MEIRA ASHER
Dissected (8)
Crammed, distri. Megamúsica
Utilizar os textos bíblicos do Velho Testamento, domínio de um Deus castigador, para fazer passar o escândalo tem sido a estratégia seguida de há muito por Diamanda Galas. Agora surgiu em cena, no mesmo terreno, uma competidora à altura, a israelita Meira Asher. “Dissected” é um manifesto do excesso, à semelhança dos álbuns da cantora da trilogia “Masque of the Red Death”, mas a forma como cada uma delas nos atira à cara aquilo que gostamos menos de ver difere em múltiplos aspectos. Os pontos em comum entre ambas resumem-se a três: a relação ambígua entre sida e religião, que a israelita aborda de forma violentíssima (e – provocação máxima – dançável!) no tema de abertura, “Sida”; o recurso aos textos da Bíblia; a ênfase emocional posta na interpretação, a beijar o grito e a declamação, com recurso às possibilidades do “multitracking”.
A partir daqui, Meira Asher segue o seu próprio caminho, enveredando por uma falsa “world music” que incorpora técnicas vocais “Dharab” indianas, “grooves” de “drum ‘n’ bass”, percussões africanas e orientais (com a presença de Yuval Gabay, dos Soul Coughing), electrónica industrial e todo o tipo de batidas rituais que acentuam a sensação de ruptura que se desprende da maioria das canções.
Além de “Sida”, libelo sarcástico contra a praga do século, analisada sob a mesma perspectiva de “punição divina” com que Diamanda Galas envenenou um dos capítulos da sua trilogia sobre a sida, há ainda para dar cabo do juízo “Dissect me”, análise obsessiva sobre a tortura, a mutilação e a autocastração, numa alusão à Intifada que se propaga por outro tipo de leituras, “Daddy came”, monólogo desesperado sobre o terror do incesto, e “Maligora, the sand child”, onde Meira declama um poema de Tahar Bem Jelloun, com música inspirada em Ustad Ali Akbar Khan. Uma proclamação do auto-erotismo feminino, encarado como corrente mágica de transfiguração da realidade, cuja linguagem poética atinge uma crueza e claridade que roçam a obscenidade do espelho: “Durante muito tempo toquei nos seios e na vagina. Fiquei dominada pela emoção. Senti-me envergonhada. A descoberta do meu corpo passava por esse encontro das minhas mãos com a vagina.”
“Dissected” é “world music” no fundo do poço, habitado por polifonias simuladas em estúdio, réplica mutante das Zap Mama, polirritmias nas quais o étnico se mistura à pulsação do metal, sobrevoadas pelos demónios pessoais da cantora. O combustível das palavras, sempre acutilantes, alimenta as labaredas. Quer nas conotações simbólicas que lhe conferem os textos sagrados, quer pela intencionalidade que Meira Asher coloca em cada entoação. Uma granada prestes a rebentar.
O álbum de estreia da israelita Meira Asher, “Dissected”, promete dar que falar. Gritos e suspiros. Música das cavidades do corpo e da alma. Das suas doenças e dos seus sonhos. Poesia e experimentação sobrepostos num painel de tabus e sublimações. “World music” do fundo do poço.
Meira Asher usa os textos bíblicos para dar a conhecer as suas visões. Ouve música de dança, mas não obedece às suas ordens de comando. Em viagem pelos caminhos da sexualidade, num “veículo próprio” entre a terapia e a denúncia, Meira Asher revelou ao PÚBLICO algumas das inquietações que manifesta em “Dissected”. Questionada sobre o diabo e a sua interferência na música, respondeu com uma citação de Job. Tão perturbante como a música.
PÚBLICO – “Dissected” é um álbum violento, de confrontação. Há alguma razão especial para ter escolhido esta estratégia de choque.
MEIRA ASHER – “Dissected” tem a ver com confrontação, mas não é violento. É um procedimento médico vulgar, uma observação mais de perto dos membros.
P. – Por que razão decidiu fazer também a produção do disco?
R. – Foi a coisa mais natural do mundo. Pretendi dar-lhe o toque mais pessoal possível. Em termos artísticos: projectar uma multiplicidade tumultuosa de disciplinas que resultasse numa síntese que pudesse manejar a meu bel-prazer. Em termos da indústria: as editoras que existem aqui [em Israel] não têm nem visão nem independência, todas elas lidam apenas com a música de Israel mais “mainstream”, que é extremamente chata. Os poucos músicos com uma atitude individualista que existem por cá geralmente produzem os seus próprios álbuns.
P. – O corpo e o sexo são duas das temáticas centrais de “Dissected”. Porque escolheu “Sida” para abrir o álbum?
R. – “Sida” tem por base uma oração de luto maravilhosa, chamada “Aquele que dá forma”. É uma invocação do poder de cura de Deus e refere-se a todas as cavidades do corpo humano. Quem ora não conhece nenhumas fronteiras, nem do tempo nem do espaço, nem da boca que canta…
P. – A relação que estabelece entre os textos bíblicos e alguns temas tabus da sociedade ocidental é outra estratégia de choque ou tem raízes mais profundas?
R. – Utilizo as escrituras por diversas razões. Uma dela é por ser uma grande obra de poesia, acessível, que emprega uma sábia sintaxe das sílabas hebraicas, o que resulta numa textura sonora de enorme profundidade. Aqueles que andam sempre a lamentar-se do desaparecimento da música do templo não se aperceberam deste facto. Por outro lado, a natureza eterna dos textos permite interpretações infindáveis, uma das quais é a sua manipulação tendenciosa por fanáticos, no contexto sócio-político de Israel.
P. – “Dissect me” fala de sofrimento, mutilação e tortura. Há uma relação óbvia com a Intifada, mas também permite outro tipo de leituras…
R. – … é um tema que traduz um sonho de horror que tive, durante a Intifada. Mas são possíveis outras leituras, sim… Sugerindo um Estado próprio chamado Palestina.
P. – “Maligora”, com poema de Tahar Bem Jelloun, é um dos temas mais fortes do disco. A energia sexual em circuito fechado. Uma espécie de tantrismo solitário. Que pretendeu dizer com este tema?
R. – O lugar é Marrocos. Na maior parte das sociedades orientais, quem não tem filhos e ainda por cima tem uma quantidade de filhas é objecto de desprezo. Um pai de sete filhas, frustrado, decide que o próximo será um rapaz, custe o que custar. O oitavo a nascer é, assim, uma “filha/filho”, como uma mentira, condenada a viver toda a vida na solidão. Ele leva as suas capacidades de escrita ao extremo de usar as palavras para preservar a sua sanidade. No parágrafo que utilizei, ela descreve o encontro sexual com o seu próprio corpo, à medida que vai descobrindo a sua identidade feminina. Tem 20 anos, o pai acabou de morrer e ela abandona a aldeia para uma longa viagem. “Maligora” é uma “raga” do Norte da Índia, entre a noite e a madrugada, em que os sentidos estão despertos e aguçados como o sabor do alho. A recitação do texto é feita pela harpista italiana Stefania Mpoiraghi.
P. – O incesto é abordado em “Daddy came”. Ainda e sempre o corpo e a pureza violentados?
R. – É um grito de despertar. Uma forma cáustica para nos recordar os direitos da criança.
P. – Está de acordo com que a sua música se pode considerar “ritual”, na medida em que induz a transformações, interiores e exteriores, de vária ordem?
R. – Sem dúvida.
P. – Trabalhou em musicoterapia, com crianças autistas. “Dissected” é, nesta medida, uma terapia ou, pelo contrário, uma contaminação?
R. – Digamos que um espelho da realidade. É necessária uma grande dose de energia para transformar um sonho como este em palavras. Lembro-me de, nessa altura, trepar pelas paredes e esborrachar os miolos contra elas…
P. – Que tipo de reacção tem tido este seu trabalho, em Israel?
R. – O “feedback” tem sido bom. As pessoas comovem-se, nalguns casos até às lágrimas. Os israelitas, embora raramente prezem a originalidade, admiram a honestidade.
P. – Sei que se interessa pela música electrónica, nomeadamente pela techno e industrial, formas musicais conotadas com a massificação, o apocalipse e o terror. De que maneira pretende trabalhar, no futuro, com estas formas musicais?
R. – Não posso predizer o que aí vem, mas planeio, de facto, entrar mais a fundo na electrónica. Há novo material a aparecer e estou na fase de procurar músicos para o tocar.
P. – Que relação mantém com a cena internacional da música de dança? Concorda que é uma óptima maneira de introduzir determinado tipo de mensagens ideológicas? O transe como veículo, não de ascese, mas de hipnose…
R. – Ouço bastante “dance music”, de toda a espécie, apesar de o meu corpo rejeitar a maior parte e não obedecer à ordem de comando “Move!” [Mexa-se!]. Propaganda e formas de hipnose podem e têm sido usados através de vários estilos de música. No que me diz respeito, sinto necessidade de criar um veículo protótipo.
P. – O demónio, caso acredite nele, está a trabalhar em pleno neste final do século. Concorda que a música é, presentemente, o seu instrumento privilegiado?
R. – “Satanás replicou ao Senhor: ‘Um homem é capaz de dar tudo o que tem, e até a sua própria pele, para poder salvar a sua vida! Mas experimenta levantar a tua mão contra ele, faz com que ele sofra a doença nos seus ossos e no seu corpo e verás se ele não te amaldiçoa, mesmo na Tua frente!’” Job, 2:4-5.
02.07.1999
Entrevista Com Meira Asher
“Vamos Lá Purificar O Mundo”
Com “Spears Into Hooks”, editado no princípio deste ano, Meira Asher pretendeu “espelhar os traumas e a violência do mundo, para que as pessoas compreendam o que se passa”. Depois de um apocalíptico concerto no Porto, o PÚBLICO falou, por sua conta e risco, com esta israelita que gosta de provocar os fanáticos e para quem o torturado se transforma, inevitavelmente, no torturador. Purificação pelo dilúvio.
A intensidade do discurso de Meira Asher tem a mesma força e o mesmo carácter de desafio que estão presentes nos seus discos e, de forma ainda mais radical, como o Porto teve oportunidade de testemunhar, nos espectáculos ao vivo. A “world music” deixou de ser uma coisa inofensiva, quando a israelita entrou em cena.
FM – No concerto do fim-de-semana passado no Porto, parte da assistência não conseguiu suportar a violência da sua música. Costuma acontecer isso com frequência?
MEIRA ASHER – Talvez não estivessem suficientemente preparados. Mas os que ficaram ouviram com atenção. Já me aconteceu tocar em recintos absolutamente vazios, em que as pessoas rejeitaram em absoluto a minha música. No Porto houve emoções desencontradas, de choque e excitação. Em todos os meus concertos há sempre gente que sai. Se isso não acontecesse é que ficaria preocupada.
FM – O que aconteceu entre “Dissected” e “Spears Into Hooks”? Não há comparação possível entre estes dois trabalhos…
MEIRA ASHER – “Dissected” representou o culminar de dez anos em que estive envolvida no estudo da música clássica o Norte da Índia e das percussões africanas. Usei processos de composição através dos quais procurei formas diferentes de expressão para a língua hebraica. “Spears Into Hooks” é um álbum conceptual. Nunca me considerei integrada na música étnica. Não se trata de uma influência, mas de uma vivência. Foi isso que fiz quando estudei música indiana. Durante sete ou oito anos dediquei-me exclusivamente a cantar no estilo “dhrupad”.
FM – Ao contrário de “Dissected”, em que os elementos acústicos eram preponderantes, “Spears Into Hooks” é um disco que, em termos formais, se pode conotar com a música electrónica industrial.
MEIRA ASHER – Deixei Israel há dois anos para ir viver no Ocidente, onde me familiarizei, de forma natural, com a electrónica. Decidi explorar a problemática das relações entre a Palestina e Israel através deste meio, o que me permitiu atingir o nível de intensidade e de ruído que procurava.
FM – Por que razão gravou “Spears Into Hooks” em Ljubljana, na Eslovénia, a cidade sede dos Laibach?
MEIRA ASHER – Conheço e aprecio bastante os Laibach. Fizeram um trabalho importante, de grande discernimento político e social. Abriram as mentes das pessoas. São artistas completos. Escolhi esta cidade por outras razões, encontrei lá métodos de trabalho que me agradaram. Depois de um curto período em que vivi em Londres, regressei a Israel já com os textos do álbum prontos. Trabalhei nessa altura com um inglês, Jeremy Azies, músico e etnomusicologista, especialista na música funerária dos Camarões. Os temas “Tiring night” e “Weekend away break”, por exemplo, foram escritos em conjunto pelos dois. Londres não me inspirou. É uma cidade demasiado virada para a moda e para as últimas tendências. Já tinha alguns conhecimentos na Eslovénia e estabeleci os meus contactos, sobretudo através do Aldo, um dos músicos do grupo Borghesia, que acabou por funcionar, um pouco, como produtor executivo na Eslovénia. Encontrei na Eslovénia a energia certa para gravar. Além disso, é um lugar com raízes balcânica, que são também, em particular, as minhas, uma vez que o meu pai é búlgaro e os meus avós maternos são russos, mais exactamente da Letónia.
FM – “Spears Into Hooks” pode ser encarado como a “música do mundo” contemporâneo?
MEIRA ASHER – A “world music” não pode ser aquilo que a indústria quer que ela seja. “World Music” pode ser facilmente aquilo que faço., embora pareça não se adaptar ao termo. A escolha da minha música para a programação do festival do Porto foi muito inteligente, já que ela reflecte a realidade actual do Médio Oriente. Há quem se contente em fazer canções com base no verso e no refrão. Eu não. Se alguém espeta uma faca no estômago de outra pessoa, eu quero que se ouça o som das tripas a sangrar.
FM – Disse que duas das doenças que afectam o indivíduo neste final do século XX são a cobardia e a apatia. São os seus principais inimigos?
MEIRA ASHER – Sim. Quando se passa sucessivamente por várias guerras, e por toda a espécie de violência, como acontece no Líbano, por exemplo, ao fim de 32 anos de ocupação, acaba por se desenvolver a apatia. E por crescer uma “pele de elefante”, como eu costumo dizer. Uma armadura de apatia que faz da pessoa um cobarde. Deixa-se de querer mostrar os ferimentos, de falar sobre o assunto. De encarar de frente o problema.
FM – Em que é que o mundo se está a tornar?
MEIRA ASHER – Caminha para a globalização, sem dúvida, no sentido do conforto económico. Funciona sobre o princípio simples da acumulação de poder. Gira tudo em torno do poder e não se pode fazer nada contra isso. Faz parte da nossa natureza, acumular mais e mais poder até nos tornarmos o vencedor absoluto.
FM – “Spears Into Hooks” reflecte experiências pessoais, sem dúvida, mas que também vão buscar material à memória colectiva…
MEIRA ASHER – Sim, acredito que uma parte da História da Europa – de há 50 anos atrás – se transferiu para o Médio Oriente, para um pequeno local chamado Israel. Foi uma das consequências do Holocausto. Daí o paralelo que estabeleço entre o holocausto nazi e o holocausto palestiniano. Quem sofreu torturas e vagueia por aí cheio de traumas, provocados pelo Holocausto, pode tornar-se facilmente o torturador. Como uma criança maltratada pelos pais que, em adulta, se torna o pai que maltrata os filhos. É um desenvolvimento natural. Ou um contradesenvolvimento… “Spears Into Hooks” espalha amor de uma maneira negativa. Pretende espelhar os traumas e a violência para que as pessoas compreendam o que se passa.
FM – No seu espectáculo, a frase “Birkenau, aqui e agora” repete-se de forma obsessiva, como um sinal de alarme.
MEIRA ASHER – Sim, tudo continua, independentemente do nome do campo de concentração. Os princípios permanecem os mesmos.
FM – Tem alguma explicação para os horrores que aconteceram na II Guerra Mundial?
MEIRA ASHER – Não se pode racionalizar. Foi uma espécie de… é difícil explicar por palavras… como se as coisas se juntassem todas num determinado sentido para dar origem a um acontecimento anormal. O mais importante foi o que aconteceu depois, os desenvolvimentos que deram origem às transformações da nação alemã e, por consequência, da Europa e do Médio Oriente.
FM – É uma pessoa religiosa?
MEIRA ASHER – Não, de maneira nenhuma.
FM – Não acredita em nada?
MEIRA ASHER – Acredito no poder que nos faz viver e agir. Acredito que existe uma energia que nos conduz. Acredito na intuição. E nas pessoas. O que tento dizer e partilhar com as pessoas é algo muito simples: “O que é que pode desenvolver-se a partir de uma realidade violenta?” e “Estamos, de facto, prontos, para trazer mais crianças a um mundo dominado pela violência?”. Somos suficientemente responsáveis? É justo?
FM – Um dos temas mais fortes de “Spears Into Hooks” é “The Flood”, o dilúvio. O Apocalipse está próximo?
MEIRA ASHER – É a história clássica da Bíblia, um grande livro de poesia. A versão em inglês soa de forma completamente diferente do original em hebraico. Gosto de provocar os fanáticos. Em “The Flood” – que, segundo a Cabala, se assemelha muito ao Holocausto, razão por que pus o tema sobre Birkenau logo a seguir -, escolhi aquela parte em que Deus diz a Noé: “’Ok, man’, prepara-te!” [Risos.] Vamos lá purificar o mundo um bocadinho.