Micheal Nyman – “Michael Nyman No S. Luiz – Académicos À Água” (concertos)

PÚBLICO DOMINGO, 28 OUTUBRO 1990 >> Cultura


Michael Nyman no S. Luiz

Académicos à água


Casa cheia. Gente de todas as idades confundida e jubilante. Michael Nyman, erudito e popular. Com a banda de Nyman é baralhar e dar de novo, num jogo de múltiplas referências culturais. O grande gozo.



Depois de Wim Mertens e da dupla Blaine Reininger/Steven Brown, a atuação da Michael Nyman Band veio em definitivo provar que está por um fio a tradicional separação entre uma música tida por erudita e “difícil”, dirigida a certas hábitos de consumo elitistas, e outra, mais popular, pronta a servir o gosto das massas. Para toda uma geração de novos músicos e compositores, a principal preocupação parece ser a de encontrar o ponto de convergência entre rigor conceptual e uma imediatibilidade suscetível de fruição por parte de um público mais alargado, ávido e preparado para saltar do Rock para o estádio seguinte.
Ao soarem as primeiras notas das cordas e sopros do grupo que acompanhou Michael Nyman nesta sua deslocação a Lisboa, os académicos coraram e espumaram de raiva, só não desatando a correr às voltas porque não havia espaço. Os outros, que eram quase todos, foram transportados pela música, a um tempo requintada e poderosa, ao longo de uma atuação sem mácula, até um final apoteótico traduzido na longa suite “Water Dances” e em cinco minutos de aplausos ininterruptos que os músicos recompensaram com apenas um “encore”.

Seleção de temas

A primeira parte do concerto foi preenchida por uma seleção de temas pertencentes sobretudo aos álbuns “A Zed and Two Noughts” e “Drowning by Numbers”, ambos compostos para filmes de Peter Greenaway. Música barroca. Música de feira e realejo. “Music-hall”, fanfarra e marchas fúnebres. Orquestra de câmara transvestida em banda de coreto. Música do ceguinho com saxofones despudoradamente melódicos e amplificados, trombone fanhoso e melopeias de puxar à lágrima. Sequências repetitivas desenvolvidas segundo labirintos tímbricos traçados pelos violinos de Elizabeth Perry e Jonathan Carney, o violoncelo de Anthony Hinnigan e os sopros de John Harle, David Roach, Andrew Findon e Nigel Barr. Os ritmos binários e o baixo elétrico de Martin Elliott explodindo em pulsações mais próximas do Rock. “Car Crash”, “Time Lapse”, “Up for Crass”, despojados da carga simbólica e morbidez das imagens de Greenaway.

O maestro discreto

Michael Nyman, maestro discreto, sentado ao piano de costas para a assistência, dirigiu a “ensemble” de tal forma, que esta se empolgou ao ponto de, em “Water Dances”, Elizabeth Perry quase saltar da cadeira, e os outros músicos de baterem o compasso com o pé e abanarem a cabeça como se fossem uma qualquer banda de “rock’n’roll”. Confirmava-se a eficácia do tal “princípio do prazer” a que Nyman aludira em recente entrevista concedida ao PÚBLICO.

Barock ‘n’ roll

De facto, a música de Nyman é possuidora de uma sensualidade especial capaz de provocar a adesão quase física dos espectadores. Insinuante, seduz os sentidos e o cérebro por igual, arrebatados pela sobreposição das melodias, pelo modo como os instrumentos dialogam e dançam entre si, em passos de espiral. Também pelo próprio som, envolvente, luxuriante, suprindo uma certa simplicidade rítmica à custa de uma extraordinária riqueza tímbrica e harmónica. “Barock ‘n’ roll” seria uma designação apropriada.
No final, ninguém arredou pé, batendo palmas e gritando a pedir mais. Um extrato de “La Traversée de Paris” não chegou para saciar os apetites musicais de uma assistência a quem entretanto tinham excitado as papilas melómanas. Já no exterior do teatro trocavam-se opiniões, espantos e olhares de encantamento. “Nunca pensei poder gostar tanto” – dizia alguém à saída. Quanto aos académicos, foram irremediavelmente afundados nas águas estagnadas do conformismo, pela música e atitude inovadoras de Michael Nyman e a sua banda. A partir de agora o Dramático de Cascais e a Gulbenkian encontraram no S. Luiz um rival à altura.

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