cultura >> segunda-feira >> 24.05.1993
Coro de Mulheres De Sófia Aquece No Seixal
Vozes Na Sauna
Como de costume, as vozes femininas búlgaras falaram com Deus. Mas poucas vezes, como aconteceu domingo à noite na Sociedade Recreativa União Seixalense, essa interpelação da divindade terá sido tão encalorada. A falta de ventilação e a aglomeração de público numa sala pequena provocaram o sufoco num concerto em que também o Grupo de Cantares de Manhouce suou para chegar ao céu.
Estava previsto que o concerto decorresse no largo da igreja mas o medo da chuva manifestado oela organização do Festival Cantigas do Maio deslocou-o para um recinto fechado. Escolhida como alternativa, a Sociedade Recreativa União Seixalense foi pequena para acolher as muitas centenas de pessoas que vinham desejosas de participar na liturgia. Sala à cunha, deixando de forma uma pequena multidão que lutava para conseguir entrar. Lá dentro o calor, juntamente com a excitação, transformaram rapidamente a sala numa estufa. Nós, que perdêramos algum tempo até descobrirmos o novo local, desesperávamos no “hall” de entrada, hesitantes entre pedir licença e passar à frente de todos ou tentar arrombar à bruta a barreira humana que tapava a escada de acesso. Quando já tomávamos balanço aconteceu o primeiro milagre. Salvos pela organização que nos disponibilizou um lugar junto ao palco, a dois passos das cantoras.
O calor entretanto tornava-se insuportável. Os elementos do grupo de Manhouce e do Coro de Mulheres de Sófia suavam as estopinhas nos bastidores, ainda por cima apertadas como estavam nos respectivos trajes típicos da Beira-Alta e dos Balcãs que, como se sabe, não são propriamente regiões quentes. O segundo milagre aconteceu no preciso momento em que a voz de Isabel Silvestre começou a cantar. O ardor da interpretação sobrepôs-se ao calor ambiente. Refrigério pelo fogo.
Durante o intervalo, o equilíbrio psíquico dos presentes voltou a dar indícios de vacilar. Em desespero de causa alguém abriu umas janelas minúsculas junto ao tecto, gesto que foi acompanhado por um brado de alívio, mais por sugestão que por um refrescamento real da temperatura. Ao microfone pedia-se que as pessoas se apertassem um pouco mais de maneira a permitir a entrada dos masoquistas que ainda permaneciam no exterior. Tudo a postos, atrás do palco. O maestro Zdravko Mihaylov prescindiu de amplificação e optou por uma actuação ao natural. E que actuação, meu Deus! Vinte e quatro vozes de mulheres vestidas a preceito e em harmonia perfeita encheram a sala e a sauna transformou-se no céu. “Lale li si, zumbul li si” – canto de amor tradicional da Trácia, pátria de Orfeu – abriu o concerto, que o maestro foi explicando aos berros num francês macarrónico: “Viajámos mais de 4 mil quilómetros para estar aqui e cantar para vocês”.
Depois sucederam-se as maravilhas, entre o esplendor dos trajes que por várias vezes foram mudados ao longo da noite, as coreografias e, claro, as vozes de ouro do coro, impulsionadas para o alto, nos cantos populares ou nos cantos litúrgicos ortodoxos, pelas várias solistas: Liliana Galevska, Ianka taneva, Stoyana Lalova, Kalinka Valtcheva… “a capella” ou acompanhadas por um trio instrumental. Numa “suite” de melodias populares houve oportunidade para escutar os compassos “impossíveis” da música tradicional búlgara, interpretados com mestria no “kaval” (flauta pastoril), na “gadoulka” (espécie de rabeca) e na “Tamboura” (mescla de bandolim e o alaúde).
Hoje à noite acontecerá o terceiro milagre: as vozes búlgaras das mulheres de Sófia voltam a falar com Deus, desta feita num local mais apropriado, em espectáculo extra, com bilhetes a mil escudos, a realizar pelas 22h nos claustros do Mosteiro dos Jerónimos, integrado no Dia da Cultura da Bulgária. Faça chuva ou faça sol, garante a organização.