Secção Cultura Domingo, 17.11.1991
La Fura Dels Baus Apresentam Novo Epectáculo
Teatro Da Crueldade
“Noun” é o terceiro espectáculo dos catalães La Fura Dels Baus em Portugal. 3500 escudos é quanto custa o banho de emoções fortes e a participação neste espectáculo de horrores. No inferno já há lugares marcados. Hoje à noite, as últimas explosões.

Trinta minutos depois da hora prevista para o início do espectáculo, o público, que anteontem esgotou a bilheteira pese embora o elevado preço das entradas, ocupou o claustro do antigo convento do Beato, em Lisboa, iluminado a vermelho como um comboio-fantasma. Ou o inferno.
No ar pairava uma expectativa nervosa, alimentada pela antevisão do caos e do pãnico que os La Fura Dels Baus sempre provocam. “Noun” terá talvez desiludido quem esperava mais uma sessão de gritos e correrias, ou os tradicionais banhos de água e farinha, para não dizer de coisas piores. Para esses, em vez de banho, terá sido uma “banhada”.
Não se pense que os La Fura Dels Baus abandonaram a violência. Os “junkies” das sensações fortes tiveram a sua dose de susto e sobressalto. Houve fumos, o rebentamento de petardos, imagens e gestos chocantes que desta vez até incluem nus (masculinos e femininos) integrais. A diferença está em que, no novo espectáculo, essa violência, para além do massacre habitual, funciona a níveis mais subtis. Disfarçados pelas reacções de atracção / repulsa a que desta vez nem faltou a faceta “voyeurista”.
À entrada impressiona a estrutura hidráulica monstruosa de metal, à volta da qual os corpos dos actores se movimentam. Sobre, debaixo ou pendurados. Do ponto de vista técnico “Noun” é um prodígio de ginástica.
Tudo começa com uma cadeia de montagem de corpos humanos, dirigida pela máquina, um olho divino incrustado de ecrãs vídeo. A alienação transporta para um cenário futurista. Estabelece-se de imediato um clima de opressão e horror, exagerado por ruídos mecânicos e palavras de ordem berradas por uma voz disforme. Corpos nus irrompem de úteros artificiais suspensos da estrutura de ferro, acompanhados por abundante “rebentamento das águas”. Nascimento da matéria-prima que será submetida a processos de transformação que passam invariavelmente pela humilhação e pela dor.
Mas algo corre mal. Soam sirenes e explosões. As luzes apagam-se e a inquietação instala-se. Pressente-se o pior que, para muitos, é o melhor: as perseguições, a agressão (simulada), a confusão. O humano revolta-se contra a máquina e vinga-se no seu intermediário, uma mulher. É hora da tortura. E da descoberta das pulsões institivas simbolizada pelo banho ritual de duas mulheres num repuxo de esperma. Entregues a uma dança lúbrica, levantam as saias e deixam-se penetrar pelo falo líquido, ora simulando a cópula ora em luta corpo-a-corpo. Os olhares seguem cada movimento. A excitação agora é outra, exacerbada pela música, uma mistura de rock industrial com flamenco. O orgasmo representa o princípio do fim.
A partir de aqui o processo inverte-se. A descoberta do prazer implica a do poder. A metade masculina une-se à feminina. Um homem e uma mulher erguem-se no alto da estrutura, frente a frente, em pose de desafio. Por baixo de cada um estão pendurados de cabeça para baixo dois corpos, em simetria perfeita. A mente luciferina, que a eclosão das forças sexuais despertou, por cima. O duplo, a sombra corpórea, por baixo. O homem e a mulher vestem saias grená, cor alquímica correspondente à união final das duas metades sexuadas. Estão prontos para os jogos de poder.
Tomam o lugar ocupado pela máquina. O novo andrógino dirige, do alto da estrutura, os corpos-fantoche dos humanos, por comando à distância, numa simulação delirante de um jogo de vídeo. Teatro da crueldade como nem o próprio Artaud teria sonhado.
Teatro ritual onde a luta entre as pulsões da vida e da morte se resolve na condição supra-humana. Iniciação (tântrica) invertida (a inversão está de resto sempre presente em toda a concepção cénica e dramática de “Noun”) que passa pela subjugação do corpo, pela tortura, pela deformação, até ao limiar da dor e do sofrimento. Sade e Nietzsche, de forma mais “civilizada” e metafísica) já o haviam compreendido e escrito. No sadismo, na completa despersonalização e desregramento dos sentidos, na acumulação sistemática de horrores, esconde-se o desejo de vitória sobre Deus e o aniquilamento da moral. Vencido o corpo, ergue-se uma divindade gelada que no exercício do poder encontra o único alimento.
Na cena final de “Noun”, completo o ciclo de transição de poder do “deus ex-machina” para o superhomem máquina, os corpos dos homens juntam-se ao centro do quadrado metálico (representação do “novo mundo” que se adivinha) e fundem-se numa massa amorfa, tal qual uma peça de talho. O corpo individual desaparece para dar lugar à carne. O Teatro dos La Fura Dels Baus encena essa tragédia. As luzes acendem-se mas as pessoas parecem não perceber que a função terminou. Permanecem de pé, em silêncio. Os actores desaparecem.