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Carlos Paredes (+ Fernando Alvim) – “Ensaiar Pelo Telefone” (artigo de opinião)

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domingo, 16 Fevereiro 2003


ENSAIAR PELO TELEFONE

Sem a guitarra clássica de Fernando Alvim, a guitarra portuguesa de Carlos Paredes teria sido ainda mais só. Durante 25 anos falaram uma com a outra, de muitas maneiras


Carlos Paredes e a guitarra portuguesa: um único corpo em movimento perpétuo


Conheceram-se por causa de um programa de rádio em 1960, na antiga Emissora Nacional, iniciando então uma colaboração estreita que duraria um quarto de século e os levaria aos quatro cantos do planeta como embaixadores da guitarra de Portugal no mundo.
Deste encontro entre a guitarra portuguesa de Carlos Paredes e a guitarra clássica de Fernando Alvim, nasceria uma música sem paralelo que juntava o arrebatamento do fado de Coimbra à complexidade formal da música clássica.
Paredes e Alvim gravaram juntos os álbuns “Guitarra Portuguesa”, “Movimento Perpétuo”, “Concerto em Frankfurt” e uma parte de “Espelho de Sons”. E “Verdes anos” – ícone do sentimento nacional que Alvim define como “uma suitezinha com vários andamentos”.
Fernando Alvim, hoje com 64 anos, que recentemente participou como convidado num projeto de António Chainho, apresentado ao vivo no Centro Cultural de Belém, tocava no “Nova Onda”, um programa da antiga Emissora Nacional. “Acompanhava vários géneros de música, bossa-nova, fado, pop, artistas como João Ferreira Rosa, Teresa Tarouca, Hermano da Câmara, João Braga… que começaram a cantar nessa altura, por volta de 1960. No jazz, acompanhei o Ivo Maer, Justiniano Canelhas, Jorge Veloso… O programa durou até 1963.”
Um dia, Carlos Paredes ouviu uma emissão. “Telefonou-me a perguntar se estava interessado em acompanhá-lo numa música para o documentário ‘Rendas de Metais Preciosos’, do Cândido Costa Pinto. Eu também já o conhecia de o ouvir tocar na Emissora Nacional, com o pai, o Artur Paredes, e o acompanhamento do Arménio Silva… Senti uma satisfação grande por saber que o Carlos Paredes queria que o acompanhasse.”
Combinam encontrar-se na casa de Ferreira Alves, amigo de Paredes, na presença de outro guitarrista, João Torre do Vale. Estabelece-se de imediato uma “empatia musical”. Paredes convida nessa altura Alvim para tocarem juntos em casa do pai, na Rua Gomes Freire, ao Campo Santana, “a fim de começarem a trabalhar a música para o documentário”. Poucos dias depois, ensaiam pela primeira vez. Paredes toca sozinho, para Alvim, algumas peças do seu reportório de juventude: “Movimento perpétuo”, “Variações em si menor”, “Variações em ré menor”, “Variações em mi menor” e as “Danças portuguesas”, 1 e 2.
“Fiquei fascinado”, recorda Alvim, “pois revelavam um extraordinário virtuosismo e eram extremamente difíceis de executar.” Mas Paredes queixa-se da “falta do complemento rítmico e harmónico”. Os dois começam a trabalhar a música para o documentário. Esta viria a chamar-se “Fantasia” e acabaria por ser gravada na Nacional Filmes, sendo a curta-metragem posteriormente exibida no cinema Império, “durante os intervalos das sessões”. Nascia assim uma colaboração que duraria 25 anos. Tocaram juntos
pela última vez em Outubro de 1993, na Aula Magna da Universidade de Lisboa — derradeira aparição ao vivo de um Paredes já debilitado pela doença.

“Ele tocava-me coisas
pelo telefone e eu
respondia-lhe, também
por telefone, tocando as
harmonias que me
pareciam mais certas.
Ele tinha ideias que
apareciam subitamente,
eu tentava responder…”


FERNANDO ALVIM

Paredes e Alvim passam a ensaiar juntos com regularidade. “Cerca de cinco a seis horas por dia.” Quando não era possível encontrarem-se, em geral na casa de Artur Paredes, ensaiavam pelo telefone. “Ele tocava-me coisas pelo telefone e eu respondia-lhe, também por telefone, tocando as harmonias que me pareciam mais certas. Ele tinha ideias que apareciam subitamente, eu tentava responder…” Posteriormente, mudam o local de ensaios para a casa de Carlos Paredes, em Benfica.
Fernando Alvim reconhece a dificuldade de tocar com o mestre da guitarra portuguesa. “Foi um trabalho de muitas e muitas horas, durante anos, depois não havia gravadores de cassete, eram ensaios directos, na base da memorização e da digitação… Era apanhar as ‘nuances’ dele, nunca tocava da mesma maneira…”
É conhecido o modo solitário como Carlos Paredes tocava, ao mesmo tempo livre e encerrado no seu mundo pessoal. Como Charlie Haden, Alvim reconheceu essa solidão irremediável. “É verdade, nós é que tínhamos que ir atrás dele e procurar apanhá-lo.” Modesto, Alvim apenas admite poder ter tido “alguma influência” pelo modo como também ele tocava de forma inovadora: “Tinha influências do jazz e da bossa-nova e comecei a utilizar esses acordes nalgumas das variações do Paredes, o que também lhe deu a entender outros tipos de harmonias e acordes. Mas eu não estava ali a competir com ele, mas a acompanhá-lo, pura e simplesmente. Não estava a dar respostas ou a fazer diálogos. Fascinava-me de tal maneira a forma dele tocar que a única coisa que me apetecia era ouvi-lo.”
Fernando Alvim está atualmente envolvido num projeto com Pedro Caldeira Cabral (ontem mesmo deram um recital no CCB) designado “Memórias da Guitarra”, abrangendo música da Idade Média à atualidade.



Carlos Paredes – “Uma Guitarra Chamada Portugal” (artigo de opinião)

(público >> cultura >> portugueses >> artigo de opinião)
domingo, 16 Fevereiro 2003


Uma guitarra chamada Portugal

Carlos Paredes faz hoje 78 anos. Graças a ele a guitarra ganhou um novo nome: Portugal. Durante um ano, o autor de “Verdes anos” será objeto de homenagem

Carlos Paredes, o mestre da guitarra portuguesa, nasceu em Coimbra a 16 de Fevereiro de 1925. Faz hoje 78 anos. Para comemorar o evento, a associação Movimentos Perpétuos fez coincidir a data com o início de um plano de actividades culturais que se estenderão ao longo do ano e das quais fazem parte espectáculos de música, cinema, exposições, edição de livros, catálogos e um álbum de BD e edição de um CD duplo e DVD.
Objectivo: “Tornar acessível toda a obra de Carlos Paredes” através da “investigação e recolha de materiais espalhados por várias instituições”, do “tratamento informático do seu espólio e restante informação” e da “criação e manutenção de um ‘site'”, entre outras iniciativas que pretendem ir além da simples homenagem.
Tudo começará hoje à noite em Coimbra, no Jardim Escola João de Deus, a primeira escola frequentada por Carlos Paredes, com um espectáculo onde estarão presentes Maria João e Mário Laginha, Ana Sadio e Jorge Gomes (guitarra portuguesa), acompanhados por André Moutinho (guitarra clássica), Marco Figueiredo (piano) e Ricardo Rocha (guitarra portuguesa). Em peças alusivas e dedicadas ao autor de “Espelho de Sons”.
Na agenda da associação Movimentos Perpétuos está a gravação de um CD e um DVD com o “making of” das diversas actividades programadas para o “ano de Paredes”. Por confirmar, está outro DVD com imagens do espectáculo “Carlos Paredes – Uma Guitarra Portuguesa”, realizado por Paredes e convidados no Teatro São Luiz, em Lisboa, em 1992. Também em preparação está a edição de um álbum de BD alusiva ao mestre coimbrão, por dois músicos ligados ao rock nacional: Manuel Cruz, dos Ornatos Violetas, e Adolfo Luxúria Canibal, cérebro e voz dos Mão Morta.
Entre as diversas personalidades que já aderiram a esta iniciativa estão dezenas de nomes da cultura portuguesa: çlvaro Siza (arquitecto), João Abel Manta, João Cutileiro, José Manuel Rodrigues, Lagoa Henriques, Noé Sendas e Sérgio Pereira da Silva (artistas plásticos), Carlos Avilez, Eduardo Prado Coelho, Francisco José Viegas, Jacinto Lucas Pires, Joaquim Benite, Jorge Silva Melo, José Luís Peixoto, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Mário de Carvalho, Pedro Tamen e Urbano Tavares Rodrigues (escritores e jornalistas), Edgar Pêra, João Nuno Pinto e Pedro Sena Nunes (realizadores), António Pinho Vargas, Carlos Bica, Gabriel Gomes, Bullet, Gaiteiros de Lisboa, José Eduardo Rocha, Maria João e Mário Laginha, Mísia, Ricardo Rocha, Sam the Kid (músicos) e Daniel Lima, João Fazenda e Luís Afonso (autores de banda desenhada), entre outros.

Invenções livres
Das lições de violino e piano com que se iniciou, em criança, na aprendizagem da música, Carlos Paredes transitou para as cordas dedilhadas, dando espaço a uma paixão que jamais deixaria de o consumir: a guitarra portuguesa. Com o pai, Artur Paredes, aprendeu o estilo coimbrão e a raça desse instrumento surgido em Inglaterra mas tornado português por empatia. “O guitarrista tem de integrar a guitarra em si mesmo, tornando-a a sua voz… Foi com o meu pai que aprendi a tirar da guitarra sons mais violentos, como reacção ao pieguismo a que geralmente a guitarra portuguesa estava ligada”, disse o mestre. Quem teve a felicidade de assistir aos seus espectáculos, lembrar-se-á, estarrecido, da forma como o homem se dobrava, num abraço sem remédio, sobre a guitarra, formando um único corpo. Integrar a guitarra em si mesmo. Eram, de facto, um só. Carlos Paredes deu à guitarra uma voz própria. O avô ensinara-lhe a “colocar os dedos”. O resto, “como não há nada, é inventado pelo guitarrista”.
Durante anos, Paredes deu corpo a algo de que andávamos e andamos esquecidos: a arte de ser português. Uma natural modéstia e a indiferença generalizada das instituições têm impedido uma maior projecção da sua música no estrangeiro. Carlos Paredes, para quem “as coisas nunca têm uma importância de maior”, eterno exilado de si próprio, afirmou certo dia que das suas mãos nunca poderia “sair nada de muito importante”. As instâncias oficiais, atentas como sempre, quando lhes convém, a inconfidências deste tipo, têm-no levado à letra. Maquiavel não teria feito melhor.
Influenciado pela música de câmara da Renascença e pelo fado de Coimbra, Carlos Paredes, “músico popular urbano” como a si próprio se define, desenvolveu ao longo dos anos um estilo pessoal que, com base na tradição e apoiado no vigor de execução, ascendeu a uma portugalidade de que Amália foi a diva incontestada. Amália e Paredes, por ironia do destino, nunca tocaram em conjunto. Mas o contrabaixista de jazz Charlie Haden foi sensível à força e à capacidade de improvisação do guitarrista. Tocaram e trocaram sons e ideias no Hot Club de Lisboa, onde actuaram juntos a 27 de Setembro de 1978. Desse diálogo ficou para a posteridade o álbum “Dialogues” (1990), um disco editado internacionalmente no selo Elektra Nonesuch, dos mais prestigiados da música contemporânea actual.
Da discografia de Carlos Paredes constam as seguintes obras, todas em formato de LP e, posteriormente, transferidos para o digital: “Guitarra Portuguesa” (1967) “Movimento Perpétuo” (1971), “Concerto em Frankfurt” (1983), “Invenções Livres” (com António Vitorino de Almeida, 1986) e “Espelho de Sons” (1988). “Asas sobre o Mundo”, editado em 1989, inclui temas de “Guitarra Portuguesa” e “Concerto em Frankfurt”. Existem ainda “Carlos Paredes/Artur Paredes” e “Carlos Paredes/José Afonso/Luiz Goes” bem como uma colecção de EP editados ao longo das décadas de 60 e 70, entre os quais o mítico “Verdes Anos”, com data de lançamento de 1963. Em 1996, e aproveitando o título de um documentário realizado em 1969 por Augusto Cabrita, para o qual compôs a banda sonora, foi editado “Na Corrente”, compilação de material inédito gravado em 1969, 1971 e 1973 e, dois anos mais tarde, a antologia “O Melhor de Carlos Paredes”. “Canção para Titi” sai em 2000, com material gravado em 1993 no qual são já visíveis os efeitos da doença.

Danças
Carlos Paredes é ainda autor das bandas sonoras dos filmes de Paulo Rocha, “Verdes Anos”, imortalizado pela genial composição com o mesmo nome, e “Mudar de Vida”. Mais recentemente, trabalhou com Manoel de Oliveira e José Fonseca e Costa. Colaborou com o Grupo de Teatro de Campolide e com o Teatro Nacional D. Maria II. Dos seus trabalhos destaca-se ainda a partitura para uma coreografia de Vasco Wellenkamp para o Ballet Gulbenkian – “Danças para uma Guitarra” (1982).
Alain Jomy, autor da música dos filmes “O Lugar do Morto” e “Aqui d’El Rey” de António-Pedro Vasconcelos, realizou o documentário “Pour Don Carlos” centrado na relação da música de Paredes com a cidade de Lisboa. Em 1991, o guitarrista tocou ao vivo na Aula Magna ao lado dos Madredeus e, no ano seguinte, o espectáculo “Carlos Paredes – Uma Guitarra Portuguesa” contou com as presenças de Fernando Alvim (seu companheiro de armas de longa data), Rui Veloso, Mário Laginha, Natália Casanova, Manuel Paulo, Paulo Curado e Luísa Amaro, sua companheira há muitos anos.
Em 1993, foi-lhe diagnosticada uma doença do foro neurológico que progressivamente o afastou da guitarra e lhe tolheu os movimentos. Carlos Paredes vive actualmente numa casa de saúde em Lisboa.
“Para defender um instrumento, a única forma possível é criar uma escola. Se as pessoas souberem utilizá-lo convenientemente, guardam-no. Caso contrário, esquecem-no.” A frase, do próprio Paredes, aplica-se, por estranho que pareça, à sua própria vida. Mas ainda vamos a tempo de dizer que não o esquecemos. Parabéns, Carlos Paredes.


C o m C a r l o s P a r e d e s

José Eduardo Rocha, Sam the Kid, Gabriel Gomes e os Gaiteiros de Lisboa são alguns dos músicos que se associaram à iniciativa promovida pela associação Movimentos Perpétuos, compondo uma peça inspirada na música de Carlos Paredes

Paredes letra a letra
“O Carlos Paredes é como o Zeca Afonso. Para mim é música clássica. Compus uma peça intitulada ‘Prelúdios e Fugas sobre o Nome de Carlos Paredes’. Para dois violinos Chicco, harpa e pequeno gamelão. A peça, não pretendendo ser um retrato musical, é uma homenagem, uma evocação musical por dentro. Peguei no nome dele e criei uma série de notas segundo a notação anglosaxónica e grega. Uma nota para cada uma das letras constituintes do nome de Carlos Paredes, segundo uma prática tradicional e secreta na história da música. Tem uma certa atmosfera, nomeadamente os sons metálicos do pequeno gamelão que talvez evoquem o som metálico da guitarra. O uso da harpa também vai nesse sentido, na utilização de certas técnicas de corda dedilhada.
JOSÉ EDUARDO ROCHA
COMPOSITOR E DIRETOR MUSICAL DO AGRUPAMENTO ENSEMBLE JER

Paredes hip-hop
“Sou um rapaz ainda muito novo e não conheço em profundidade o trabalho do Carlos Paredes. Apenas tinha comigo duas coletâneas. Não é um artista fácil de samplar, porque não tem um compasso certo, que entre no hip-hop. Já compus a peça mas foi muito difícil. Não fui muito fiel ao trabalho dele. Segui o “chop style”, que consiste em separar e cortar as notas todas para depois eu próprio as tocar e inserir num compasso hip-hop. Samplei uma música que usa também um piano, com o António Vitorino d’Almeida, chamada “Improviso”. Facilitou-me um bocadinho mais… Inclusive, fiz uma coisa que não sei se me vão permitir: pus umas vozes do Carlos do Carmo por cima. Ficou bem. Agora não sei se em termos legais me vão deixar…”
SAM THE KID
MÚSICO DE HIP-HOP

Paredes com acordeão
“A música do Paredes é uma autêntica ebulição. Um balanço que me leva sempre numas grandes ondas. É um intérprete sublime e, na composição, todos os acordes que faz são uma referência para mim. Estou a agarrar num disco dele e a tirar partes de algumas músicas para, sobre essa base, tocar acordeão. Digamos que é uma conversa entre Carlos Paredes e eu. Vou fazer uma música de Paredes a partir de uma combinação de várias partes que, juntas, criam outro ambiente. O que pretendo fazer com esta faixa é que alguns elementos que identificamos de uma música e outros de outra, numa sequência diferente, ganhem um sentido novo.”
GABRIEL GOMES
EX-SÉTIMA LEGIÃO E MENTOR DO PROJECTO “OS POETAS”

Paredes como Bach
“É curioso. Normalmente nunca se pensa muito sobre a música dele. Está ali, existe, é um dado cultural nacional. Passados estes anos todos, no outro dia fui “obrigado” a ouvir de novo e pela primeira vez percebi, conscientemente, que o homem é um génio. Em termos absolutos comparável a qualquer Bach ou a qualquer Mozart. Basta ouvi-lo com ouvidos de ouvir. É impressionante. Mas só agora tive esta noção. É como passar todos os dias por um monumento que se sabe que é giro e está ali e um dia olharmos mesmo para ele e descobrirmos que é muito mais do que aquilo que vimos durante toda a vida. Estamos a compor um tema inspirado no “Movimento perpétuo”, com um arranjo à nossa maneira. Mas a coisa ainda está muito no princípio. Para já temos que esperar que o José Salgueiro aprenda a tocar aquilo no xilofone.”
CARLOS GUERREIRO
ELEMENTO DOS GAITEIROS DE LISBOA



Adiafa – “Pop Alentejana” (artigo de opinião)

(público >> cultura >> portugueses >> artigo de opinião)
domingo, 26 Janeiro 2003


POP ALENTEJANA

Beja assiste a um fenómeno inédito. Nas suas discotecas dança-se música alentejana. “As meninas da Ribeira do Sado”, dos Adiafa, é o tema que está a fazer furor.


Nunca se viu nada assim. A música alentejana saiu do monte, desceu à cidade e introduziu-se nas discotecas. O “escândalo” rebentou quando um dos temas do álbum de estreia do grupo Adiafa, de Beja, “As meninas da Ribeira do Sado”, começou a passar nas discotecas da cidade.
Passou e pegou. Hoje torna-se difícil encontar na cidade quem não conheça o tema de cor. Dos estudantes universitários, que nos últimos anos fizeram crescer a população da cidade, à criançada da escola que, para gáudio dos pais, tem na ponta da língua os versos e a melodia não só da versão electrificada mas também da ortodoxa, em toda a pureza do “cante”, de “As meninas da Ribeira do Sado”, que também faz parte do álbum.
Fomos conhecer de perto a loucura do que se poderá chamar “pop à alentejana”, rótulo, de resto, também aplicável ao álbum de estreia de outro filho da cidade, Paulo Ribeiro, antigo elemento do grupo Anonimato. Há algo de excitante no ar. Correm rumores de que “As meninas da Ribeira do Sado” avançaram já para Norte e estão a agitar algumas pistas de dança de Lisboa. Rui Veloso e Vitorino expressaram já publicamente a sua admiração pelos Adiafa.
Curiosamente ninguém na cidade se refere a “As meninas da Ribeira do Sado” por este nome mas por “Estrala a bomba”, aproveitando o início da letra: “Estrala a bomba e o foguete vai no ar”. Os músicos do grupo são reconhecidos na rua e apanham com o mesmo epíteto. “Olha os ‘Estrala a bomba’!” exclamam, apontando, velhos e novos. Os Estrala a Bomba, perdão, Adiafa, não escondem o seu contentamento, ainda algo incrédulos com o sucesso alcançado pela sua música. “Sentimo-nos felizes por, graças a nós, as pessoas darem mais atenção à música alenteja.”
Ao almoço (afinal “adiafa” é sinónimo de “banquete”), no restaurante Os Infantes, edifício com cerca de 600 anos, antiga discoteca e antes disso sede do extinto partido político MES (Movimento da Esquerda Socialista), na lambança sem pecado proporcionada por divinais feijoada de lebre, migas com carne de porco e perdiz estufada, bem regados por um Vidigueira tinto monocasta “aragonês”, a conversa fluiu com a mesma facilidade com que à noite se dança nas discotecas “As meninas da Ribeira do Sado”.
Cada um dos sete elementos do grupo, com idades entre os 26 e os 52 anos, acrescenta a sua parte a uma história que parece ser de fadas.
António Santos, “Toy”, o idealista anarquista, admirador de Bakunine, para quem a liberdade dos homens é possível; Emídio Zarcos, aspeto “hippie” mas respeitável professor de Educação Física; João Santos, “o encarnado”, sócia de Mick Hucknall, dos Simply Red; José Emídio, apaixonado pelos “blues” e outras músicas (“sempre que posso, canto ‘blues’, mas por que raio é que não consigo cantar flamenco?”); Luís Espinho, incondicional do jazzrock (“um dia hei-de ouvir o Joe Zawinul ao vivo!”); Paulo Colaço, o homem da “house” e do “drum‘n’bass” que usou o programa Cubas” para fabricar em casa os beats da versão remisturada de “As meninas da Ribeira do Sado”; e Joaquim Simões, executante de fagote que passou uma noite em claro subjugado por uma partitura de Beethoven. Todos diferentes mas unidos por um sonho: levar a música alentejana cada vez mais longe e a mais pessoas.
A discoteca UFO’s, antigo bar “underground” onde os músicos do grupo Revisão se juntavam para fazer “jam sessions” (“bom rock e bom ‘blues’”, que ainda hoje continuam a ser tocados num recanto do recinto que Carlos Lopes, gerente da casa, considera “carismático”), faz parte dos locais de diversão de Beja onde “As meninas da Ribeira do Sado” é tocada todas as noites, inclusive na versão tradicional. “A primeira vez que me pediram para tocar a música dos Adiafa achei um bocado esquisito, mas toda a gente aderiu. Até já estamos a pensar em fazer uma sessão de karaoke… as pessoas cantam por cima”, diz Carlos Lopes.
Ninguém se recorda muito bem da origem do nome UFO’s, embora Carlos Lopes se lembre de ouvir então falar em discos voadores. Já Emídio Zarcos acha que tem a ver com “o estado da cabeça de algumas pessoas” que frequentavam o estabelecimento. O que já bate mais certo com a semelhança entre este nome e o do mítico clube inglês UFO onde, em 1967, os Pink Floyd e os Soft Machine inventaram a pop psicadélica.
É quinta-feira e faltam poucas horas para o UFO’s se encher de jovens universitários com a cabeça mais ou menos fora do lugar, desejosos de divertimento. Quinta é a noite de loucura de Beja. “3000 mulheres para cada homem”, segundo avaliação, pouco científica, dos Adiafa. “Estrala a bomba” tornou-se parte integrante dessa diversão.
A Biblioteca Municipal José Saramago, considerada modelar e uma das melhores do país, entrou nos hábitos da população mais jovem da cidade. Aberta até às onze da noite, com um espaço infantil, café e ambiente informal, além de revistas e livros, permite levar CD para casa. O dos Adiafa “está sempre fora”.
Sentados às mesas do café, os jovens voltam as cabeças para os sete Adiafa enquanto estes antecipam a folia que daí a poucas horas se instalará um pouco por todos os locais noturnos da cidade. Cristina tem 25 anos e estuda na Universidade Moderna. Investigação Social Aplicada. Vem todos os dias assistir às aulas. As discotecas Caras e Lanterna Azul contam-se entre as suas eleitas. Para dançar “As meninas da Ribeira do Sado”. “Já o fiz muitas vezes, aqui e noutros locais do Sul”. Lídia, 22 anos, a estudar no mesmo curso, já dançou a “remix” em Reguengos de Monsaraz, de onde é natural. Com a mesma idade, Ângela veio do Montijo para estudar “Animação Sócio-Cultural”. O tema dos Adiafa é dos que mais a animam. “Vi-os no outro dia num programa da televisão e achei curioso ter como base uma recolha do cancioneiro popular, uma coisa que estava esquecida.”
A partir de agora deixou de haver razões para que a música alentejana continue esquecida. Os Adiafa tiraram-na do beco do “cante” e da viola campaniça, criando a partir da tradição novos modelos. Está em curso a invasão da pop alentejana.

Vitorino e companhia

A música do Alentejo, em parte pelas suas especificidades, próprias de uma tradição que tem mais a ver com o Mediterrâneo (o canto corso, por exemplo) e o espólio polifónico medieval do que com as heranças etnográficas de todo o território situado a Norte do Tejo, em parte pelo ostracismo político a que durante décadas foi votado, conservou durante largos anos o estatuto de bolsa marginal. A sua ligação à música urbana, processo agora encetado pelos Adiafa ou por Paulo Ribeiro, tem, no entanto, antecedentes. Deixando de lado o espólio discográfico tradicional fixado nas recolhas de Giacometti, na “Viola Campaniça”, organizado por José Alberto Sardinha ou grupos corais como os das Camponesas de Castro Verde, Camponeses de Pias ou os Ganhões, também de Castro Verde, o selo alentejano está bem marcado na família Salomé, de Vitorino e Janita, ainda que num registo que começou por estar conotado com uma atitude revolucionária que era timbre da primeira geração de músicos da chamada Música Popular Portuguesa. Álbuns de Vitorino como “Semear Salsa ao Reguinho” (1975), “Os Malteses” (1977), “Não há Terra…” (1979), “Romances” (1980) e “Flor de la Mar” (1983), são exemplares dessa conjunção entre folclore, dignidade e ideologia. Após um período mais literário e “lisboeta” encetado com “Leitaria Garrett” (1984), realça-se o recente “Alentejanas e Amorosas”, de 2001, que o autor define como recuperação de um “romantismo mediterrânico e peninsular”. Janita Salomé, numa perspetiva mais “world music” e assumidamente arabizante, assinou trabalhos como “Melro” (1980), o clássico “A Cantar ao Sol” (1983), “Lavrar em teu Peito” (1985) e, numa perspetiva mais abrangente e fusionista, “Raiano” (1994) e o excelente e recentemente premiado “Vozes do Sul” (2001). Ele e Vitorino, mais o irmão Carlos e Filipa Pais (autora de “L’Amar”, 1994, com o delicioso e alentejano “Vox omnes”), encetaram a aventura, tão curta como cintilante, dos Lua Extravagante.