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Adiafa – “O Alentejo Tem Ritmo” (entrevista)

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domingo, 26 Janeiro 2003

“O Alentejo tem ritmo”

Têm o “cante” na voz e na alma
mas não descuram a irreverência.
Ao vivo põem as pessoas a rir.
À noite, a sua música é para se
dançar ao lado de Shakira
ou das Las Ketchup. As novas
“adiafas” fazem-se nas discotecas


Os Adiafa: “Sempre cantámos à alentejana. É inato. Está-nos na alma”


PÚBLICO — Como apareceram os Adiafa e o álbum de estreia?
ADIAFA — A ideia é do Emídio Palma e do Paulo Colaço que há uns anos começaram a pensar na música da nossa terra e de uma maneira nova de a apresentar. O grupo nasceu há três anos. Fruto da necessidade de termos um cartão-de-visita. Fomos nós que custeámos tudo.
Mas depois de uma primeira edição caseira, o CD vai ter lançamento oficial da Sony…
Sim, mas o processo desencadeou-se todo no Alentejo. Foi no Alentejo que começámos a ter sucesso. O disco passa nas discotecas, nas rádios locais… Só a partir daí é que a editora veio ter connosco.
“Adiafa” significa apenas “banquete” ou algo mais?
Também é “festa”. No Alentejo, antigamente, o trabalho agrícola era todo feito por pessoas. Não havia máquinas. Vinham do Algarve, das Beiras, do Norte, inclusive de Espanha. No final desse trabalho, o senhor dono das terras dava uma festa. Comia-se, bebia-se, dançavase e cantava-se. Era a “adiafa”, uma palavra de origem árabe.
Por norma as pessoas associam a música alentejana ao “cante” e aos grupos corais. Provavelmente, não há mais nenhuma formação como a vossa…
Não quisemos abandonar o “cante” mas recuperar o tempo perdido. Fez-se a promoção do “cante” mas não por opção do Alentejo, na época das recolhas. Houve coisas proibidas e outras não. A viola campaniça, por exemplo, que é o que nos liga mais à tradição, foi deixada ao esquecimento. A história tem destas coisas tristes… Nós somos o futuro.
Viola campaniça que esteve em risco de extinção. A situação continua a ser grave?
Menos do que era. Há já alguns jovens a construir e a tocar. A nossa foi construída por um rapaz de 25 anos, o Pedro Mestre. E bom tocador… A viola campaniça representa, no aspecto rítmico, a nossa ligação ao mundo árabe. No “cante” a ênfase é posta na riqueza harmónica e melódica. A verdade é que havia bailes nas aldeias todas as semanas e as pessoas não dançavam modas lentas mas coisas rítmicas. O Alentejo tem ritmo.
Fizeram recolhas?
Não andámos de gravador ao ombro. Ouvimos, fomos a “adiafas”, que ainda se realizam. Vimos velhotes, um trio de violas campaniças, tocar e cantar. Também tirámos dos discos. Mas o tema mais conhecido, “As meninas da Ribeira do Sado” aprendêmo-lo por via da tradição oral.
Mas não se considerem puristas, o que nos leva à “remix” de música de dança de “As meninas da Ribeira do Sado”…
Somos puristas na maneira de cantar quando estamos num grupo de cantares alentejanos. Se se reparar, a traça da nossa música continua a ser a do “cante”. Damos-lhe é uma roupagem diferente… O Fernando Lopes-Graça escreveu um livro chamado “Problemas da Música Portuguesa”. Uma das coisas que ele dizia era precisamente que nas recolhas a que teve acesso se percebe que o povo não está estático, as pessoas evoluem. Por exemplo, há uma moda da Dulce Pontes com um grupo coral que ninguém conhecia e que hoje se canta nas tabernas.
Sim, mas a “remix”…
Foi ideia do Paulo. Fazer uma moda alentejana ser dançada nas discotecas. Antigamente dançavam-se nos bailaricos. Hoje as “adiafas” são feitas nas discotecas. Passam “As meninas da Ribeira do Sado” ao lado da Shakira e das Las Ketchup.
Todas as pessoas reagiram bem à vossa música?
Havia um bocado a ideia de que o “cante” tem que ser sempre lento, pouco apelativo à vista. Nós, nos espectáculos ao vivo, que é o nosso forte, somos extraordinariamente bem dispostos, brincamos uns com os outros e com o público. Contamos histórias, anedotas, pomos as pessoas a rir.
Além de música alentejana o que é que ouvem em casa?
Cada um de nós tem gostos diferentes. Herbie Hancock, Joe Zawinul, Wes Montgomery, “blues”, música de dança… Antes dos Adiafa tocávamos jazz mas as pessoas não queriam saber disso. Aplicamos os nossos gostos e os nossos conhecimentos técnicos à música alentejana. Sempre cantámos à alentejana. É inato. Está-nos na alma.
Fazem parte da mesma linhagem do Vitorino ou do Janita Salomé? Ou representam uma ruptura?
Ruptura nunca. Embora o Vitorino cante com cubanos, é uma opção dele… A verdade é que quando ele nos ouviu pela primeira vez, ainda não éramos conhecidos, torceu um bocado o nariz. Mas no outro dia, ouviu-nos cantar “à alentejana”, seis ou sete modas, veio ter connosco a pedir para cantarmos mais. Convidou-nos para participar no próximo disco.
Existe mesmo uma pop alentejana?
Além de nós, há o Paulo Ribeiro, o fadista António Zambujo, o Francisco Sobral, fizeram os dois parte do musical “Amália”, todos de Beja, todos da mesma geração. Não sei se será coincidência. É como se estivesse algo a cozinhar e de repente se decidisse deixar de ser politicamente correto.



Shegundo Galarza – “Morreu Shegundo Galarza, Rei Da Música De Salão” (artigo de opinião / obituário)

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domingo, 05 Janeiro 2003

Morreu Shegundo Galarza, rei da música de salão

O piano de Shegundo Galarza deixou de tocar a música agradável que animou os serões televisivos dos anos 60. A música ligeira portuguesa ficou mais pobre


Shegundo Galarza gravou mais de 200 programas para a RTP e deixou gravados 52 LP


O maestro e pianista Segundo Ramón Galarza Araco faleceu ontem em Lisboa, aos 78 anos, vítima de doença prolongada. Galarza, basco, “nacionalista mas não separatista”, natural de Segura, na província de Guipúzoa, a cerca de 40 quilómetros de San Sebastian, ficou conhecido em Portugal como Shegundo Galarza por influência dos jornalistas portugueses.
Aos 18 anos conquistou o primeiro prémio do Concurso de Piano para a Juventude. Recebeu do antigo Presidente da República, Mário Soares, o Grau de Comendador da Ordem de Mérito. O seu filho, Ramon, já nascido em Portugal, é um dos nomes conhecidos da nova geração de músicos nacionais, não só como baterista mas também como produtor discográfico.
Admirador de Maria João Pires, Shegundo fez o Conservatório de Bilbau — piano, harmonia e composição — e dizia que a agilidade que tinha ficou a dever-se a “andar milhares de quilómetros e ter jogado muita pelota basca”. Gostava de se apresentar como um “basco de boa cepa” e, ao fim de cinco décadas de carreira em Portugal, nunca perdeu o sotaque de origem nem conseguia falar fluentemente português.
Tornou-se uma figura emblemática da chamada “música de salão”, hoje de novo na moda e eufemisticamente designada de “easy listening”. As notas do seu piano foram tão discretas como a sua vida, embora tivesse privado de perto com a sociedade portuguesa, em particular “as pessoas da alta elite”, as quais, dizia, “dançam muito mal”.
Classificava o público português de tímido e reservado e contava que quando se estreou em Portugal, no Natal de 1948, no Casino Estoril, a sua principal preocupação era saber se as pessoas tinham gostado ou não da sua música.
Tocou Cole Porter para os “senhores da noite” na Costa do Sol daquele tempo: o rei deposto Umberto de Itália, o ex-rei Carol da Roménia, o conde de Barcelona, o conde de Paris e o arquiduque da Áustria, entre outros. Durante algum tempo, foi professor da infanta Margarida de Espanha, irmã do rei Juan Carlos. Durante 20 anos, até 1975, tocou todas as noites no restaurante Mónaco.
Shegundo Galarza foi solista, maestro, arranjador, compositor, gravou mais de 200 programas para a RTP e deixou gravados 52 LP, em piano solo ou com acompanhamento de orquestra. Entre os seus trabalhos para televisões estrangeiras, destaca-se a sua participação nos espetáculos de Edmund Ross e Xavier Cugat.
Criou a banda sonora de algumas longas-metragens, entre as quais “Fado Maldito”, com Amália Rodrigues, e de centenas de documentários. Trabalhou com Max, Tony de Matos, Madalena Iglésias, Simone de Oliveira, João Maria Tudela, António Calvário, Lara Li e José Cid, entre outros.
Em 1981, acompanhou Carlos Paião (também já falecido) no Festival da Eurovisão em Dublin, como diretor de orquestra da canção “Play back”. Em 1996, Maria de Lurdes Carvalho organizou, com Cidália Meireles, uma compilação em que o pianista basco tocava “Lisboa Antiga” e “Aldeia da Roupa Branca”.
A sua primeira atuação na televisão portuguesa aconteceu no ano do seu aparecimento em Portugal, em 1957, quando tocou piano num programa de José Atalaya. Um outro programa, só seu, que teve na RTP chamava-se “Shegundo Galarza e os seus Violinos” e foi para o ar até 1966.
Dizia o maestro: “Durava 20, 25 minutos. Era só música, não tinha palavras, passava à hora de jantar. As pessoas estavam a jantar e a ouvir, era muito agradável.”