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Sei Miguel – “Ra Clock” + Telectu – “Quartetos” + Jacinta – “A Tribute To Bessie Smith” + Pedro Madaleno – “Fast Living”

(público >> mil folhas >> portugueses >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 22 Março 2003

O jazz tanto pode ser um bunker de metal como um canteiro de flores. Sei Miguel e Jacinta exemplificam, em Portugal, estes dois extremos do jazz. A sabedoria louca de um contrasta com a felicidade aos caracóis da outra.


Com a felicidade estampada nos ‘blues’


Sei Miguel
Ra Clock
Ed. e distri. Headlights
8 | 10

Telectu
Quartetos
3xCD Clean Feed, distri. Trem Azul
6 | 10

Jacinta
A Tribute to Bessie Smith
Blue Note, distri. EMI-VC
7 | 10

Pedro Madaleno
Fast Living
Edição de autor
6 | 10



Jazz além. Mas além de que lugar? Segundo as coordenadas de Sei Miguel, ir pelo jazz é arriscar-se numa aventura interior sem retorno, de transmutação, transcendência e transferência da personalidade para uma máscara de enigmas. “Ra Clock” é, na forma, uma homenagem a Sun Ra, que o trompetista português considera como avatar da música contemporânea, nomeadamente através da suite com o mesmo título, espécie de livro de horas que ilustra o percurso musical e espiritual do autor de “It’s after the End of the World”. Disco diluviano, no sentido de precipitação e revelação, transporta consigo os mesmos estigmas e a imagética mitológicos que ilustravam a obra do teclista americano, na reapropriação de uma ancestralidade por onde passa, afinal, a decifração do labirinto tecido em “Astérion” ou do microclima de 33 segundos intitulado “Isobel”.
Não há madeiras, apenas metal: trompete de bolso, trombone, guitarra, gongos, piano, percussões e água elementar. E, em “Astérion”, uma “drone” de órgão Hammond a calcar a pedra e o cristal. Pressente-se aqui algo carregado com a mesma energia mágica das florestas virtuais do quarto mundo de Jon Hassell, os mesmos rituais de utilização dos sonhos como via de acesso ao interdito. E o espectro de Miles a espreitar nesta transmigração.
“Ra clock”, da “viagem da alma até ao planeta Terra” até ao “caminho de regresso para as estrelas”, instala-se no âmago desse tal “além” situado entre as cinzas do jazz e a música concreta, com citações, pelo meio, às sonoridades siderais de Sun Ra. Um disco difícil, como são todos os de Sei Miguel, exercício de sublimação da loucura em discurso do método.
Nos antípodas de “Ra Clock” está o novo e triplo álbum dos Telectu, de Jorge Lima Barreto e Vítor Rua. A dupla, que, curiosamente, nos últimos anos cultivou processos vários de clonagem e mimetismo de géneros musicais que iam da eletrónica lúdica à eletroacústica, retoma em “Quartetos” a estética do “free jazz” e da livre improvisação que marcaram os primeiros anos do coletivo.
Com Lima Barreto ao piano (incluindo o preparado), Vítor Rua na guitarra de 18 cordas e eletrónica, e Tom Chant no saxofone soprano, cada um dos três CD conta com um convidado de peso, na bateria: Sunny Murray, protótipo da bateria “free”, no primeiro, Eddie Prévost, elemento da mítica formação AMM, no segundo, Gerry Hemingway, “avant-gardista” e “sideman” de Anthony Braxton e Marilyn Crispell, entre outros, no terceiro.
Nada de novo nem de particularmente excitante acontece nesta ressurreição do espírito libertário dos anos 60, um “tour de force” que, para além de mostrar Lima Barreto em arroubos de lirismo pianístico (no intervalo dos omnipresentes “clusters”), tem como principais focos de interesse as conversas travadas entre o saxofone de Chant e as percussões livres de Murray, Prévost e Hemingway. Chant que, no disco 3, chora encostado ao piano, com Hemingway a desmultiplicar-se nos efeitos percussivos, naquele que será um dos momentos mais conseguidos de “Quartetos”.
Mas o “free” era uma guerra. A luta pela liberdade em nome de uma causa. É difícil descortinar nestes “Quartetos” mais do que cicloturismo ao redor do parque dos clichés em que certa música improvisada é fértil. No jazz grande, o gesto vale enquanto manifestação ou manifesto de uma necessidade ou motivação profunda. “Quartetos” é grande na luta contra o tempo, esperando que o milagre aconteça.
Comparada com as de Sei Miguel e dos Telectu, a música de Jacinta é um refresco. A nova “coqueluche” do canto jazzístico português, senhora de uma voz grave e com razoável controlo de modulações, presta no seu álbum de estreia — impressa na subsidiária nacional do prestigiado selo Blue Note — homenagem à
rainha dos “blues”, Bessie Smith.
“A Tribute to Bessie Smith”, com produção de Laurent Filipe, mostra uma voz empenhada em revitalizar e recriar com sucesso (“Outro segredo de Jacinta: ser intérprete, logo autora”, escreve José Duarte nas notas de apresentação) o “jazz” na sua costela mais emotiva — com um ou outro sopro “lounge”, uma corrida pelo rhythm’n’blues e a assunção dos “blues”, mesmo, numa balada tão tocante como “Baby won’t you please come home”. Conta com notáveis participações instrumentais, nomeadamente de Mário Santos, nos saxofones e clarinete baixo, Greg Moore, no trombone, e de um Rodrigo Gonçalves capaz de percorrer ao piano uma gama larga de subtilezas e contrastes.
A “A Tribute to Bessie Smith” só faltará o drama que apenas a vida concede ou retira a cada um. Mas como desejar um fado e um fardo assim a quem, como Jacinta, coloriu desta maneira o jazz feito em Portugal, com a felicidade do seu sorriso e uma alma aos caracóis?
De volta ao jazz mais urbano depara-se-nos “Fast Living”, com assinatura do guitarrista Pedro Madaleno (também nos sintetizadores), em quarteto com Ruben Alves (piano e teclados), Yuri Daniel (baixo acústico e elétrico) e Dejan Terzic (bateria). Não será por aqui que se encontrarão motivos que permitam descortinar novos sons e novas terras para o jazz, mas o que o guitarrista e os seus companheiros fazem fazem-no bem. Trata-se de “jazz rock”, inspirado nos mestres americanos como Weather Report ou Return to Forever, mas também na abordagem mais “snob” e progressiva da corrente inglesa de Canterbury personificada por grupos como os Soft Machine, Hatfield and the North ou National Health (temas como “Alien visitor” ou “What intelligent thing?” são bem ilustrativos desta tendência).
Já em “Spirit of the world” e “Late night in Hamburg” o estilo guitarrístico de Madaleno lembra o do holandês Jan Akkerman, dos Focus, enquanto “Different places to go” denota a influência de John Scofield. Mesmo não estando isento da “comercialite” fácil, que é pecado em que amiúde incorre o “jazz rock”, “Fast Living” pertence àquela categoria de discos que não magoa nem maltrata o jazz, mais preocupado em distrair e provocar boas vibrações do que em deitar as garras de fora.



Carlos Paredes – “O Mundo Segundo Carlos Paredes. Integral, 1958 – 1993”

(público >> y >> portugueses >> crítica de discos)
07 Março 2003
capa


Carlos Paredes
A GUITARRA QUE VENCEU O FADO

CARLOS PAREDES
O Mundo Segundo Carlos Paredes. Integral, 1958 – 1993
Ed. e distri. EMI-VC
10|10



Se Amália foi o fado, Paredes é a sua transcendência. Amália foi a onda, nítida e exacta. Paredes, o mar revolto e uma ideia de liberdade que não se esgota no dizer. Disse-o mesmo assim – com a raiva e a ternura de quem se deu e coroou a solidão. A integral O Mundo Segundo Carlos Paredes, agora editada, é o testemunho vivo desse caminho.



“Carlos Paredes era de uma dimensão muito difícil de definir. O Carlos vagueava no espaço: é um ser etéreo. Ele não estava cá, estava para além e acima de nós. Pairava no espaço. Quando o Carlinhos aparecia para tocar, era um deus”. É desta forma que Luiz Goes, um dos mestres do fado de Coimbra e dos primeiros músicos a privar com a arte de Paredes, define a personalidade musical e humana do autor de “Verdes Anos”, cuja obra integral acaba de ser compilada pela EMI-VC em forma de caixa, com o título “O Mundo Segundo Carlos Paredes, Integral, 1958-1993”.
O mundo segundo Carlos Paredes é um mundo que a todos fascina mas também um mundo cuja originalidade se torna difícil de enquadrar sob a lupa da análise mais fria. A música deste “ser etéreo” que, como dizia Goes, parecia pairar no espaço enquanto tocava, atinge-nos irremediavelmente na dimensão mais trágica do ser português, nesse ponto onde a mais despojada e apaixonada das solidões se sublima amorosamente pela Saudade.
Para além de Amália, Paredes foi, enquanto músico, o mais alto expoente desta interioridade, tornada beleza e arrebatamento absolutos nas cordas e na alma de uma guitarra portuguesa. Por estas razões, pelo valor documental e pelas não razões, de ordem emocional, que cada um descobrirá dentro de si, “O Mundo Segundo Carlos Paredes” é, desde já, no capítulo das reedições, o acontecimento editorial do ano.
Apresentado sob a forma de livro forrado interiormente com 37 páginas explicativas, incluindo um texto de apresentação de Ruy Vieira Nery, compõe-se de oito CDs organizados por ordem cronológica, abrangendo a totalidade do material gravado por Paredes, disperso por EPs e álbuns lançados entre 1958 e 1993. 35 anos de carreira ao longo dos quais Paredes deixou vincada a sua arte, parca em quantidade (a sua obra é escassa, comparada por exemplo, com o acervo legado por Amália), mas absolutamente imbuída de uma intensidade inigualável na música deste século.

nascer do dia
“Despertar”, título do CD de abertura, é composto por 26 temas, dos quais os primeiros quatro, os mais antigos gravados pelo guitarrista, correspondem ao EP “Fado de Coimbra”, do Dr. Augusto Camacho, excluindo-se obviamente as colaborações prévias de Paredes com o seu pai, Artur Paredes.
Descobre-se nesta introdução a nostalgia e o típico “rubato” coimbrões que marcariam, sem o esgotar, o estilo do guitarrista, vislumbrando-se desde logo sinais do seu virtuosismo. Entre os temas 5 e 8 deparamo-nos, cara a cara, com o génio musical presente no EP “Carlos Paredes”, de 1962.
Os desenvolvimentos melódicos, em forma de rapsódia, e, sobretudo, a sua exposição em termos técnicos, de imediato entraram em conflito com os dogmas ligados ao instrumento. Hugo Ribeiro, engenheiro de som presente em inúmeras gravações do mestre, ao ouvi-lo pela primeira vez numa sessão em casa de Amália, comentou: “Aquilo não tinha nada a ver com guitarra portuguesa. Ninguém tocava daquela maneira”. Não tocava, de facto. Quanto à guitarra portuguesa, tornou-se desde esse momento um instrumento nobre e arquétipo pelo qual todos os guitarristas das gerações posteriores se guiariam.
Outro EP, de 1964, apresenta “Guitarradas sob a Forma do Filme ‘Verdes Anos’”. Não era ainda o tema com o mesmo nome que se tornaria o cálice onde vamos beber a transcendência, mas as sementes, regadas, como no disco anterior, pela guitarra de Fernando Alvim, estavam já preparadas para fazer florescer uma música ainda mais sofisticada. “Frustração”, a faixa final, fere como um punhal, o derradeiro tom menor assombrando como a revelação do destino. Noite sem véus.
“Guitarra Portuguesa” (1967) constitui o álbum de estreia, através do qual o seu autor entrou em definitivo para a galeria dos imortais. Todos guardamos, no ouvido, no subconsciente ou no coração alguma destas melodias. “Dança” evidencia o lado mais enraizado na música tradicional de Paredes, enquanto “Fantasia” e “Pantomina” ilustram as suas ligações à música antiga, respetivamente da Renascença e da Idade Média. “Divertimento” sintetiza, entre a euforia e o sonho, o modo de construção melódica, rítmica e harmónica do músico. Muitas músicas numa música. Paredes e Alvim, genialmente irmanados no mesmo delírio, formam uma orquestra subliminar, atuante nos vários planos de escuta. “Romance Nº1” e “Romance Nº2” são harpa de luz e água. Paredes e Alvim, guitarras em dança sagrada. Precisamente no meio do alinhamento está “Verdes anos”. E aqui, de tão próximos e tão misteriosamente e para sempre distantes (não é isto, também, a Saudade?) resta-nos o silêncio e a entrega. Porque de silêncio e entrega, mas também de uma solidão exposta com nudez quase cruel, se trata. Música em estado puro, verdadeiro “movimento perpétuo” do qual o executante se faz puro agente mediúnico. Aquele que recebe, dá e revela.
Alguns segredos técnicos ajudaram a criar esta obra-prima. Recorda Hugo Ribeiro: “O Paredes não custava nada gravar. A grande dificuldade era conseguir ouvir a guitarra através dos altifalantes e da aparelhagem como se estivesse a um metro de distância. Eu procurava ouvir a guitarra através do microfone do ‘ponto de vista’ dos meus ouvidos em relação ao instrumento. Acabei por arranjar uma solução: fui vendo onde ouvia bem a guitarra, o que era já muito longe de Paredes. E pus lá um microfone, um outro junto de Paredes, que estava desligado; e afastava dele ao máximo a viola do Fernando Alvim…”. Completam o “Despertar” três temas extraídos do LP “Coimbra de Ontem e de Hoje” (1967) de Luiz Goes.

água corrente
“Na Corrente”, CD Nº2, abre com o tema com o mesmo nome, registado em 1969 para o documentário televisivo de Augusto Cabrita mas publicado pela primeira vez em Cd apenas em 1996. Nesta faixa Paredes tocou guitarra clássica improvisando em tempo real sobre as imagens projetadas. Um Paredes diferente, abstrato, por vezes quase ausente que desfalece para logo recuperar o fogo e o fôlego, umas vezes próximo do espírito da bossa-nova, outras num abandono triste ou na perplexidade de quem escutando fora de si, a si mesmo se escuta. O “mundo segundo Carlos Paredes” é Carlos Paredes. Em seu redor: paredes de água, paredes de diamante, paredes de cristal. Transparentes. Inquebráveis. Doze minutos e meio de vida como ela é, ou seja, música: Movimento. Enigma. Tempo. “Na corrente” é um título perfeito.
Por isso se cai aos trambolhões quando, sem aviso, a voz de José Carlos Ary dos Santos se faz a ouvir lendo poemas medievais e contemporâneos, com Paredes a acompanhá-lo. O álbum chamava-se “Espiral Op.70” (foi uma oferta de Natal da agência de publicidade Espiral, onde o poeta era um dos criativos…) e teve edição privada em 1969. Alguns solos (já na guitarra portuguesa) soam distantes. Ary declama “Meu amor, meu amor”, poema seu que Amália cantaria com música de Alain Oulman.
Vem a seguir uma raridade: “Meu País” (1970), de parceria com a cantora e atriz Cecília de Melo, então companheira de Paredes. Seis tradicionais mais outros tantos originais do guitarrista, sobre poemas de Manuel Alegre, Mário Gonçalves e Carlos de Oliveira. A voz faz lembrar a de Cândida Branca Flor nos tempos folk com a Banda do Casaco. Paredes ouve-a embevecido e dá-lhe um céu repintado da obra anterior. Mas céu, seja como for…
“Danças”, CD Nº3, traz “Movimento Perpétuo”, de 1971. Um clássico. Ao lado dos inéditos, o LP incluía um par de temas compostos para a banda sonora de “Mudar de Vida”, de Paulo Rocha, com a participação de Tiago Velez, na flauta, o que confere à música uma sonoridade com ressonâncias “new age” na linha da música de Paul Horn. É o álbum em que a veia improvisadora de Paredes se sedimenta num estilo reconhecível, feito de reminiscências de frases antigas projetadas, paradoxalmente, de acordo com um desejo de superação e descoberta constantes.
“Quando entrávamos para estúdio”, recorda Hugo Ribeiro, “o Paredes dizia sempre que íamos fazer experiências, nunca era para gravar. ‘Vamos ver, se calhar, talvez…’, dizia ele, e ficávamos sempre em suspenso, com a sessão adiada para o dia seguinte. O Paredes tocava por ali fora e no outro dia vinha ouvir. E depois dizia-me: ‘Oh Ribeiro, você tinha razão! Aquilo ficou bem!’. Ele entusiasmava-se a tocar. Aquela força anímica era fenomenal.
Há ainda “O fantoche” (outra melodia entranhada nos ouvidos de todos) que sobrou destas sessões, e outras duas versões, de fado de Coimbra que, pela sua especificidade, foram editadas separadamente em “single”. Uma delas, “Balada de Coimbra”, com arranjo de Artur Paredes, foi responsável por um desentendimento entre pai e filho. Consta que Artur se terá insurgido contra o facto do filho gravar um arranjo seu sem tocar suficientemente bem… Os restantes seis temas fazem parte de um álbum encetado em 1973 mas apenas editado em 1996 na compilação de raridades “Na Corrente”. Carlos Paredes reformulara entretanto alguns destes temas para inclusão em álbuns posteriores, “Concerto em Frankfurt e “Espelho de Sons”, bem como para uma edição exclusiva alemã, “O Oiro e o Trigo”, feita sem o consentimento da editora Valentim de Carvalho, com quem tinha contrato, o que motivaria um corte de relações entre ambas as partes.

o destino nas mãos
“As Mãos” reúne material de “É Preciso um País” (1974), com poemas e voz de Manuel Alegre, e “Que Nunca Mais” (1975), com Adriano Correia de Oliveira. No primeiro, Carlos Paredes socorre-se do “guitarrão”, uma guitarra portuguesa modificada que abrangia as escalas da guitarra clássica e da guitarra portuguesa normal. A revolução de Abril ainda fervia e os poemas de Alegre afirmavam-se em conformidade. Tempos de idealismo que o tempo não cumpriu. Paredes, com a sua proverbial generosidade e o empenhamento político, deu-se de corpo e alma a esta luta que também foi a sua mas da qual outros se aproveitaram. Digamos, para abreviar, que a guitarra de Paredes casava mal com um comício. A sua revolução era outra e foi essa que verdadeiramente modificou a música em Portugal.
Já o encontro, em dois temas, com Adriano Correia de Oliveira, seu “companheiro de estrada”, está mais próximo da corrente politizada da MPP do pós-25 de Abril, com uma veia tradicional menos dependente da mensagem e do tom panfletário veiculada pelo tom declamatório de Alegre.
A gravação ao vivo de 1982, na Ópera de Frankfurt, que deu origem a “Concerto em Frankfurt” fecha o alinhamento de “As Mãos”. O concerto foi gravado sem o conhecimento de Paredes, para não o enervar, e nele encontramos um músico em que a tristeza (o desespero?) substituíra já a melancolia romântica e o poder de afirmação de “Guitarra Portuguesa”. É fado, realmente fado, a escuridão que escorria então da sua guitarra. Tocava já como se adivinhasse um desfecho trágico, numa luta titânica contra a tirania das notas, procurando esventrá-las, magoando-as porque elas o magoavam. Redimindo-as, afinal, num “lado de lá” que chega a ser aflitivo, nomeadamente nos seis cantos que compõem a “suite” ”Seis Cantos Improvisados sobre a Cidade”, ficando o lado mais lírico reservado para as “Seis Guitarras sobre uma Fábula”.

inventar a solidão
Outra colaboração, desta feita com Carlos do Carmo, em “Fado moliceiro”, para o álbum “Um Homem no País” (1983), abre o CD seguinte, genericamente intitulado “Improvisos”. Mas a “peça de resistência” é constituída pelos dois longos “diálogos” da guitarra de Paredes com o piano de António Victorino d’Almeida que formam “Invenções Livres” (1986). Desse encontro, surgido como consequência do interesse manifestado por Paredes em encontrar pontes com outras músicas, resultaram esporádicas confluências mas, acima de tudo, a evidência de duas visões divergentes da música. Paredes tocava voltado para dentro. Vitorino d’Almeida é um extrovertido. As cascatas de piano afogaram a guitarra, outras vezes teimosamente tentando chamar a atenção da guitarra para espaços comuns, procurando atrair, aproximar mas, por fim, resignando-se à hipotética aproximação de dois monólogos em vez da comunhão. Paredes exigia, sem querer, subserviência. Ou uma complementaridade como aquela que lhe era oferecida por Fernando Alvim. Para o maestro tal seria impensável. E a Paredes um só labirinto chegava.
Em “Asas” arruma-se o imprescindível “Espelho de Sons”, revisto e aumentado na primeira transição de LP para CD. Antologia de temas antigos retrabalhados, nela descobrimos o guitarrista na sua melhor forma, conquistando a música o domínio de si mesma nas suas mais ínfimas “nuances”. Paredes tornara-se senhor do seu destino enquanto músico. Sente-se lucidez em cada frase, a visão e a sabedoria do que antes era intuição e mediunidade. Paredes ataca as notas, já não para as fazer sangrar, mas para se afirmar como igual. Não toca “contra” mas “com”. A tragédia, de inevitável, é integrada num patamar de existência superior. Paredes ganhara “Asas sobre o Mundo” (dois inéditos acrescentados ao conceito original de “Espelho de Sons”, em edição exclusiva para a TAP) e é com elas que desce o pano sobre o sexto CD de “O Mundo Segundo Carlos Paredes”.

A vida, segundo a segundo
É sabida a incompatibilidade de Paredes em dialogar com outros músicos, outras músicas. Mas nem por isso os outros músicos deixaram de tentar. Charlie Haden, nome histórico do contrabaixo no jazz, insistiu no acasalamento, propondo a descoberta a dois de novos caminhos. Tentativa de união que em 1990 foi editada em álbum, “Charlie Haden & Carlos Paredes”, no qual o contrabaixista cedeu ao guitarrista o maior espaço possível do alinhamento. Assim se inicia o CD número sete desta Integral, “Diálogos”. De Haden, apenas o hino “Song for Che”. O resto, em temas como “Dança dos camponeses”, “Marionetas”, “Balada de Coimbra”, “Divertimento” ou o incontornável “Verdes anos”, saiu da pena e do transe de Paredes. Haden remete-se a um papel discreto. A improvisação, segundo Paredes, não segue os parâmetros do jazz. É caminho escuro, mas também cravejado de estrelas e cometas. Diante da guitarra ergue-se um espelho. Onde se reflete o mundo, mas só à sua imagem. Três temas finais completam estes “Diálogos”, todos gravados na sessão realizada em 1992 no Coliseu de Lisboa com os Madredeus. Paredes interpreta só “Mudar de vida”, acompanhando o grupo de Teresa Salgueiro e Pedro Ayres Magalhães em “Canto de embalar” (com assinatura de Pedro Ayres e Paredes) e no original do grupo, “O navio”.
Faltava a viagem final, a que preenche o derradeiro CD, “Memórias”. Paredes, o músico, eternizou-se. Paredes, o homem, fraquejava ao fundo do túnel, desamparado, as mãos presas nas garras da doença. “Canção para Titi”, de 2000, sobrevive como testemunho pungente de uma arte que procurou – e conseguiu – redimir o mundo da dor. Foi preciso montar “takes”, colar frases e notas. Para erguer, no final, intacta, a estátua de um homem simples que quando tocava guitarra se transformava em mito. Entre o cataclismo de amor que é “Guitarra Portuguesa” e a “Valsa diabólica” que é uma das múltiplas mágoas de “Titi”, a música de Paredes cresceu, como escreve João Lopes no posfácio da Integral, “uma pura identidade em construção: uma música carnal, quase animista, ao mesmo tempo que cerebral, pedagogicamente a enunciar a sua própria ideia de liberdade (…) uma arte de não abdicar das razões da solidão”.
Ao escutarmos e – melhor ainda, ouvirmos – “O Mundo Segundo Carlos Paredes” sentimo-nos mais sós e menos sós. Mas essa é a essência da Saudade. Saudade do que somos.





Adiafa – “Grupo Adiafa Soma E Segue” (artigo de opinião)

(público >> cultura >> portugueses >> artigo de opinião)
sexta-feira, 28 Fevereiro 2003


Grupo Adiafa soma e segue



Revelação. Flash. Os Adiafa viram a luz. E a música pop feita em Portugal descobriu no Alentejo um riquíssimo filão. “Adiafa”, álbum de estreia deste grupo de Beja, há já algumas semanas que circula pelas rádios e discotecas do país, onde o tema “As meninas da Ribeira do Sado” vai fazendo furor. Disco de prata, prepara-se para conquistar o ouro. Mas só ontem se fez o lançamento oficial, em pleno Alentejo, no Monte Diabrória, Beringel. Bem acamados por uma sopa de peixe, migas e uma feijoada de lebre, os Adiafa apresentaram no local os dois “vídeos” de promoção do álbum, interpretando a seguir alguns temas ao vivo. A boa disposição e a qualidade da música foram de tal ordem que um raio de luz divina irrompeu pela sala, abençoando estas polifonias modernas com raiz na tradição. Os deuses, lá no alto, já todos decoraram os versos: “Estrala a bomba, o foguete vai no ar/ Arrebenta, fica todo queimado/ não há ninguém que baile mais bem/ Que as meninas da Ribeira do Sado”. Com sotaque, é claro.