alguns trazendo na cabeça chapéus “à Quim Barreiros” que se vendiam no exterior, outros com pandeiretas. Ria-se muito. Toda a gente à espera da festa.
E a festa aconteceu. Primeiro com a Tuna Académica do Instituto Superior Técnico. Vinte e quatro rapazes de batina negra, armados de guitarras, cavaquinhos, um acordeão e boa disposição. Começaram por homenagear o Quim, “o ídolo dos estudantes” antes de tocarem três temas próprios, , “Vida de estudante”, “A marcha do caloiro” e 2Serenata ao luar”. Depois avacalharam e lançaram-se num “medley” de marchas e modinhas lisboetas, terminando em fálica apoteose, com “A pilinha” e todos os elementos da tuna a fazerem “movimentos hologénicos com as ancas”.
Nada melhor que a hologenia para acolher a preceito Quim Barreiros, na sua entrada triunfal numa Aula Magna histérica e à cunha. Quim, o rei, surgiu trajado com a fatiota do costume, camisa branca, calças, colete, chapéu e bigode negros, todo ele folclore e malandrice.
Não houve maneira de lhe resistir. Quim atacou forte e feio, com “O sorveteiro (chupa Teresa)” (que um nosso colega vespertino, dando mostras de uma espantosa lubricidade, ainda maior que a do mestre, transformou em “Chupa 13”, ali, logo de uma vez). “Toda a gente a chupar”, atirou de imediato. Logo a seguir, “Lição de Dactilografia”, o tal da “professora a ensinar” e ele “a bater por letra”, “Todos a baterem!”, pois claro!
Quim estava lançado e nunca mais parou, em ritmo de chula, em ritmo de acordeão-expresso, ao ritmo de um piquenicão selecto, na antecâmara do palavrão. “Está a nascer um negócio na tua cabeça”, “Festival da canção”, “Tanquiú véri muche”, agradece Quim, maroto. Nesta altura já os da tuna desfilavam em cordão brasileiro pela sala, enquanto aos cantos desta se amontoavam as latas de cerveja. “Rock da Miquelina”, um tema de Fernando Pereira, causou o delírio, com Quim, o artista completo, de óculos escuros, encarnando Bill Haley em “Rock around the clock”. Mais clássicos: “O grilinho” e o mais clássico de todos, “Bacalhau à portuguesa”, o tal que meia Lisboa, que digo, meio Portugal canta enlouquecido. Com a estudantada já a dançar na clareira que fica situada entre a plateia da plebe e a plateia dos VIPS, o cantor de Vila Praia de Âncora mostra a sua costela étnica, num tema dedicado a Coina, “o sítio onde gosta mais de ir”: “Oh vamos a Coina, rapaziada, vamos a todas, não escapa nada.”
“Picada de enfermeiro” antecedeu uma homenagem a Greta Garbo, feita de forma sentida e delicada: “Vamos à Greta, todos querem ver a Greta, beijar a Greta…”, estava-se no verbo ir. Cada um ia para onde a sua imaginação mandava. Nada de muito profundo supõe-se…
“Recebi um convite À casa da Jaquina”, primeira canção cantada por Quim Barreiros, em 1972, trouxe para a Aula Magna um momento de nostalgia. “Comi a sobra”, “Deixa botar só a cabeça”. A poesia fluiu livre, em “Abre as pedras”. “Abre as pedras meu amor, que é onde se esconde o peixe quando vê o pescador”. “A Little thing called love”, dos Queen”, voltou a mostrar o artista internacional. Queen Barreiros. Por fim, porque tudo tem um fim, não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe, um “medley” que repescou parte de todos os “hits”, perante uma assistência que já tinha levado a sua dose. “Chupa Teresa” acabou a função como começara – “eu termino sempre como começo”, cabendo o fecho definitivo a um “funky” instrumental. Como diria Serafim Saudade, um grande momento de “music-hall”.
No fundo, muito no fundo, por detrás do riso, esconde-se a tragédia. Mas mais fundo ainda, por detrás a tragédia, esconde-se o riso. Não é, Mariazinha?